Francisca Praguer Fróes (Cachoeira, 21 de outubro de 1872 – Rio de Janeiro, 1931), foi das primeiras mulheres formadas em Medicina e também a defender direitos femininos.
Francisca formou–se na Faculdade de Medicina e Farmácia da Bahia, em 1893. Dedicou–se à Ginecologia e à Obstetrícia, defendeu a saúde, os direitos civis e políticos da mulher. O empenho de Francisca Praguer Fróes em defender o direito à saúde das mulheres infectadas por doenças sexualmente transmissíveis é notável e, nesse sentido, os preceitos higiênicos ganham força em suas proposições médicas.
Apesar de terem sido poucas aquelas que debateram publicamente questões relativas à moral ligada ao sexo, na católica Bahia, Francisca envolveu–se nas discussões científicas e políticas sobre o tema da saúde da mulher e da moral sexual. Envolvida numa discussão mais ampla acerca da construção da ordem burguesa, entendia que os temas da higiene, da saúde da mulher e da moral sexual deveriam fazer parte do quadro de regeneração social da época. Poucas foram aquelas que debateram publicamente questões relativas à moral ligada ao sexo, na católica Bahia.
No Brasil, a entrada das pioneiras no ensino superior, possibilitada pela urbanização, pelo crescimento do comércio e da indústria e por uma conjuntura mais favorável ao trabalho feminino no último quartel do século XIX, significou um marco fundamental na história da participação de mulheres no campo da medicina. Trata–se do momento em que começam a ser forjadas, na prática, as condições de ruptura de um mundo tradicionalmente masculino. As moças interessadas em ingressar na medicina e que, evidentemente, discordavam das proibições a elas impostas alardeavam que a prática médica se adequava bem às mulheres até “pelos padrões relativos à tradição de que os cuidados do corpo da mulher e da criança eram encargos femininos”4. Para além de uma condenação moralista, o exercício da medicina por mulheres revestiu–se de um caráter polêmico baseado na crença da incapacidade física e intelectual, na falta de autocontrole emocional e frieza de temperamento para executar, por exemplo, procedimentos cirúrgicos.
Apesar da forte separação entre as esferas privada da família e a pública, ao longo do século XIX, os limites impostos às mulheres dentro da família foram se tornando menos severos, em razão do processo de individualização no interior da família. Segundo Muriel Nazzari5, diante do afrouxamento nas relações de poder entre pais e filhos como conseqüência da legislação sobre a emancipação automática aos 21 anos de idade, no século XIX, ocorrem um aumento do individualismo e o enfraquecimento do caráter patriarcal da família. Assim, já no final do século, os filhos das camadas mais elevadas da população brasileira passaram a ocupar novos lugares sociais. Em que pese uma estreita visão ideológica sobre as atividades femininas na sociedade brasileira, a educação de algumas mulheres não permaneceu enclausurada nos valores da fé cristã e no inevitável “destino” de esposa e mãe. Enfrentando desafios, muitas delas escaparam aos micropoderes no quotidiano vivido, forjando singulares trajetórias de vida. Na passagem do século XIX para o século XX, a mera possibilidade de escapar da invisibilidade doméstica para a visibilidade pública evidencia mudanças consideráveis no modo de produção das próprias subjetividades femininas.
É de interesse para uma história social das mulheres lembrar que a luta pela participação feminina no ensino superior representou um dos passos mais importantes rumo à emancipação. Peter Gay6 escreveu que, na Europa, o acesso às faculdades suscitou polêmicas mais violentas do que o direito ao voto feminino. Os médicos do século XIX, principais responsáveis pela construção da imagem da mulher como mãe e esposa, suspeitavam das que adotassem uma atitude contestatória diante dos papéis exclusivos de mãe–esposa–dona–de–casa e almejassem um novo lugar no mundo e novas definições do “ser mulher”. Na França, por exemplo, nessa época, as profissões ligadas à saúde e ao direito só foram confiadas às mulheres depois da regulamentação das profissões ligadas ao magistério. A inserção das mulheres na medicina foi um processo lento e difícil, e muitos obstáculos tiveram de ser removidos até que as primeiras médicas, no mundo todo, fossem reconhecidas tanto por médicos como pela sociedade em geral. Michelle Perrot, numa referência ao sistema de poderes presentes no corpo social, ressalta que o exercício do poder não passa somente pela repressão, mas – sobretudo nas sociedades democráticas – pela regulamentação do ínfimo, pela organização dos espaços, pela mediação, pela persuasão, pela sedução, pelo consentimento.
