De 1924 a 1972, a transformação do “escoteiro” em buldogue
J. Edgar Hoover (Washington, D.C., 1º de janeiro de 1895 – Washington, D.C., 2 de maio de 1972), foi praticamente um pioneiro na adoção de métodos científicos de investigação criminal e na rigorosa preparação profissional dos agentes. Criou um laboratório criminal e uma escola de polícia considerados modelares, e instituiu fichários que abrigam mais de 300 milhões de impressões digitais.
Os seus métodos e os seus sucessos fizeram dele o mais famoso policial do século 20 e do FBI a mais respeitada máquina de investigação do mundo.
Quando menino, pequeno e frágil como um querubim, cantava no coro de uma igreja luterana de Washington. Mais tarde foi recusado pelo time de futebol do ginásio: pesava menos de 50 quilos. E, ao ser nomeado diretor do Birô Federal de Investigações, em 1924 (tinha 29 anos), houve quem dissesse, inspirado em seu físico franzino e nas feições de menino, que haviam escolhido um escoteiro para o lugar de um policial.
No entanto, se lhe derem tempo bastante, um homem sempre acaba por se parecer com aquilo que é, no fundo.
Os G-Men – A lenda começou a surgir na década de 30. Em 1924, o presidente Coolidge entregara ao jovem funcionário do Departamento de Justiça uma repartição corroída pela corrupção e pelo empreguismo. Em poucos anos, Hoover a transformou numa máquina incorruptível e eficiente.
Com isso, o FBI estava preparado para o banditismo dos anos da Depressão. E o seu prestígio cresceu á medida que os gangsters famosos John Dillinger, Pretty Boy Floyd, Baby Face Nelson eram mortos pelas metralhadoras dos G-Men (G de governo). A captura do raptor do filho do aviador Charles Lindbergh ampliou a sua popularidade e a Segunda Guerra Mundial, trazendo-lhe a responsabilidade da caça aos espiões, permitiu ao FBI um crescimento que jamais se interrompeu. Na década de 1970 teve quase 20 000 funcionários e estava construindo uma nova sede, orçada na época em 102 milhões de dólares.
Depois da guerra veio a guarda dos segredos atômicos dos Estados Unidos e a caça aos comunistas, que se mantém como uma das preocupações permanentes do FBI. “O comunismo”, disse Hoover certa vez a um Congresso que jamais ousou lhe negar as verbas que pedia, “não é um partido político, mas uma maneira de viver. Uma maneira maldosa e maligna de viver.”
Afetuosamente A maneira de viver do próprio Hoover, embora não maligna, estava longe de ser comum. Nela não havia lugar para a variedade: seus hábitos eram rígidos como os princípios que regiam sua vida de solteirão puritano. Durante 48 anos no FBI, só mudou o restaurante onde almoçava uma vez, e isso porque o seu preferido foi demolido. Tirava férias sempre no mesmo motel de La Jolla, na Califórnia, e frequentava as mesmas corridas de cavalos, onde suas apostas eram, religiosamente, de 2 dólares por páreo. Por onde andasse, ao seu lado estava o diretor-assistente do FBI, Clyde Tolson. Sempre faziam as refeições juntos: o jantar era um dia na casa de Tolson, o outro na de Hoover, repleta de objetos de jade e bronze e de placas e troféus.
Nunca se ligou o nome de Hoover ao de mulher alguma, a não ser quando, em 1971, o colunista Jack Anderson, ironicamente insinuou um escândalo ao revelar a existência de cartas de Hoover a uma certa viúva chamada Muriel Geier; o dado picante era o fato de que ele assinava afetuosamente, J. Edgar.
Na verdade, a única presença feminina na vida do diretor do FBI parece ter sido sua mãe, Annie Hoover, que morou em sua companhia até morrer.
Tinta azul – O FBI e o poder que ele significava pareciam ser as únicas coisas que interessavam realmente a Hoover. Como um pai severo que afasta seus filhos das tentações do mundo, ele impôs seus padrões puritanos pessoais a todos os níveis da organização.
