Foi o primeiro filme falado da história de Portugal
Manoel de Oliveira (Porto, 11 de Dezembro de 1908 – Porto, 2 de Abril de 2015), diretor português de cinema
Considerado o cineasta mais longevo do mundo, ele dirigiu 62 filmes, entre longas e curtas. Tinha 84 anos de carreira como diretor e 47 prêmios no currículo.
O Leão de Ouro de Veneza de 1985 por “O sapato de cetim” e o prêmio do Júri de Cannes, em 1999, por “A carta”, são alguns dos principais reconhecimentos que recebeu em sua extensa trajetória.
A estreia de Oliveira no cinema foi como ator, no filme “Fátima Milagrosa”, de 1923. Ele atuou em outras dez produções. “A Canção de Lisboa”, de 1933, foi o primeiro filme falado da história de Portugal. Trabalhou ainda como editor, produtor e roteirista, mas foi na direção que se destacou.
Passou para trás das câmeras com o documentário mudo em preto e branco “Douro, faina fluvial”, de 1931. Depois de começar a filmar ainda na época do cinema mudo, não parou mais. Com o passar dos anos, sua produção cinematográfica aumentou.
DE PILOTO DE CORRIDAS A CINEASTA DE NARRATIVAS LENTAS
Um cineasta de narrativas tidas como lentas, o português Manoel de Oliveira foi piloto de corridas antes de abraçar o cinema. Sua primeira visita ao Brasil foi em 1938, quando, aos 26 anos, competiu no circuito da Gávea, um traçado de 11 km que contornava o morro Dois Irmãos, da Marquês de São Vicente até a avenida Niemeyer. A prova foi vencida pelo italiano Carlo Pintacuda, “o heroi da Gávea”. Sem que tenha sido registrada na história a colocação em que terminou, a passagem de Oliveira permaneceu só na memória do cineasta, que narrava a destreza extrema necessária para enfrentar as mais de cem curvas do percurso.
Nascido no Porto, em uma família rica, com raízes no setor industrial, Manuel Cândido Pinto de Oliveira interessou-se primeiro pelos esportes — ginástica, natação e atletismo, além das corridas. Só depois veio o cinema, levado pelo pai para assistir aos filmes do inglês Charles Chaplin (1889-1977) e do francês Max Linder (1883-1925).
Já desportista, aos 20 anos inscreveu-se na Escola de Atores de Cinema. Em 1928, foi figurante em “Fátima milagrosa”, de Rino Lupo. Em 1931, conclui seu primeiro filme, “Douro, Faina Fluvial”, documentário que dividiu a crítica. Já desde aí a lentidão do desenrolar da ação era apontada como falha. Ao longo dos anos, somaram-se acusações de que dava mais importância às palavras do que aos atos. A câmera raramente se deslocava e, quando o fazia, eram movimentos sutis para mostrar um objeto ou as expressões corporais de um ator.
Com mais de 70 anos de carreira e algumas dezenas de filmes depois, ainda enfrentaria as mesmas críticas, às quais respondia: “A ideia de que o cinema é movimento ilude. Quando se diz que o cinema é movimento pergunta-se: é o movimento dentro do quadro ou é a câmera a virar cambalhotas? Hoje o cinema, em razão das facilidades que as máquinas têm de se moverem, tem excesso de movimento da câmera. Vai, procura, sobe, desce… Às vezes, estonteante. Quanto mais a técnica avança, mais eu recuo, porque a técnica desumaniza”.
ESCASSEZ DE FILMES DURANTE A DITADURA DE SALAZAR
Em 1942, dirigiu “Aniki Bobó”, relato de um grupo de crianças nas ruas do Porto, precursor do neorrealismo italiano. Lançado no meio da Segunda Guerra Mundial e no auge do regime de Antonio Salazar, o filme foi mal recebido pelo público. Oliveira então passou a se dedicar aos negócios da família e só voltou ao cinema 14 anos depois, com o curta-metragem “O pintor e a cidade”, de 1956.
Um novo longa viria apenas em 1963, quando lançou “O ato da primavera”, mistura de documentário e ficção no qual é encenada uma celebração popular da Paixão de Cristo. No ano seguinte, alguns diálogos no média metragem “A caça” lhe renderiam dez dias de prisão.