A medicina parece ter atraído algumas mulheres dispostas a assumir outras responsabilidades sociais para além do lar e da família, como foi o caso de Francisca Praguer Fróes. A médica buscou um caminho para a liberdade e para a realização pessoal pela via do trabalho e, na luta pela existência, ela se reconstrói a si mesma negociando sua identidade, reinventando–se ante os imprevistos da vida. Nasceu em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, em 1872, um ano após ter sido aprovada a Lei do Ventre Livre, antes mesmo da abertura do ensino superior às brasileiras, em 19 de abril de 1879. Formou–se em Medicina em 1893, pela Faculdade de Medicina e Farmácia da Bahia, a primeira existente no Brasil, sendo a quinta “doutora em medicina” diplomada naquela Província. Era filha de Henrique Praguer (1837–1906), um imigrante judeu e croata que aportou na Bahia em 1863. Sua mãe, Francisca Rosa Barreto Praguer (1836–1909) nascera na Vila de Cachoeira, num mundo interiorano marcado pela cultura senhorial e escravocrata, num tempo em que a iluminação era à luz de querosene.
A história de Henrique Praguer em terras baianas aponta para o envolvimento do engenheiro com os processos de modernização das cidades de Salvador e Cachoeira, a ligação com abolicionistas históricos, o que sugere um significativo empenho para integrar–se àquela sociedade, sendo ele um cidadão europeu auto–exilado. Perfilhado aos princípios de “modernidade”, “civilização” e “progresso”, vinculara–se a profissionais liberais, todos eles empolgados, mais ou menos, com o “bando de ideias novas” absorvidas da Europa e ligados aos clubes republicanos locais e regionais. Na Bahia, uma fração da elite cultural estava comprometida – assim como membros progressistas das elites de outras regiões do país – com processos de construção da nação moderna e civilizada. Praguer foi responsável por numerosas obras modernizadoras da cidade, como a construção do Cais da Barra, o projeto do edifício destinado à Escola Normal (onde depois passaria a funcionar o Tribunal de Apelação e o Senado) e também o projeto do trecho da estrada de ferro de Salgada a Itiúba8. Publicou vários artigos sobre mineração na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, do qual foi um dos fundadores. Organizou também uma valiosa coleção de jornais, mapas, livros e documentos, além de uma vasta coleção de pedras preciosas encontradas em solo baiano.
Francisca Rosa foi uma autodidata, tendo, esporadicamente, professores em casa e tornou–se uma engajada mulher de letras. “Tomar a pena”, praticar a escritura, parece ter sido uma questão de sobrevivência espiritual para algumas mulheres que viveram no século XIX, inclusive a mãe de Francisca Praguer Fróes. Comprometida com os dilemas de seu tempo, reagiu contra a opressão a que estavam submetidas as brasileiras. Pais e maridos, segundo Francisca Rosa, haviam transformado as mulheres no “sexo escravo” do lar, numa espécie de regime de confinamento doméstico absoluto. Percebe–se, por meio de seus escritos, que tinha plena consciência do contraste cultural entre as políticas pedagógicas destinadas a meninos ou meninas. A raiz da “inferioridade” do “sexo frágil”, dizia ela, residia principalmente na deficiência, ou mesmo, ausência de uma educação que fosse além dos bordados e do piano. Estimulada pelas possibilidades do momento histórico em que acontecia a modernização da sociedade baiana, Francisca Rosa, aos 40 anos de idade, já vivendo em Salvador com sua família, passou a contribuir no Almanach do Diário de Notícias, adotando o pseudônimo de “A Cachoeirana”. Muito provavelmente, as restrições impostas pelo patriarcalismo fortemente arraigado no Nordeste brasileiro a tenham levado a proteger–se sob um pseudônimo. Nísia Floresta Brasileira, nascida no interior do Rio Grande do Norte, em 1810, considerada a pioneira na defesa dos direitos da mulher, também “denuncia o círculo vicioso que as impossibilitava de romperem sua dependência, e acusa o ´sórdido interesse´ dos homens pela permanência de tal situação, movidos que são pelo temor de se verem superados no desempenho de cargos públicos”9. Então, é de marginalização sexista que Francisca Rosa, bem como outras escritoras do século XIX, discorrem. A cachoeirana tocava diretamente na questão das relações de poder entre os sexos no seio da organização familiar; e, como outras mulheres de seu tempo, projetou o foco de suas preocupações no tema da “escravidão das mulheres” em pleno século da “razão” e do “progresso”, como elas afirmavam.