Os agentes tinham de ser tão impecáveis no vestir como rápidos no gatilho. Hoover chegou ao ponto de demitir um funcionário que passara uma noite com a namorada. O clima, no quinto andar do Departamento de Justiça, era o de um mosteiro, cujo abade a todos vigiava, de sua sala de 10 metros de comprimento. Ali, com uma caneta de tinta azul a única em todo o FBI, para que não houvesse dúvidas quando uma mensagem vinha do chefe -, ele lia e anotava relatórios que chegavam de todos os cantos dos Estados Unidos. Suas anotações eram ordens que não se discutiam.
Certa vez, um agente ocupou todo o papel, não lhe deixando espaço para suas observações, e Hoover, irritado, anotou: “Watch the borders”*. Durante uma semana, obedientes G-Men se postaram nas fronteiras com o Canadá e oMéxico, dispostos a tudo.
O declínio – Se dentro do FBI o seu poder era absoluto, fora dele, até quase o fim, Hoover era respeitado como nenhum homem público americano jamais o foi. Sete presidentes o confirmaram no cargo e, no Congresso, seu prestígio nunca foi abalado. Ser contra Hoover era – conforme a época – ser a favor dos bandidos, dos nazistas ou dos comunistas, uma pecha a que poucos candidatos a cargos eletivos se poderiam arriscar impunemente. Além disso, uma das virtudes lendárias do FBI era a onisciência, e conta-se que Hoover gostava de tranquilizar congressistas com a intranquilizante notícia de que mandara retirar todas as informações a seu respeito do fichário geral e as guardara consigo “para que nada acontecesse.”
Nos últimos anos, entretanto, o declínio começou. Hoover criara o FBI à sua imagem e não só a organização tinha as suas virtudes e os seus defeitos como envelheceu com ele. Aos poucos, mas cada vez com mais força, surgiu a constatação de que o gigante nem era inatacável nem imbatível. Começou-se a dizer que Hoover era vaidoso e usava o FBI para se promover; Hoover tentava transformar o FBI numa organização policial de tipo totalitário; Hoover falsificava e exagerava estatísticas sobre o combate ao crime; Hoover censurava o telefone de congressistas; Hoover esquecia os criminosos comuns e perseguia estudantes e líderes negros.
A maré da desmoralização cresceu, nos últimos dois anos, a ponto de gerar, na Casa Branca, sonhos sacrilégios de uma aposentadoria, com todas as honras, para o velho buldogue. Mas velhos buldogues são teimosos. E, na manhã de 2 de maio de 1972, após um dia normal de trabalho no FBI, igual a todos os outros de 48 anos, J. Edgar Hoover foi encontrado morto em sua cama. Tivera a morte tranquila de quem não tem nada a temer de ninguém.
Muito antes de sua morte, no início de maio, aos 77 anos, já era inevitável a comparação de John Edgar Hoover com um buldogue. Baixo, troncudo, quase sem pescoço, um rosto redondo onde a carranca raramente se desfazia – tudo nele, desde a meia-idade, lembrava o animal cuja principal virtude é a tenacidade com que se agarra à sua presa.
Ao longo de mais de quatro décadas, a presa muitas vezes mudou de nome – gangsters, espiões nazistas, agentes comunistas, agitadores da extrema esquerda -, mas, fosse qual fosse o inimigo, ele sempre o denunciou e o perseguiu com a mesma feroz determinação.
Richard Nixon falava por milhões de americanos quando, nas exéquias realizadas dia 2 de maio, disse que “J. Edgar Hoover converteu-se em lenda viva sendo ainda jovem e viveu à altura dessa lenda com o passar das décadas.”
O problema com as lendas é que costumam ser maiores e, conforme o caso, melhores que a realidade. Para muitos outros americanos, Hoover não passava de um cínico usuário do poder, que manipulava ao sabor de rencores e preconceitos pessoais. Tendo sido diretor do FBI por 48 anos, ele teve tempo de sobra tanto para justificar o mito como para contradizê-lo.
(Fonte: Veja, 10 de maio de 1972 – Edição nº 192 – Pág; 38 e 40)
* “Vigiem as margens”; a palavra “border” tanto significa “margem” como “fronteira”.