Recurso à saída de emergência
Pedro da Silva Nava (1903-1984), o maior memorialista brasileiro. Poeta e pintor nas horas vagas, médico por mais de meio século e, ultimamente, fecundo escritor e memorialista mineiro. Uma obra extensa e sólida, talvez a mais poderosa obra literária que vinha sendo construída no Brasil nos últimos anos – o ciclo de memórias que, iniciado com Baú de Ossos, publicado em 1972, quando o escritor já avançava para os 69 anos, em 1983 atingiu seu sexto volume com o surgimento de O Círio Perfeito. Extremamente ativo, e no auge de seu prestígio, o escritor trabalhara naquele que seria o sétimo volume da série, Cera das Almas. Pedro Nava nasceu em Juiz de Fora, no dia 5 de junho de 1903. Formou-se em Medicina na Universidade Federal de Minas Gerais em 1927 e participou da geração modernista de Belo Horizonte. Como escritor tornou-se o maior memorialista da literatura brasileira, autor de seis livros.
Com o desaparecimento de Pedro Nava, a cultura brasileira perde uma personalidade inquieta e multifacetada. Nava foi poeta e pintor, médico e quase mito de vitalidade intelectual e criativa, entre seus amigos, antes de se tornar, para o grande público, o memorialista de fôlego inigualado no país. Sobretudo foi médico e, nessa profissão, além de ocupar cargos de direção em praticamente todos os hospitais importantes do Rio de Janeiro, e de se indispor, com espírito insatisfeito e belicoso, em quase todos esses lugares, garantiu um lugar na crônica da medicina brasileira ao se tornar o pioneiro de uma nova especialidade, por ele trazida ao país depois de um estágio na Europa, nos anos 40 – a reumatologia.
Pedro Nava é autor de dezenas de artigos, ensaios e livros sobre assuntos médicos. A medicina tomou sua vida a ponto de adiar o pleno surgimento do escritor para a derradeira etapa de sua vida. Enquanto isso, sua criação artística se contentava em rápidas e esporádicas sortidas, mas nem por isso era menos apreciada pelos que a conheciam. Embora, como poeta, tenha produzido pouco, Nava chamou a atenção de Manoel Bandeira, que o incluiu em sua Antologia de Poetas Bissextos. Um dos poemas abrigados nesse livro, O Defunto, a partir daí passaria a frequentar quase todas as seletas de poesia brasileira. Paralelamente, como artista plástico, Nava esboçava desenhos que mandava, por exemplo, para seu amigo e espécie de mentor intelectual, Mário de Andrade. Mário apegou-se ao Nava artista a ponto de usar ilustrações suas para uma edição de 1929 de seu Macunaíma.
PAREI, ENCHI Sobretudo, porém, é como o tardio escritor das memórias que Pedro Nava ressalta no panorama cultural brasileiro. Nos seis volumes que deixou terminados, ele traça não só um painel de sua vida, mas, principalmente, da vida brasileira da primeira metade do século XX. Talvez desde Guimarães Rosa a literatura brasileira não conhecesse um monumento de tal porte. Desde que começou a escrevê-las, em 1968, e particularmente desde o sucesso do primeiro volume, em 1972, Pedro Nava era um obcecado por suas memórias – e esta é uma razão a mais para não acreditar que sua morte tenha sido causada por qualquer espécie de fastio da existência. Outra razão ainda é que, se a arte é sempre uma tentativa de capturar o efêmero, de lutar contra o tempo e tentar vencê-lo, mais ainda o são as memórias. O memorialista tenta matar com a reconstrução do passado sua sede de permanência e durabilidade, e essa sede não combina com a decisão fria de pôr fim à vida.
Já desde 1975, Nava vinha distribuindo a certos amigos, entre os quais Afonso Arinos e Drummond, uma carta em que fazia disposições práticas sobre sua morte. Entre outras coisas, pedia que o enterro fosse simples, que não houvesse flores e que seu corpo fosse embalsamado – “com dois litros de formol”, especificava o médico. Isso não significa, no entanto, qualquer namoro com a morte. Simplesmente, 1975 foi o ano do primeiro dos dois enfartes de dona Antonieta, e Nava adotava as precauções para que, se ela morresse antes, e ele ficasse solitário, alguém tomasse as providências póstumas que desejava. Na verdade, Nava confessava ter medo da morte, e entrava em pânico a qualquer sinal de doença. Quando deixou definitivamente a medicina, em 1982, ele escreveu ao sobrinho Joaquim um bilhete que dizia: “Parei. Enchi”. Da medicina ele podia encher. Da vida, por tudo que se conhece dele, não. Por volta das 21 horas, soou o telefone. Por volta das 23h30, soou um tiro. Entre esses dois sons, o tilintar do telefone, em seu apartamento no Rio de Janeiro, e o estampido do revólver, detonado junto a uma árvore, na Rua da Glória, extinguiu-se, na noite de domingo, dia 13 de maio de 1984, a vida do poeta eventual, pintor nas horas vagas, médico por mais de meio século e, ultimamente, fecundo escritor e memorialista mineiro Pedro Nava. Aos 80 anos, e menos de um mês antes dos 81 que completaria no dia 5 de junho, Pedro Nava não pôde esperar o desfecho natural de uma morte por doença ou cansaço.
A vida e o mundo, nas frases de Pedro Nava
Eu sou um pobre homem do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais. (Baú de Ossos)
Ouvi pela primeira vez a palavra greve dita por uma de minhas tias, tão baixo e com um ar de tal escândalo, que pensei que fosse uma indecência (…) e corei até as orelhas.
(Baú de Ossos)
Eu faço é memórias. Autobiografia, só quem podia fazer era Napoleão Bonaparte. E assim mesmo resultou num péssimo livro.
(Entrevista à imprensa)
“Foi um bom e sábio pontapé. Dele, nunca me arrependi. Arrependi-me, sim, dos que não dei por essa porca da vida afora – com tanta canela precisando.”
(Balão Cativo)
Ninguém esquece coisa nenhuma.
(Entrevista)
Sou mineiro de propósito.
(Entrevista)
Digo sempre “seja o que Deus quiser”, “graças a Deus”, “Deus me livre disso ou daquilo”, mas não passam de expressões de momento. Sei que estou pedindo socorro em vão.
(Entrevista)
De piora em piora, vi o Brasil cair até a situação em que está hoje. É um país pelintra, caloteiro, sem saída, à beira do caos, e, no entanto, ninguém percebe isso. (Entrevista)
Só me falta uma experiência: morrer. (Entrevista)
Eu gosto da vida, apesar de não ser feliz. Gostaria de prolongar a vida um pouco mais, mesmo sabendo que muita coisa vai diminuindo com a idade.
(Entrevista)
Não dou a mínima importância ao chamado amor puro. O amor que interessa é o amor físico. (Entrevista)
Ele era político. Como político, capaz de idas e vindas, avanços e recuos, dos embustes, das negaças, das fintas, dos pulos-de-gato, dos blefes que são o lote de todos os que pertencem a tal estado do Príncipe de Maquiavel, de Luís XI, Churchill, ao último vereador de Santo Antônio do Desterro.
(Galo das Trevas)
(Fonte: Veja, 23 de maio de 1984 – Edição 820 – Memória/ Pág; 80 – Datas – Pág; 75)