Ao tentar tornar visíveis fragmentos de experiências vividas por essas personagens, ainda que brevemente, busca–se demonstrar o lugar de onde falam e os ideais que repercutiram na vida adulta de Francisca Praguer Fróes, a filha, cujo vínculo profundo com sua mãe aparece na seguinte afirmação: “Eu sou feminista por herança e por convicção”. Os argumentos feministas embrionários de Francisca Rosa ganhariam força na atuação de Francisca Praguer Fróes e de outras bravas mulheres que, no final do século XIX e início do século XX, iam tomando a cena pública, assumindo–se como reformadoras sociais feministas.
Francisca Praguer Fróes exerceu a medicina na cidade de Salvador, especializando–se em ginecologia e obstetrícia, tendo intensa militância como jornalista nos movimentos feministas de seu tempo. Para se ter uma idéia do papel precursor da médica, é importante frisar que a presença feminina nas escolas secundárias, como no Ginásio da Bahia, só se verificou a partir da década de 1920, portanto, 27 anos depois de Francisca já ter defendido sua tese de doutoramento. Colaborou em vários jornais e revistas, tornando–se a única mulher redatora da importante revista médica brasileira, A Gazeta Médica da Bahia, até 1928. Casou–se com um ex–colega da Faculdade de Medicina, o médico e professor João Américo Garcez Fróes, em 1899, tendo com ele dois filhos.
Vivendo num contexto histórico marcado por fortes hierarquias de poder, acentuadas pela herança da escravidão, Francisca Praguer Fróes se valeu de jornais e revistas para divulgar suas idéias feministas, maneira encontrada por muitas mulheres daquele período para adentrarem e se fazerem ouvir no espaço público. Foi uma das primeiras a reivindicar o divórcio na Bahia, em 1917, o que representava uma afronta à Igreja católica. O movimento associativo de que participou, em Salvador, desembocou na fundação da Federação Bahiana pelo Progresso Feminino (FBPF) e da União Universitária Feminina (UUF), em 1931, entidades ligadas à Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, criada no Rio de Janeiro por Bertha Lutz. Francisca Praguer Fróes faleceu no Rio de Janeiro, em 1931, aos 59 anos de idade, pouco tempo depois de ter sido eleita presidente da UUF.
Parece plausível supor que Francisca já iniciara o movimento de construção de suas múltiplas subjetividades, para utilizar o conceito de Teresa de Lauretis10, que afirma serem os sujeitos capazes de constituírem numerosas subjetividades transgressoras, mesmo nos espaços mais cerceados pelo sistema de poder. Por outro lado, é provável que as mudanças nos centros urbanos brasileiros, as quais os tornaram mais complexos e diversificados, tenham reduzido o peso da tradição e da autoridade como fatores condicionantes do pensamento e da ação. Diferentemente de outras escritoras da época, jamais utilizou qualquer pseudônimo, como era costume, talvez por que a profissão de médica lhe conferisse prestígio e autoridade.
Evidentemente, não se trata, aqui, de pensar as trajetórias da médica baiana como uma linha de continuidade histórica. As experiências humanas são perturbadas por imprevistos, acidentes, mortes, acontecimentos inesperados e não apresentam fixidez ou linearidade em seu curso. A maioria das existências é, ao contrário, “revirada pelas forças coletivas que reorientam seus percursos de forma imprevista e geralmente incontrolável”11. Além do mais, não se deseja glorificar o passado, ou dotá–lo — “da aura que o magnifica, nem reduzir o presente às ruínas do que passou”12, mas tentar restabelecer elos entre o presente e o passado, pela reconstrução fragmentária de histórias vividas por personagens comuns, relacionando–as a processos sociais e culturais mais amplos. Ao fazer emergir os contextos de ações e interações da médica baiana, é possível problematizar fenômenos socioculturais numa sociedade marcada por diferenças de status e de raça, em processo de mudança, como a Bahia na virada do século XIX para o século XX.
Naquele período histórico, as mulheres que tiveram a chance de obter uma educação de qualidade, no Brasil, puderam ingressar nas profissões liberais. Relembremos como se concebia a educação destinada às brasileiras no século XIX.
