François Duvalier, presidente vitalício do Haiti, foi eleito presidente do Haiti, em 1957

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“Dizem que eu torturo pessoalmente os prisioneiros políticos, que durante os ritos vudus eu dirijo pessoalmente os sacrifícios humanos, que por trás dessa minha aparência de homem calmo, pensativo e intelectual se esconde um monstro. Por quê?”

Baby Doc: pesada herança para o Haiti

François Duvalier (Porto Príncipe, 14 de abril de 1907 – Porto Príncipe, 21 de abril de 1971), o “Papa Doc”, presidente vitalício do Haiti.

Começo promissor – Quando Duvalier foi eleito presidente do Haiti, em 1957, o país já era, uma espécie de imenso gueto de miséria no continente americano. Pobreza tão grande, que não pode ser medida: estatística praticamente não existiam e ainda não existem. Pior do que isso, os poucos números obtidos precariamente mostram não apenas a estagnação, mas o retrocesso, em toda a economia. Sob o regime de Papa Doc, a renda per capita passou de 80 para 77 dólares e a porcentagem de analfabetismo ultrapassou os 90%. Em todo o país existem 302 médicos (descontando o próprio Duvalier) e a cada dia aumenta o número de mendigos que perambulam por Porto Príncipe.

O ditador começou na política de maneira promissora. Médico recém-formado, ganhara popularidade combatendo moléstias tropicais no interior do país. Anos mais tarde, já ditador, iniciou a construção, perto da capital, de uma cidade modelo em miniatura: creches, escolas, hospitais, centro de recreação para os operários. São esses dois, ao que se sabe, os únicos esforços positivos de sua vida. Ambos frustrados.

Espíritos malignos – O serviço médico no Haiti é tão precário, que os raros centros de saúde se limitam, às vezes, a explicar aos pais que não se deve cortar o cordão umbilical dos recém-nascidos a facão, nem por estrume sobre feridas. A infância do Haiti, na verdade, está tão abandonada quanto a cidade modelo, Duvalierville. A construção foi interrompida há muitos anos e tudo o que restou das escolas e das creches são estruturas mal definidas.

Em alguma época da sua vida é possível que Duvalier tenha pensado em transformar realmente a vida do seu povo. Não foi capaz, ou as circunstâncias não permitiram. Cuidou então de simplesmente manter-se no poder, e dessa vez a ignorância e a superstição do seu povo transformaram-se de inimigos em aliados. Profundo conhecedor dos ritos primitivos do vudu, promoveu uma nova onda de superstições onde seu nome aparece misturado aos espíritos malignos que o povo acredita não poder contrariar. No fim da vida, com a inteligência menos lúcida, ele próprio teria passado a acreditar na força da magia tomando decisões políticas baseado em conversas com espíritos.

Veleiros clandestinos – As ambições econômicas foram reduzidas a uma simples coleta de dinheiro através de expedientes. Em 1962 negou-se a apoiar qualquer penalidade da OEA contra Cuba, até os Estados Unidos concederem créditos para a construção do novo aeroporto. Dentro dos Estados Unidos, seus maiores aliados seriam os membros da Máfia, encarregados desde 1968 de conseguir novos clientes para o cassino de Porto Príncipe. E os haitianos que desejavam sair do país foram obrigados a pagar taxas exorbitantes pelos passaportes assinados pessoalmente pelo ditador ou por uma passagem nos veleiros clandestinos que todas as noites abandonam o Haiti.

Prenúncio do caos – De resto, seguia apenas as regras básicas de qualquer ditadura. Um apolícia política particularmente brutal e corrupta, com licença para a chantagem indiscriminada; prisões onde se fala ou se morre, e periódicos fuzilamentos exemplares. Rosalie Adolphe, mulher que chefia há vários anos o destacamento dos Tonton Macoutes de Porto Príncipe e a prisão de Fort Dimanche, conseguiu manter uma certa ordem na hierarquia policial. Agora, no entanto, seu lugar deve ser preenchido por alguém de confiança do novo governo, e essa modificação no comando de 10 000 ou 15 000 homens armados pode ser o início do caos temido por uns e esperado por outros.

O Exército do Haiti é precário, sua Marinha quase enexistente e a Aviação nula. Em junho de 1969, quando um avião desconhecido jogou coquetéis Molotov sobre o palácio presidencial, os três aviões existentes tentaram um combate. O primeiro recusou-se a funcionar, o segundo fez uma aterragem forçada e o terceiro sumiu entre as nuvens, em direção à liberdade.

O câncer da prostáta, a arteriosclerose e a diabete conseguiram em poucos meses o que uma dezena de invasões e golpes fracassados não conseguiram em catorze anos de uma das mais estranhas e sanguinárias ditaduras do Caribe. Numa hora imprecisa da noite de 21 de abril, a morte veio finalmente encerrar a carreira de François Duvalier, presidente vitalício – mas não perpétuo – do Haiti. No dia seguinte, uma multidão desorientada se lamentava pelas ruas de Porto Príncipe.