“Foi uma experiência horrível. Não tanto pelas privações ou incômodos físicos. Não fui espancado nem torturado, mas pela intolerável monotonia. Enterrado vivo, pensei em suicidar-me várias vezes. Chorava de tédio. Dava murros nas paredes”, narrou em uma entrevista.
Com a censura e a falta de financiamento, os trabalhos de Oliveira nessa época foram escassos em número e duração. Na maior parte das vezes, ele produzia média metragens. Apenas em 1972 retornou à ficção com “O passado e o presente” e dois anos depois, com a Revolução dos Cravos, deu início a um novo período criativo. Com o tempo acabaria recuperando parte do material iniciado e não completado durante o difícil período da ditadura, como é o caso do livreto no qual se baseia seu filme “O estranho caso de Angélica”, de 2010.
— Foi sensacional ser dirigida por ele. Considero uma experiência do mesmo nível das que tive com Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos — diz Ana Maria Magalhães, atriz brasileira que atuou em “O estranho caso de Angélica”. — Manoel de Oliveira era um dos grandes do cinema, um artista completo. Ele desenvolveu um estilo próprio de trabalho. Lembro que o centro do quadro é sempre iluminado. Ele era muito vigoroso com a marcação do texto. Tinha um ar teatral, mas Manoel tinha uma cultura de cinema fabulosa. Ele fala de Portugal e do Brasil de uma maneira extraordinária. Estou sentindo muito essa morte.
Manoel de Oliveira obteve reconhecimento internacional a partir dos anos 1960, em especial após mostra de sua obra na Cinemateca de Henri Langlois em Paris, em 1965. Vinte anos depois, ganhou o Leão de Ouro em Veneza com “Le soulier de satin” (1985). Levou a Palma de Ouro de Cannes por “A divina comédia” (1991). Ganhou ainda outro prêmio em Cannes por sua cinematografia.
Oito de seus longas (e uma peça) foram baseados na obra da escritora Agustina Bessa-Luís, sua conterrânea. Apesar de muito amigos, a relação era conflituosa. O cineasta até brincava: “Agustina gosta de não gostar dos meus filmes, mas eu não gosto que ela não goste”. A primeira colaboração entre os dois foi em “Francisca”, de 1981, inspirado pelo romance histórico “Fanny Owen”, de 1979. Outros filmes foram “O convento”, de 1995, com Catherine Deneuve e John Malkovich, e “Porto da minha infância”, de 2001, do qual Augustina participou lendo um texto sobre a condição da mulher.
— Desde criança que me habituei à presença do Manoel, por ele ser casado com uma amiga de minha mãe, e pai de amigos meus. E por ser um habitante do mesmo universo, violento e misterioso, o Douro, que tão fantasticamente retratou nos seus filmes. Acompanhei as filmagens das obras adaptadas de minha mãe, e assisti às birras e desacordos entre ambos, onde a grande amizade prevalecia. Sinto o desaparecimento do Manoel como o afastamento de uma pessoa que caminhou na mesma estrada da vida com minha mãe, e outros amigos comuns — lamentou Mónica Baldaque, filha de Agustina.
Em 2009, estreou “Singularidades de uma rapariga loura”, protagonizado por seu neto, Ricardo Trepa. Oliveira se baseou num conto homônimo de Eça de Queiroz, transferindo a história do século XIX ao século XXI. Depois realizou, com Pilar López de Ayala como atriz principal, o já mencionado “O estranho caso de Angélica’.
Quando completou 100 anos, em 2011, teorizou sobre a maturidade: “Com a idade, perde-se a juventude, mas, à medida que se perde a juventude e certas vitalidades próprias da juventude, aumenta-se a sabedoria, a prudência e várias outras qualidades. Enfim, Deus dá as nozes a quem não tem dentes”.
FILME INSPIRADO EM MACHADO DE ASSIS ESTAVA NOS PLANOS
Era o cineasta mais velho do mundo em atividade. “Faço um cinema de resistência, porque o cinema abusa em excesso da violência pela violência, do sexo pelo sexo e isso não leva a nada, só estimula a um tipo de desumanização”, dizia.