A educação feminina baseada numa sólida formação — moral em detrimento da instrução — foi a forma que se desenvolveu com maior força na sociedade brasileira, embora outras concepções também estivessem germinando no meio intelectual. Nos processos educativos direcionados às moças das camadas altas, a ênfase recaía, primordialmente, nos princípios morais, religiosos e nos conhecimentos sobre a rotina doméstica. Entretanto, não existia uma única proposta de educação numa sociedade altamente estratificada e hierárquica como a Bahia. Convém lembrar que as oportunidades de ensino à população de origem africana eram reduzidíssimas, pois as crianças negras estavam desde cedo envolvidas na luta pela sobrevivência.
Numa época em que se opunham o público e o privado como esferas separadas de atuação de homens e de mulheres, muitos consideravam as tentativas de ingresso no ensino superior como algo maléfico para o sexo feminino, como já foi mencionado, pois, agindo assim, elas tenderiam a perder suas características de fragilidade, de docilidade e de emotividade. Nize da Silveira, nascida em 1905, formada pela Faculdade de Medicina da Bahia, de acordo com sua biógrafa Elvia Bezerra, foi desafiada pelo mestre de parasitologia, Pirajá da Silva, diante de seus 158 colegas de turma, a segurar uma cobra viva entre as mãos; e ela assim o fez por um minuto inteiro, entregando–a depois a um colega. Note–se, isto ocorreu em 1921, trinta anos após o ingresso de Francisca na mesma faculdade, o que remete à persistência dos preconceitos de gênero.
Francisca Praguer Fróes traçou para si um caminho diferente daquele trilhado pela maioria das mulheres de seu tempo. Além do mais, não há indícios de que ela tenha encontrado censura no âmbito familiar pelo fato de a medicina ser considerada, então, uma profissão masculina. Pode–se admitir que seus pais, assim como muitos educadores brasileiros do período, positivistas, anarquistas, conservadores, liberais estivessem investidos da crença no poder regenerador da educação, surgida desde o Iluminismo. A educação feminina, nessa perspectiva, “acabou por legitimar um campo profissional e um papel de alcance social para a mulher, fora da família, antes desempenhado unicamente no âmbito familiar – o magistério”13.
Francisca Rosa esteve sempre atenta à educação da filha, tanto que a jovem recebeu uma educação igual à dos irmãos. Transmitiu à sua filha valores feministas, ensinou–a a perseguir seus objetivos, a não se intimidar, a lutar por sua independência econômica e, também, pela autonomização de outras mulheres.
No final do século XIX, a legislação do ensino médico obrigava as estudantes a assistirem às aulas devidamente acompanhadas, sentando–se em cadeiras separadas dos colegas homens14. Essa exigência legal deu origem a um impasse no seio da família Praguer. A solução pragmática parece ter sido encontrada pelo engenheiro Henrique Praguer, que intimou seu filho Antonio a se tornar médico, não obstante já ter manifestado o desejo de estudar engenharia. Por mais penosa que fosse essa missão, o rapaz não recuou diante do sacrifício: formaram–se os dois irmãos no mesmo ano de 1893.
Essa solução familiar merece um breve comentário. Como observa Lewin15, no Brasil, até o advento da República, o pátrio poder “foi uma expressão reservada para o exercício da autoridade paterna pelo chefe da família — isto é, referia–se à autoridade paterna sobre filhos menores ou solteiros adultos vivendo com seus pais”. Esse foi o dispositivo usado para fazer com que Antonio declinasse do seu desejo de estudar engenharia em prol da vocação médica da irmã. –Como explicar a submissão de Antonio Praguer aos desígnios familiares para que estudasse medicina e não engenharia, como era sua vontade? Ao que parece, nesse caso, não se trata propriamente de dominação masculina, mas de controle familiar em relação aos jovens, ou como diz Maria Thereza Bernardes16, “o peso da dominação de uma geração sobre a outra”.
Buscando apreender, por meio desses acontecimentos, situações sociais concretas, é possível perceber que, no que se refere às formas de poder no interior da família, o agrupamento familiar aqui focalizado parece desmistificar modelos rígidos de relações intrafamiliares, que aprisionam os sujeitos em papéis dicotomizados, em que a condição das mulheres ocupa, quase sempre, uma posição de inferioridade no seio da família brasileira. Este não foi o caso da obstetra baiana. Na verdade, Francisca e muitas outras souberam “apossar–se dos espaços que lhes eram deixados ou confiados, para desenvolver sua influência junto às portas do poder”7.
