Foi a primeira brasileira a consolidar uma carreira de prestígio internacional

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A amada imortal

Aclamada por Debussy e Fauré, a pianista Guiomar Novaes foi chamada de rainha em vários idiomas, brilhou absoluta sobre as teclas por cinco décadas e viveu um amor maior do que a vida e a morte.

Guiomar Novaes (São João da Boa Vista, 28 de fevereiro de 1894 – São Paulo, 7 de março de 1979), uma das mais notáveis pianistas de todos os tempos, foi a primeira brasileira a consolidar uma carreira de prestígio internacional. Em fevereiro de 1894, nascia em São João da Boa Vista, pequena cidade a poucas horas de São Paulo, a 17ª criança de um prole de 19, dos quais 11 sobreviveram. Era Guiomar Novaes, filha de um comerciante de café e uma dona de casa. Naquela época, toda moça de boa família era obrigada a ter aulas de piano. Enquanto as irmãs se esforçavam para aprender, ela tocava com facilidade as peças que ouvia. Aos 4 anos, Guiomar já era extraordinária.

A última década do sáculo 19 foi um momento de enormes mudanças no Brasil, em especial no eixo Rio-São Paulo. Com a abolição da escravatura e o final do Império, os anos de 1890 se mostravam efervescentes. Chegavam milhares de imigrantes. Crescia o número de jovens bem preparados para o mercado de trabalho e as famílias dos barões de café cada vez mais se interessavam pela alta cultura europeia. Foi o patriarca de uma dessas famílias que trouxe da Suíça o pianista e professor italiano Luigi Chiaffarelli. Ele conheceu Guiomar quando a menina tinha 7 anos e logo identificou nela um talento raro. Em pouco tempo, a garota prodígio estava dando concertos. Chamou tanto a atenção que foi levada à Europa por uma dama da sociedade paulistana, Alda Prado. Antes de embarcar, porém, fez um concerto de despedida. Na plateia estava o adolescente Octavio Pinto, colega nos estudos do instrumento, que olhava estarrecido e pensava: “Vou me casar com ela”. Guiomar tinha 13 anos. Ele, 17.

No Conservatório Musical e Dramático de Paris, 388 candidatos de todo o mundo disputavam 11 vagas. No júri, compositores consagrados, como Claude Debussy e Gabriel Fauré. “Imaginem aquele júri, exausto e entediado depois de ouvir centenas de candidatos tocarem a mesma peça, pedir a essa jovem para repetir a prova – para o próprio prazer! Incrível!”, descreveu na época um crítico americano. Guiomar passou em primeiro lugar. Uma carta de Debussy para o compositor André Caplet, descoberta nos anos 1940, ficou famosa: “A melhor foi uma jovem brasileira, que não é bela, mas tem os olhos ébrios de música e a capacidade de se isolar de tudo à sua volta, como só conseguem os grandes artistas”. Mesmo fazendo aulas no conservatório com o renomado professor Isidor Philipp, a pequena pianista mostrou ter estilo e personalidade forte. Ela tocava uma balada de Chopin quando Phillip a interrompeu para fazer uma correção. “Compreendo”, disse, e tocou tudo novamente, da mesma maneira. Depois de uma nova repreensão, ela voltou a responder “compreendo”… e tocou, pela terceira vez, idêntico. “Então percebi que o jeito dela era muito melhor”, declarou posteriormente o mestre. Em 1911, Guiomar se formou também em primeiro lugar no curso e saiu em turnê pela Europa. O sucesso trouxe muitos contratos de trabalho. Dois anos depois, em férias no Brasil, reencontrou o colega Octavio Pinto, que sempre dava um jeito de estar por perto, mas nunca se declarava abertamente.

Guiomar se preparava para retomar a turnê europeia quando foi surpreendida pela eclosão da Primeira Guerra Mundial. Planos interrompidos, só voltou a se apresentar fora do país em 1915, em Nova York. A crítica americana a recebeu com reservas – afinal, nunca tinham ouvido falar dela -, mas a resistência foi ruindo, nota após nota, depois do primeiro recital. A jovem concertista brasileira revelou-se uma das grandes atrações da temporada e tinha planos de retomar ao Brasil em 1917. Mas os Estados Unidos entraram na guerra e Guiomar só voltou mesmo em 1919.

