Mitterrand no final da vida: coragem para o acerto de contas
O cortejo fúnebre em Jarnac: as duas famílias do ex-presidente, finalmente reunidas
François Mitterrand (Jarnac, Charente, 26 de outubro de 1916 – Paris, 8 de janeiro de 1996), um dos presidentes mais fascinantes da França no século XX.
Ninguém na França, no século XX, permaneceu mais tempo no poder do que François Maurice Marie Mitterrand. Presidente por dois mandatos consecutivos, de 1981 a 1995. Personalidade complexa, Mitterrand soube imprimir sua marca em seu tempo. Como governante, fascinou os franceses até sua morte, mesmo encarnando o político ambivalente que promete uma mercadoria e entrega outra. Tido como herói da Resistência, admitiu em 1994 que trabalhou para o regime pró-nazista de Vichy antes de se bandear para o lado do bem. Elegeu-se em 1981 anunciando a aurora socialista ao povo, que festejou a vitória distribuindo rosas vermelhas. No poder, começou a aplicar o programa de nacionalizações das esquerdas, mas só por um breve interlúdio. Mitterrand logo rompeu a aliança com os comunistas e acabou presidindo a agonia socialista.
À parte a ambivalência, os feitos de Mitterrand não são modestos. Ele governou os franceses num período em que o país, que agora faz as contas da crise no sistema de bem-estar social, consolidou-se como potência industrial. No plano mundial, destacou-se como um dos principais arquitetos da União Europeia. Foi ministro onze vezes, até se tornar o líder dos socialistas e principal voz da oposição ao gaulismo. Tenaz, tentou eleger-se presidente em 1965 e 1974, mas foi derrotado. No poder a partir de 1981, soube manobrar para mantê-lo mesmo depois dos desastres eleitorais da esquerda em 1986 – quando aceitou governar em “coabitação” com a direita – e em 1993.
A doença, revelada publicamente em 1992, não o impediu de concluir o segundo mandato. Em dezembro de 1995, ainda encontrou forças para viajar ao Egito no Natal com Mazarine, a filha de 21 anos, produto de uma relação extra-conjugal com Anne Pingeot, restauradora do Museu d Orsay. De retorno a Paris no dia 2 de janeiro, Mitterrand estava decidido a morrer. Previamente informado de que morreria em até três dias se parasse de tomar medicamentos, suspendeu sua medicação no sábado 6. Redigiu suas exigências para o enterro e morreu dormindo, na manhã de segunda-feira, 8 de janeiro.
ACERTO DE CONTAS - A preparação para o ato final vinha sendo ensaiada desde 1992, quando, numa guinada surpreendente para quem ostentava um perfil imperial e o apelido de “Esfinge” ou, simplesmente, “Deus”, Mitterrand passou a buscar, obsessivamente, um acerto de contas com seu passado. Primeiro contou que tinha um tumor maligno na prostáta, uma suspeita que os boletins médicos oficiais negavam (na verdade, o câncer estava instalado no organismo do presidente desde 1981). Depois, em 1994, assumiu em público a existência de Mazarine sem se aborrecer com as acusações de duplicidade – afinal, a filha natural comprovaria que seu casamento com Danielle Gouze, com quem teve dois filhos (Jean-Christophe e Gilbert), havia se tornado uma união de fachada. Danielle nunca deu um pio sobre o escândalo e revelou grandeza ao incorporar Anne e Mazarine ao cortejo fúnebre de Mitterrand, em Jarnac, cidade do sudoeste da França onde ele foi enterrado em comovente cerimônia privada, enquanto os grandes do mundo inteiro assistiam a uma missa espetacularmente solene em Notre Dame.
Mas o ato mais ousado de Mitterrand em seu afã de lavar a alma em público foi o reconhecimento de seu passado direitista no início da II Guerra Mundial. Mexendo num assunto delicadíssimo num país que teve um papel ambíguo na guerra, Mitterrand atribuiu o erro às perplexidades de um jovem advogado de formação católica e cheio de ambições políticas. A desculpa é meio esfarrapada, mas não será de estranhar se Mitterrand tiver deixado pronta outra explicação para vir a público no futuro – ele é bem capaz dessas surpresas. Mitterrand morreu no dia 8 de janeiro de 1996, aos 79 anos, corroído por um câncer de próstata, em Paris.
(Fonte: Veja, 17 de janeiro de 1996 - Edição 1427 - N° 3 - Ano 29 - Memórias - Pág; 43)
(Fonte: Veja, 8 de abril de 1998 - Edição 1541 - N° 14 - Ano 31 - Ideias - Pág; 118)
O socialista François Mitterrand vence a eleição presidencial francesa, em 10 de maio de 1979.
(Fonte; Zero Hora – ANO 46 – Nº 15.957 – Hoje na História – Almanaque Gaúcho/ Por Olyr Zavaschi – 10 de maio de 2009 – Pág; 54)