Itinerário médico–intelectual
A carreira profissional de Francisca iniciou–se quatro anos depois de proclamada a República, quando a jovem contava 21 anos de idade. Trabalhou como interna da Clínica de Partos do Hospital Santa Isabel, pertencente à Santa Casa de Misericórdia da Bahia. Deu continuidade ao seu trabalho na Maternidade da Bahia, que veio a se chamar Maternidade Climério de Oliveira, a partir de 1912, conservando esse nome até hoje. Desde o período em que trabalhou como residente no Hospital Santa Isabel, ainda cursando o último ano da faculdade, defrontou–se com a dura realidade da pobreza das mulheres que viviam em Salvador e suas manifestas conseqüências para a saúde. A médica filiou–se ao higienismo, o qual representava a possibilidade de “redenção” do povo brasileiro pelo saneamento. Sua excessiva preocupação com a prevenção de “doenças venéreas”, como a sífilis, era justificada pela elevada incidência de pacientes contaminadas pelo chamado “mal venéreo”17.
Teve contato íntimo com as anônimas das camadas desprivilegiadas, trabalhadoras ou desempregadas, muitas delas portadoras de doenças sexualmente transmissíveis. Procurava demonstrar que certas doenças propagadas por contato sexual também poderiam ser transmitidas da mãe para o feto, durante a gestação. Isto significa dizer que as moléstias contagiosas eram entendidas pelos médicos, assim como pela obstetra baiana, desde a virada do século XIX, estendendo–se até as décadas iniciais do século XX, como um “grave perigo de saúde individual e coletiva”18. Era necessário intervir na sociedade, vencer o “atraso colonial”.
Ao que parece, o contato intenso da médica com a miséria feminina provocou uma reação e um impulso para que ela lutasse pela saúde da mulher de diferentes condições sociais, pela proteção do corpo feminino contra as doenças sexualmente transmissíveis, por uma gravidez sob cuidados médicos (pré–natal), pela moral sexual, contra o adultério e contra o descaso dos governantes em relação às condições sociais das gestantes. Gisela Bock19 demonstra, em seu estudo, que foi justamente a condição de pobreza das mães de prole numerosa, das mães solteiras, das viúvas desamparadas, que motivou as feministas provenientes das classes altas a canalizarem suas preocupações em defesa da proteção da maternidade. O empenho de Francisca Praguer Fróes em defender o direito à saúde das mulheres é notável e, nesse sentido, os preceitos higiênicos ganham força em suas proposições médicas. Envolveu–se nas discussões científicas e políticas sobre o tema da saúde da mulher e da moral sexual. Entretida numa discussão mais ampla sobre a construção da ordem burguesa, entendia que os temas da higiene, da saúde da mulher e da moral sexual deveriam fazer parte do quadro de regeneração social da época. Além disso, como médica, a doutora Praguer Fróes20 questionou a pretensa inferioridade física e intelectual definida cientificamente nos termos masculinos, sua “cientificidade” e “universalidade”, propondo uma outra percepção do corpo e da maternidade, da noção de cidadania, dos direitos civis e políticos. Atacou o excessivo poder dos homens sobre as mulheres, mas acreditava que o predomínio sexual haveria de “se extinguir um dia e com ele também as diferenças somáticas (do corpo) anteriormente consideradas como peculiares ao sexo feminino”.
Em 1923, participando da Semana Médica, durante as comemorações do Centenário da Independência da Bahia, apresentou um trabalho sobre profilaxia matrimonial, em que demonstrava a importância da proteção sanitária aos genitores para prevenir as situações de risco que causariam problemas físicos e psicológicos sérios à mãe e ao recém–nascido. Seu trabalho teve boa repercussão na categoria médica da época, já que, de um modo geral e, apesar da diversidade de discursos, os médicos compartilhavam da crença no saneamento das relações conjugais. O objetivo da medicina higienista era, no dizer de Kátia Muricy21, integrar a família à ordem urbana. O ensaio da doutora Praguer Fróes foi publicado em forma de opúsculo, divulgado na edição especial da Gazeta Médica da Bahia, nesse mesmo ano22. O foco principal de suas reflexões e intenção pedagógica recaíram sobre a incidência de “doenças contagiosas” entre mulheres das camadas altas da população, transmitidas pelo casamento, em virtude do desregramento dos maridos, bem como as “medidas” para preveni–las.