Dez anos haviam se passado desde que o adolescente Octavio decidira em pensamento que a menina pianista seria sua mulher. O amigo compositor Francisco Mignone garantia que ele se mantivera fiel todo o tempo. Naquele ano, não a procurou de imediato, mas ficou por perto. A corte era delicada e constante: mandava flores e marcava presença discreta nos concertos da moça. Guiomar era receptiva, porém reservadíssima – não dava demonstrações de ter sido conquistada. Mas tinha. Eles subiram ao altar em 1922, depois que ele a pediu em casamento com poemas escritos em sucessivos cartões-postais. A primeira filha, Anna Maria, nasceu já no ano seguinte. O segundo, Luiz Octavio, veio cinco anos depois. Sem abandonar a carreira de engenheiro, o marido se transformou em empresário e passou a resolver todas as questões do dia a dia, incluindo o cuidado com as crianças, deixando Guiomar livre para se dedicar ao piano. Fez mais: nunca abandonou os estudos de música, para não se distanciar do universo da mulher que amava. Ele ficava nos bastidores, permitindo que brilhasse. Aclamada internacionalmente e tendo sólida formação cultural, Guiomar permanecia modestamente à sombra do marido quando surgiam assuntos pessoais ou era necessário emitir alguma opinião para a imprensa. Uma das composições de Octavio, Cenas Infantis, feita para os filhos, foi muitas vezes tocada por ela. A relação era de profunda troca e contato permanente: o admirador e a artista, apaixonados um pelo outro. Em 1950, Guiomar já tinha no currículo críticas entusiasmadas, a criação de um prêmio de piano com seu nome em Nova York, a solidez da carreira. No Brasil, quase todos os grandes compositores dedicaram peças a ela, inclusive Villa-Lobos. Naquele ano, porém, adiou três vezes a ida aos Estados Unidos para sua turnê anual porque o marido não estava bem. Tinha um problema cardíaco congênito. Só partiu depois que o médico garantiu que o estado de saúde dele era estável. Assim que pisou em solo americano, sentiu a terra tremer sob os pés: Octávio faleceu subitamente, aos 60 anos.

Apesar de adorada pelos críticos até o final da vida, Guiomar perdia ali o ponto de apoio fundamental e a força maior. Chegou a pensar em desistir da arte, mas, contam os amigos, foi encorajada a prosseguir até mesmo pelo papa Pio XII, pessoalmente, numa visita da artista ao Vaticano. Mesmo com o baque pessoal, ela fez concertos extraordinários, incluindo alguns dos mais importantes de sua carreira, com a Filarmônica de Nova York regida por maestros como Leonard Bernstein. Uma das provas de seu prestígio foi o convite feito pelo governo inglês, em 1967, para que protagonizasse o recital de abertura do teatro Queen Elizabeth Hall, depois de uma ausência de 25 anos dos palcos britânicos. A última apresentação fora do Brasil aconteceu em 1972, nos Estados Unidos, mas Guiomar não cogitava um adeus. “Ainda quero trocar em turnês pela América do Sul, Estados Unidos e talvez Japão”, disse aos 78 anos. A saúde cada vez mais frágil não permitiu que realizasse o desejo. Em janeiro de 1979, ela teve um AVC; dois meses depois, em 7 de março faleceu, vítima de uma parada cardíaca, sem ter voltado a subir nos grandes palcos. Mas os amigos diziam que a alma e o coração dela já tinham ido embora com Octavio, 29 anos antes, como Guiomar declarou ao jornal O Diário de Notícias de 5 de setembro de 1952: “Não fomos namorados e noivos modernos. Vivemos um amor à moda de 1830 e nele encontramos encanto e poesia até o fim, até nossa separação inelutável. Hoje só penso, só rezo, só sonho por ele – mais que meu marido, meu companheiro de todas as horas. Nunca pensei que Deus o tiraria de mim tão cedo. (…) Minha reação imediata foi abandonar a música. Insistiram, todavia, comigo, amigos e parentes. A própria memória de Octavio, talvez mais que tudo, me fez continuar a cultivar aquilo que mais adorava – a minha arte. E nela encontro um grande consolo.

(Fonte: CLAUDIA – Novembro 2011 – ANO 50 – N° 11 – A História da pianista Guiomar Novaes/ Por Luciana Medeiros e Marcia Kedouk – Guiomar Novaes do Brasil, João Luiz Sampaio – Pág; 140/144)

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