Literatura: Fernanda Botelho, poetisa e romancista premiada
Maria Fernanda de Faria e Castro Botelho (Porto, 1° de dezembro de 1926 – Lisboa, 11 de dezembro de 2007), ficcionista e poetisa, foi uma das escritoras mais notáveis da segunda metade do século XX, fez parte da Comissão de Leitura do Serviço de Bibliotecas Itinerantes e Fixas da Fundação Calouste Gulbenkian e colaborou na revista “Colóquio de Letras”.
A escritora é autora de poemas, contos e romances, estreou-se na literatura como poetisa, mas distinguiu-se sobretudo como romancista, tendo deixado uma obra extensa que lhe valeu vários prêmios ao longo de mais de meio século de carreira.
Entre as suas obras, estão “A gata e a fábula”, “Esta noite sonhei com Brueghel” e “As contadoras de histórias”, com a qual venceu o Grande Prêmio do Romance.
A sua última obra publicada data de 2003 e tinha como título “Gritos da minha dança”.
Uma desconhecida das novas gerações
Fernanda Botelho teve importância decisiva na redefinição do romance português moderno e eram menos ainda os que a liam, apesar do seu último livro, Gritos da Minha Dança, ter sido publicado apenas em 2013.
Todos os seus críticos sublinham a ironia como uma das características mais marcantes da sua escrita e muitos complementam essa informação acrescentando-lhe um adjetivo: trágica. Há uma gargalhada, um risinho, a crítica social pontuada por um sentido trágico que se manifesta na perdição de algumas das suas personagens inseridas num colectivo que é também de deriva. “… creio que, na vida de cada mulher, há sempre um homem que lhe faculta os subsídios para um suicidiozinho”, diz Luíza num encontro social, entre copos e piadas, num dia que se sucedeu à noite em que sonhou com a pintura de Brueghel. Ela conta isso a Rui, primeiro marido, pediatra, quando os dois estão em Bruxelas num encontro de médicos, as mulheres no papel de submissão, um segundo plano que Botelho não chega a desenvolver, mas aparece latente na escrita. “Era assim”, parece ouvir-se numa leitura feita hoje.
A gente de Fernanda
E Brueghel, o pintor flamengo do século XVI, funciona como uma espécie de guia, “fio condutor no meio deste labirinto desesperado”, salienta Paula Morão no texto de introdução a esta edição da Abysmo. As telas de Brueghel funcionam como um espelho que fornece uma identidade de difícil confronto. Luiza é filha de mãe flamenga, como o pintor, e de pai português, estudioso de Damião de Góis, homem do mesmo século de Brueghel, e os efeitos dessas origens manifestam-se de forma que deixa antever vários enigmas. Botelho exacerba esse efeito no modo como manipula a sobreposição de vários tempos, justapõe duas geografias – Bélgica e Lisboa -, intercala o estado de alerta com a imersão no subconsciente e deixa entrar múltiplas vozes sem anúncio prévio, construindo numa teia narrativa que faz parte do tal jogo que é também o da própria construção do romance.
Esta Noite Sonhei com Brueguel situa-se a esses dois planos, é escrita e escrita sobre a escrita, exercício do qual a escritora parece retirar um prazer semelhante ao que atinge o leitor quando se acha no meio de uma rede, o labirinto de que fala Paula Morão, seguindo um fio que a escritora vai desfiando à medida que avança na busca do auto-conhecimento. De Luiza, e inevitavelmente de si própria, Fernanda. E também de cada um de nós leitores ou enquanto colectivo. Com a personagem, entramos no museu de Antuérpia. “O silêncio do museu é o silêncio doméstico da minha infância, mas há aqui uma claridade inexistente lá”. Outra vez o enigma. Luíza espera que a luz de Breughel venha iluminar os seus “demônios”, como iluminou os dele e da época que pintou. Faz a ponte para si, para o seu tempo, o seu lugar a viver o obscurantismo de uma ditadura, a família. A palavra autobiografia ecoa. “Luísa é Fernanda – a sua, a nossa desassombrada efígie”, escreve Paula Morão.
É a olhar para Brueghel que Luíza se reconstrói. Primeiro, de forma quase passiva, contemplando, estabelecendo afinidades. E num segundo momento, o que sucede à revelação do manuscrito ao amante que se saberá mais tarde chamar-se Pedro, ou Pepe, de forma compulsiva, “uma escrita de sobrevivência”, como lhe chama Paula Morão.
Fernanda Botelho faleceu em Lisboa, em 11 de dezembro de 2007, em sua casa, aos 81 anos.
(Fonte: https://www.cmjornal.pt/cultura – CORREIO DA MANHÃ / CULTURA / 11 de Dezembro de 2007)
(Fonte: https://www.publico.pt/2017/08/12/culturaipsilon/noticia – CULTURA ÍPSILON / LIVROS / Por Isabel Lucas – 12 de Agosto de 2017