Regina Morantz–Sanches23, ao estudar as trajetórias de mulheres médicas norte–americanas formadas no século XIX, explica que “[elas]se preocupavam com os problemas de saúde das mulheres e das crianças porque queriam erguer o tom moral da sociedade através do aperfeiçoamento da família”. Francisca defendeu o casamento monogâmico “verdadeiro” como a única forma de preservar a saúde e a dignidade das mulheres. Como se pode notar, a médica baiana não separa o aspecto físico do moral, na medida em que o conceito de higiene abarca o indivíduo como um todo: a fisiologia e princípios morais.
De um modo geral, os médicos higienistas e eugenistas da época, entre os quais estava presente Francisca Praguer Fróes, visavam à implantação de novos valores e costumes – um ethos moderno – promovendo o trabalho assalariado, o mercado, incluindo–se a forte oposição à religiosidade e costumes populares nada afeitos à moralidade burguesa. A obstetra baiana participou intensamente desse debate, articulando seus pontos de vista médicos com as idéias feministas, como fica explícito quando propôs a profilaxia matrimonial, a igualdade de direitos e obrigações no interior da família, a educação sexual para ambos os sexos, o atestado pré–nupcial, a monogamia verdadeira – pensando na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e na proteção da saúde da mulher e de seus filhos. Em sua tese, Monteiro de Almeida cita os exemplos da sífilis e do alcoolismo, considerados os dois flagelos sociais que grassavam durante a primeira República24. Observa–se no discurso de Francisca Praguer Fróes a preocupação com as condições de saúde física e psíquica das mulheres e daqueles que serão os futuros cidadãos do país; eles deveriam ser protegidos por medidas higiênicas, tendo em vista a produção de indivíduos saudáveis, “capital humano” para a civilização e para o progresso da nação. Segundo Carrara18, as prostitutas brasileiras foram “diretamente culpabilizadas pela difusão das ‘doenças venéreas’, enquanto que nos Estados Unidos elas foram “perseguidas e encarceradas em prisões […]” Segundo Ferreira Filho25, em Salvador, foi criada a Polícia dos Costumes durante a Primeira República, no governo J. J. Seabra – tendo a “repressão policial assumi[do]muitas vezes, um caráter de campanha sanitária”. Em outras palavras, era preciso assumir o controle da prostituição e dos crimes sexuais – defloramento, rapto, lenocínio.
Em relação à prostituição, Francisca Praguer Fróes desafiou os homens de sua própria classe social ao afirmar que as prostitutas não deveriam ser consideradas as únicas responsáveis pela proliferação de “doenças venéreas”, como aparecia no discurso de médicos e juristas, mas também os homens casados que as freqüentavam. Portanto, a médica coloca a nu os preconceitos que se escondem por trás de arraigadas concepções então vigentes, tendo em vista transformar o quadro social e cultural baiano. Importa realçar, ainda, que a ginecologista e obstetra integrava uma categoria de especialistas muito atentos à normatização dos “excessos” sexuais — comportamento identificado à época como sendo patológico —, criticando veementemente o adultério. Poucas foram aquelas que debateram publicamente questões relativas à moral ligada ao sexo, na católica Bahia. É interessante observar que Francisca atribuía o adultério ao “sexo livre”, isto é, aos homens, entendendo que o “sexo frágil”, moralmente superior, era incapaz de praticá–lo. Ora, num estudo feito sobre o sistema de casamento no Brasil, a historiadora Nizza da Silva26 explica que a prática do adultério por mulheres de elite era muito comum na Colônia e durante todo o século XIX.
Note–se também que a Dra. Praguer Fróes se inseriu, como profissional, entre importantes médicos baianos que participaram do projeto regenerador brasileiro das décadas de 1920 e 1930. Para ela, antes de tudo, as doenças contagiosas representavam uma ameaça à integridade física e psíquica das mulheres. Lamentava a possibilidade de que as pacientes infectadas crônicas ficassem estéreis, conforme o dogma estabelecido à época. Se, por um lado, ela lutou pela cidadania feminina, por outro, se envolveu com a defesa da saúde da mulher, combatendo a dupla moral, ou seja, a infidelidade masculina e as “doenças venéreas” transmitidas pelo casamento.