Sem diminuir o ritmo, fez um par de curtas — entre eles “Do visível ao invisível”, parte do filme coletivo “Mundo invisível” — e lançou em Veneza “O gebo e a sombra”, em 2012, com Claudia Cardinale, Michael Lonsdale, sua musa Leonor Silveira e Jeanne Moreau, sobre as consequências da crise econômica em Portugal e na Europa.
Seu penúltimo trabalho foi “O conquistador conquistado”, um curta metragem inspirado na escolha de Guimarães como Capital Europeia da Cultura, em 2012. Em abril do ano passado rodou seu último filme, “O Velho do Restelo”, com seus habituais parceiros Luís Miguel Cintra, Diogo Dória e Ricardo Trepa.
Oliveira planejava filmar o longa-metragem “A igreja do diabo”, a partir de contos de Machado de Assis, tendo nos papéis principais Lima Duarte e Fernanda Montenegro, dois atores dos quais gostava bastante. “Admiro muito a naturalidade dos atores brasileiros”, afirmava. Lima Duarte o havia encantado desde o papel de Zeca Diabo em “O Bem-Amado”. Fernanda Montenegro chegou a ser convidada para o papel principal de “O estranho caso de Angélica” (2010), mas já havia assumido compromissos antes de seu contato.
Para escrever o roteiro do filme baseado nas obras do escritor brasileiro, Oliveira encorpou o conto “A igreja do diabo” com outros dois, também de Machado, “Missa do Galo” e “Ideias do canário”.
100 anos
Seus últimos trabalhos são “O Velho do Restelo” e “Chafariz da Virtude”, de 2014. Desde 1981, manteve média de mais de um filme por ano. A paixão do cineasta fazia com que tratasse os sets de filmagem como uma extensão de sua casa.
Tanto que nem no dia em que completou 100 anos, deixou a cadeira de diretor. Filmava o longa “Singularidades de uma Rapariga Loira”, seu 42º longa, e corria para terminá-lo a tempo de apresentá-lo no Festival de Berlim de 2009.
Nascera no dia 11 de dezembro de 1908, mas seus documentos assinalavam que a data de seu aniversário era no dia 12. Contava que só o registraram no dia seguinte. Filho de industrial da região norte do país, Oliveira levou o realismo do cotidiano português, como a vida dos pescadores da cidade do Porto de seu primeiro documentário. Sua obra era carregada de fatalismo.
“Nós não determinamos o nosso destino, é o nosso destino que determina as nossas vidas. Não sabemos porque o destino nos pôs nessa Terra. Não somos senhores de nós próprios, dependemos de forças obscuras que nos dão os nossos impulsos”, disse o cineasta, em entrevista à “BBC”, em 2008.
Na entrevista, o cineasta afirmou que a ideia da morte era pacificadora. “Venha ao mundo como vier, a morte é sempre certa. Isso nos dá um certo conforto.”
Universal
Oliveira é considerado um dos autores mais universais de Portugal pela qualidade de sua obra, da qual fazem parte trabalhos como “Francisca” (1981), “A divina comédia” (1991), “Não, ou a vã glória de mandar” (1990) e “Um filme falado” (2003).
Seu legado, que preserva a memória do século 20, aborda desde a tradição bíblica até a filosofia de Nietzsche. Cineasta cultuado na Europa, ele trabalhou em sua longa carreira com atores como John Malkovich, Catherine Deneuve e Alfredo Mastroianni.
O primeiro ministro português Pedro Passos Coelho disse em um comunicado que Oliveira “foi uma figura central na projeção internacional do cinema português e, através de seus filmes, da cultura portuguesa e sua vitalidade”. O presidente Anibal Cavaco Silva disse em rede de televisão que “Portugal perde uma das maiores figuras de sua cultura contemporânea.”
(Fonte: http://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2015/04 – CINEMA – Do G1, em São Paulo – 02/04/2015)
(Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/filmes -15762736#ixzz3WBWqGeGU – CULTURA – FILMES – POR O GLOBO, COM AGÊNCIAS INTERNACIONAIS – 02/04/2015)
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