Curt Lange e a descoberta do “barroco mineiro”
Franz Kurt Lange (Eilenburg, 12 de dezembro de 1903 – Montevidéu, 3 de maio de 1997), ou, na versão latinizada, Francisco Curt Lange, importante musicólogo alemão, nasceu em Eilenburg em 12 de dezembro de 1903 e faleceu em Montevidéu em 3 de maio de 1997.
Graduou-se em arquitetura na Universidade de Munique em 1927, e doutorou-se em Bonn em 1929, com uma tese sobre a polifonia nos Países Baixos. Estudou regência com Arthur Nikish (1885-1922), um dos maiores nomes da regência, e responsável em grande parte pelas reputações das orquestras de Leipzig (Gewandhaus) e Berlim (Filarmônica) cargos que acumulou até a morte.
Além de estudar regência e piano, Curt Lange foi discípulo dos mais eminentes musicólogos alemães: Adolf Sandberger (1864-1943), Ernst Bücken (1884-1949), Erich Hornbostel (1877-1935), Curt Sachs (1881-1959) e do belga Charles van den Borren (1874-1966).
Tudo isso aí informado pelo verbete do The New Grove’s Dictionary.
Como se vê, o cara não era fraco nada. Estava se preparando para ser um eminente entre os eminentes sábios alemães. Mas aceitou convite em 1930 para vir ser diretor do recém-criado Servicio Oficial de Difusión Radio Electrica, SODRE, do governo uruguaio.
Em Montevidéu, convitou como regente da orquestra a ser mantida pelo SODRE o fantástico Lamberto Baldi, italiano que estava meio perdido em São Paulo, cidade que não tinha orquestra em 1932.
Quando chegou em Montevidéu, Baldi deve ter comentado com Curt Lange sobre um rapaz muito promissor que tinha sido seu aluno de regência e composição por uns poucos anos em São Paulo: Camargo Guarnieri. A partir de 1934 Curt Lange começou a se corresponder com este jovem compositor e é aí que a história começa pra mim.
O arquivo pessoal de Curt Lange está hoje depositado na Biblioteca Central da UFMG.
Uma das coisas que tem lá no acervo, é uma fabulosa correspondência com deus-e-o-mundo. Quando chegou na América do Sul, Lange se empolgou com a possibilidade de se construir aqui as mesmas redes culturais que se formavam entre as cidades da Europa. Se os sul-americanos estivessem dispostos a trabalhar em conjunto, a vida musical passaria por uma efervescência sem precedentes. Trabalhar em prol da cultura musical, para gente como Curt Lange era quase uma religião.
Então Curt Lange começou os contatos com todos os músicos importantes da América. Guardou todas as cartas que recebeu em pastas separadas por compositor. Todas (ou quase todas) as cartas que enviou ele guardou cópias em carbono, encadernou por ano e fez um índice por missivista, numerando todas as cartas. Quem for lá ver o arquivo vai achar que o Curt Lange não fazia outra coisa na vida além de ler e escrever cartas. Mas acredite, ele fazia muito mais.
Fundou uma Sociedade Inter-americana de Musicologia, sediada em Montevidéu. E começou a tentar juntar essa gente toda num movimento que ele batizou de Americanismo Musical. Acho que ninguém se empenhou tanto como deveria, por que o negócio não deu muito resultado. Entre outras coisas, os músicos sul-americanos preferiam ficar brigando uns com os outros feito idiotas, invés de trabalhar em conjunto.
Também a cooperação inter-americana foi meio que atropelada pelas iniciativas do Pan-americanismo liderado pelos EUA, o que com os bilhões de dólares que o governo Roosevelt dedicou a diversos projetos, acabou minando um pouco as iniciativas que partiam do sul do continente.
Mas uma das coisas que o Curt Lange fez foi editar o Boletim Latino-Americano de Musicologia. Cada volume seria dedicado a um país. Cada país tratado no volume se encarregaria de montar uma equipe de autoridades para escrever os textos, seriam escolhidas algumas partituras a serem publicadas dos principais compositores. E o governo de cada país cuidaria da impressão.
Tudo correu bem ate chegar a vez do Brasil, país ao qual seria dedicado o volume VI do Boletim.