Futuro incerto – No caso de Duvalier, não será preciso esperar pelas primeiras explosões de contentamento. Não é difícil imaginar os sorrisos que a morte do ditador provocou entre as famílias das 2 000 pessoas que perderam a vida ou a razão nos cárceres de Fort Dimanche pelo crime de oposição política. Parece certo, igualmente, o alívio do milhão de haitianos que, forçados pela miséria e pela ditadura, se asilaram além das fronteiras. Cortadores de cana em Cuba e na República Dominicana, operários, choferes de táxi, e ajudantes de cozinheiro nos Estados Unidos e nas ilhas Bahamas, técnicos no Canadá e na África, estudantes na Europa, agrônomos em Israel, centenas de milhares de pessoas tenham começado a pensar, na possibilidade de um retorno a seu país.

Em Nova York, onde existe a maior colônia de exilados do Haiti (cerca de 200 000) que discutiam animadamente em creole (uma complicada mistura de francês do século XVII com dialetos africanos e espanhol arcaico) a morte de François Duvalier. O otimismo reinante era moderado: Yves Volel – líder da organização Résistence Haitiense, que se apresenta como uma das mais ativas – declarava que a luta dos exilados está longe de se encerrar. “É o fim de uma ditadura sangrenta, mas na realidade nada vai mudar.” O ex-presidente Paul Magloire pensa que “ainda é cedo para se formar uma opinião”.

Estranha unanimidade – Horas antes de que a notícia do falecimento de François Duvalier fosse oficialmente divulgada em Porto Príncipe, seu filho, Jean Claude (Baby Doc), de dezenove anos, tomou posse como presidente. Pelas suas primeiras declarações (“Estou decidido a continuar a obra do meu pai com a mesma energia e intransigência”) parece realmente disposto a ocupar a cadeira presidencial com todo o peso dos seus 140 quilos.

Sua nomeação, decidida alguns meses atrás pelo ditador já doente, não provocou qualquer oposição visível. Na ocasião, as Forças Armadas entregaram uma carta a Papa Doc, afirmando que “o presidente será respeitado e seu filho, Jean-Claude, líder da esperança dos jovens, será, chegada a hora, o continuador inconteste e incontestado da revolução Duvalier”. Pouco depois, um referendo realizado em todo o Haiti deu como resultado o apoio de 2 319 916 eleitores à posição adotada pelos militares.

Naturalmente tudo isso aconteceu no tempo em que François Duvalier estava vivo. Sua ausência pode alterar rápidamente essa estranha unanimidade – para complicar as coisas, há a própria figura de Jean-Claude. Não existem na verdade provas concretas de que aos dezenove anos ele seja totalmente incapaz de governar um país. Tudo o que se conhece dele é o fato de ter terminado os estudos secundários e apreciar companhia feminina com grande entusiasmo.

Difícil adaptação – Entre os exilados de Nova York ouve-se com frequência a opinião de que ele será derrubado na primeira oportunidade. Um eventual sucessor seria sua irmã mais velha Marie-Denise. Em 1966, Marie-Denise (Dede) demonstrou uma certa independência ao escolher para marido Max Dominique, atraente oficial que costumava aparecer ao lado de seu pai nas cerimônias oficiais. Os obstáculos da escolha (uma mulher e dois filhos) foram facilmente removidos com 30 000 dólares e três passagens para a Jamaica.

Max, no entanto, não se adaptou inteiramente ao novo ambiente familiar. Em 1967 recusou-se a assistir a uma cerimônia de fuzilamento, comandada pessoalmente por Duvalier, de dezenove oficiais rebeldes: a maioria dos condenados eram seus amigos. Obrigado a fugir para o exterior com sua esposa, foi condenado à morte à revelia. Um ano mais tarde reconciliou-se com o ditador e ganhou a embaixada em Madri, de onde foi transferido para Paris.

Nesse ambiente de ambições desencontradas entre um rapaz de dezenove anos, policiais corruptos e organizações clandestinas, o Haiti recebe a herança política de Duvalier e espera a ascensão de um novo líder. Mesmo assim é possível que o país tenha razões de tímidas esperanças: um governo pior do que o anterior é práticamente impossível.
Duvalier faleceu dia 21 de abril de 1971, aos 64 anos, do coração, em seu palácio-fortaleza de Porto Príncipe, deixando o poder para seu filho Jean Claude, dezenove anos.

(Fonte: Veja, 28 de abril de 1971 –- Edição 138 – DATAS – Pág; 72/ – INTERNACIONAL – Pág; 36)

 

 

 

É afastado do poder o ditador do Haiti J. C. Duvalier, o Baby Doc, filho de Papa Doc, em 7 de fevereiro de 1986.
(Fonte: Zero Hora – ANO 50 – N° 17.651 – Almanaque Gaúcho/ Por Ricardo Chaves 7 de fevereiro de 2013 – Pág; 62)

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