Empenhada na construção de um projeto político–cultural moderno e regenerativo, Francisca Praguer Fróes visava à inclusão das mulheres nos direitos de cidadania, neles incluindo–se o direito à saúde e ao voto. Parece oportuno lembrar com Ferreira que o ideal republicano que “instaura as mulheres como geradoras de cidadãos” não lhes reservava o lugar de cidadãs, o que provocava revolta entre aquelas que não viam a “diferença sexual” como um fato natural. Essa revolta contra a dominação, essa aspiração à liberdade não é um sentimento isolado, pois está presente na voz de várias feministas brasileiras desde a segunda metade do século XIX.
A partir da valorização da maternidade, Francisca Praguer Fróes procurou estabelecer um vínculo entre reprodução e direitos civis e políticos, já que considerava a maternidade um trabalho social das mulheres, como demonstra o estudo de Rago17,devendo, por conseguinte, ter a sua compensação, isto é, a garantia de direitos sociais e políticos, inexistentes até então. De modo sutil, ela estabeleceu uma relação entre o fato natural da maternidade e a maternagem — os cuidados com a prole, o aleitamento, o afeto — enfim, a experiência sociocultural da maternidade. Logo, seu objetivo era vincular maternidade e cidadania. Francisca, ao que parece, apropriou–se do discurso do “altruísmo inato” da mulher como mediação necessária para exigir, em contrapartida, os direitos políticos que até então lhe haviam sido negados. O engajamento político de Francisca efetivou–se no momento em que inscreveu o fenômeno social da maternagem — que pesa sobre “uma creatura destinada a todas as lutas” — no campo da política, exigindo, desse modo, direitos e renegociando as normas culturais estabelecidas. Até aquele momento (1931), as expectativas de obtenção do direito de voto não tinham sido cumpridas, apesar da intensificação da luta pelo sufrágio por Bertha Lutz e suas companheiras da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, desde 1927.
Como reformadora feminista, Francisca Praguer Fróes desejava uma redefinição dos códigos morais sobre educação moral e sexual (amor, casamento, maternidade, divórcio, adultério, prostituição), articulando esses temas ao discurso das desigualdades de gênero. Dessa maneira, procurou estabelecer um elo entre feminismo, moral sexual e princípios higiênicos, a fim de formular a reivindicação pelos direitos civis e políticos da mulher.
Francisca viveu num momento histórico em que os médicos chamaram a si tarefas de cientistas sociais, de moralistas e de educadores, e, nesse sentido, ela foi uma mulher conseqüente com suas convicções, especialmente em relação à conscientização e empoderamento das mulheres. Como médica e feminista, enfrentou os desafios de seu tempo, assumindo problemas difíceis de serem resolvidos.
Para finalizar, gostaria de registrar que esses fragmentos de experiências vividas fornecem apenas elementos provisórios sobre trajetórias de mulheres com dificuldades de resolver os dilemas de seu tempo. Esses itinerários reais de vida permitem, no entanto, refazer processos sociais, políticos e culturais que permanecem como desafios para a nossa contemporaneidade. Um parêntese: no que se refere à relevante preocupação da médica com a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, devemos lembrar que a Organização Mundial de Saúde estima que, no mundo, ocorram cerca de 340 milhões de casos de DST por ano28. No Estado de São Paulo, foram notificados, entre 1998 e 2005, 6.400 casos de sífilis em adultos.
Numa época em que a força dos feminismos residia em sua negatividade, isto é, “na sua capacidade de apreender a dominação por trás das relações consideradas como constitutivas da natureza humana […]”, como bem mostra Varikás, Francisca Praguer Fróes soube conduzir a discussão sobre os direitos civis e políticos para dentro da esfera política, dessa maneira, dando visibilidade à dominação existente por trás das concepções deterministas sobre uma condição feminina abstrata, as quais transformavam os espaços de realização feminina em áreas de acirrados conflitos. Sua vida foi pautada por desafios e o futuro desenhado como uma utopia.
Cabe ainda esclarecer que não é nossa intenção enquadrar as reflexões da médica em alguma vertente do pensamento médico, já que seu discurso é constituído por inúmeras dispersões e paradoxos. O que se procura ressaltar é sua criatividade e sua ousadia na tentativa de mesclar a medicina com o feminismo, temas que só podem ser entendidos dentro da conjuntura específica da época.
(Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232008000300020 – Elisabeth Juliska Rago – Ciência e Saúde coletiva vol.13 no.3 Rio de Janeiro May/June 2008)
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Artigo apresentado em 17/12/2006
Aprovado em 10/09/2007
Versão final apresentada em 04/04/2008