E aí descubro sem querer umas histórias meio escabrosas na correspondência entre Lange e Guarnieri, quando estou pesquisando sobre outra coisa. Um dia ainda vou escrever um artigo sobre a novela (ou seria thriller) do volume VI do Boletim. Se alguém for lá primeiro consultar a correspondência do período 1943-1946 pode fazer isso antes que eu, que ainda tenho que terminar antes uma tese sobre o Guarnieri. Mas se apresse, que a tese termino em julho próximo.
No meio de todas as trapalhadas possíveis e imagináveis para o Brasil publicar o seu volume, Curt Lange se mudou “temporariamente” para o Rio de Janeiro, conseguindo uma licença de Montevidéu. Era para ficar fora uns 6 meses, encaminhar tudo e voltar. Mas as coisas se enrolaram dum jeito que ele ficou no Brasil até dezembro de 1945, e ainda voltou para Montevidéu sem ver o Boletim impresso. Entre outras coisas, aconteceram dificuldades com suprimentos de papel devido à guerra, mas também uma parte significativa da atrapalhação se deveu à má-vontade explícita de Villa-Lobos que era o encarregado da questão da parte do governo brasileiro.
Fofocas de bastidores à parte, Curt Lange deu um jeito de aproveitar o tempo ocioso à espera dos trâmites burrocráticos (é trocadilho mesmo) do Boletim. Não ficou à toa nos dois anos e meio que esteve preso aqui. Acessorou a montagem da Discoteca Pública de São Paulo e de Belo Horizonte, além de ajudar a fundar várias orquestras no país. Nas horas vagas foi pesquisar a passagem pelo Brasil de um dos maiores músicos do continente no século XIX – o pianista de Nova Orleans Luis Moreau Gottschalk, que morreu no Rio de Janeiro em 1869. Lange pesquisou nos arquivos de periódicos da Biblioteca Nacional, trabalhando com documentação que até hoje os historiadores deconhecem no Brasil. Isso porque o livro nunca foi publicado em português. Saiu uns dez anos depois pela Universidade de Cuyo, em Mendoza, na Argentina, onde Lange exerceu o cargo de diretor do departamento de música na década de 1950. Até hoje nunca vi este livro citado em nenhuma bibliografia, mas está lá no Acervo Curt Lange da UFMG.
Mas a principal coisa que Lange fez durante seu tempo ocioso, foi a descoberta de toda a vida musical do período do ouro em Minas Gerais.
Patrocinado pelo então prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek, Curt Lange pesquisou os arquivos eclesiásticos das cidades auríferas (Ouro Preto, Diamantina, São João del Rei, Tiradentes e Mariana) tendo em mente uma tese que até então não tinha ocorrido a nenhum brasileiro. A riqueza do ouro, as explêndidas igrejas a literatura dos árcades e a arte de um Aleijadinho – tudo isso só podia apontar para uma riqueza cultural que certamente teria uma expressão musical.
Acontece que as irmandades do século XVIII ainda existiam (e exitem até hoje) e conservavam fabulosos acervos de partituras antigas. Trabalhando como um mouro durante pouco mais de dois anos, só nas horas vagas, Curt Lange consultou (e “pegou emprestado” também) considerável documentação, que o levou a escrever uma história completamente desconhecida da música do ciclo do ouro.
Trabalho pioneiro a qual vem se somando o recente trabalho dos musicólogos brasileiros.
Lange publicou muitos volumes de escritos e partituras, mas um apanhado geral das suas pesquisas foi escrito para um dos volumes da coleção História Geral da Civilização Brasileira, organizada por Sérgio Buarque de Holanda.
As teses de Curt Lange já merceram revisão por parte dos historiadores, especialmente a questão do mulatismo musical (a idéia de que os mulatos teriam uma aptidão natural para a música, o que justificaria a grande qualidade técnica das obras descobertas por Lange). Mas o pioneirismo do seu trabalho continua a conclamar os pesquisadores a arregaçarem as mangas e irem para os arquivos.
(Fonte: https://historiadamusicabrasileira.wordpress.com/2010/03/08/curt-lange-e-a-descoberta-do-barroco-mineiro)