Georges Pompidou, primeiro-ministro e presidente, um exemplo clássico de político sem ilusões.

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O primeiro chefe de governo da França que não foi, antes, parlamentar, ministro ou sequer político

Georges Pompidou (1911-1974), primeiro-ministro e presidente da República francês, foi um exemplo clássico de político sem ilusões. Com o mesmo ceticismo sorridente com que se projetou na França em doze anos de poder quase ininterrupto – como primeiro-ministro de Charles de Gaulle a partir de 1962 e como presidente a partir de 1969, com um ligeiro hiato intermediário.

O silencioso vencedor – Durante longos anos, ele deu a impressão de ser um diletante na vida, um “touche-à-tout” brilhante, que experimentava tudo sem se engajar em nada. Como estudante em Albi e nos melhores liceus parisienses, Georges Pompidou colecionava os primeiros lugares nos exames – mas, junto com o diploma de honra da seleta École Normale Supérieure, recebeu uma admoestação que poderia tipificar toda a sua carreira de macia ascensão ao poder: “Não pudemos evitar que o prêmio lhe fosse concedido”, disseram os professores. “Mas foi com pesar. De todos os ‘normaliens’, o senhor foi quem menos estudou.

Nos anos 50, Pompidou foi um diretor brilhante do exclusivo banco Rothschild – mas encontrou tempo para produzir, em pouco mais de oito meses, uma preciosa “Antologia da Poesia Francesa”, com quinhentas páginas que vão de Deschamps a Éluard. E, nos anos 60, como primeiro-ministro de Charles de Gaulle, pode conciliar seus traços de esteta, que se movimentava com elegância entre os marchands de quadros, com o estrategista que delineou a política militar da França junto aos generais do Comitê da Defesa Nacional.

Pompidou também não renegou sua essência de gourmet das coisas finas e gourmand da vida, amante do teatro, apreciador da beleza e da elegância femininas, amigo de boêmios e artistas – de Sacha Distel ao pintor, então da moda, Bernard Buffet. Sobretudo, jamais perdeu a curiosidade por todas as artes e novidades culturais, temperando a austeridade do Palácio Matignon com projeções privadas das últimas criações de Jean-Luc Godard. Até assumir a presidência em 1969, Pompidou circulou entre Paris e Saint-Tropez com sua mundana mulher Claude, cercado pela ruidosa “bande à Pompon”, heterogêneo grupo de artistas, aristocratas e intelectuais.

No entanto, essa imagem de amador que atingiu o poder ajudado pela simples desígnios da sorte é só aparente. Por trás do sorriso de degustador da vida, do olhar irônico e do cigarro pendendo dos lábios, o ex-professor de grego e latim apenas escondia o senso do realismo, a desconfiança para com o grandiloquente, a prudência e a obstinação que forjaram sua original, complexa carreira. Na verdade, Pompidou revelou totalmente esses traços de sua personalidade quase secreta somente pela maneira corajosa como enfrentou a doença, a agonia e morte.

Universo parisiense – A província de Auvergne, no centro da França, onde Pompidou nasceu, 62 anos atrás, sempre foi a terra da fidelidade ao rei e à Igreja. É uma região dura, ingrata, de onde só se sai para ser bem sucedido na vida – isto é, em Paris. Mas um neto de camponeses, filho de aplicados professores secundários do interior, não poderia subir os últimos degraus do Palácio do Eliseu só por acaso ou com indiferença, sem pelo menos uma paixão secreta pelo poder.

E Georges Pompidou, projetado de sua quieta paisagem ancestral de casarões baixos para o universo parisiense, chegou à presidência manuseando três ferramentas: inteligência intuitiva do poder, discrição profissional e uma admirável noção do momento de avançar.

Talvez o feito maior de Pompidou – uma personalidade tão cética quanto paciente e rica em humor – tenha sido o de entrar na intimidade de Charles de Gaulle, logo após a guerra, e na estima da nação francesa, até hoje traumatizada com a ocupação nazista e a colaboração do governo de Vichy, sem ter participado da Resistência. Essa mesma agilidade tornou-o mais tarde um banqueiro sem jamais ter lido um balanço. E, finalmente, o primeiro chefe de governo da França que não foi, antes, parlamentar, ministro ou sequer político – na verdade, até ser nomeado primeiro-ministro, em 1962, Pompidou nunca tinha recebido um único voto.

A atividade militar do homem que seria o braço direito do general de Gaulle limitou-se a alguns meses de alistamento no 141.° Regimento dos Alpes, no início da guerra – antes de ser desmobilizado e retornar ao magistério no Liceu Henri IV de Paris. E, por mais que se procure em sua biografia alguns impulsos de heróica militança clandestina, encontra-se, como única evidência de um engajamento antinazista, sua recusa em sentar-se abaixo do segundo balcão da Commédie Française – para evitar qualquer contato com oficiais alemães apreciadores da cultura francesa.

“Detesto as medalhas” – De fato, para os biógrafos oficiais, contar a atuação de Pompidou durante a guerra é a pior parte do trabalho – não há, simplesmente, o que contar. “Desmobilizado em agosto de 1940 (…), ele rapidamente entrou em contato com a Resistência”, escreveu um desesperado redator da embaixada francesa em Washington, numa biografia para a imprensa. “Claude e Georges Pompidou abrigaram muitas pessoas procuradas pelos alemães (…): por vezes, eles serviram de agentes de ligação (…): no seu liceu, Pompidou, às vezes, engajou-se em propagandas imprudentes, a ponto de, em julho de 1944, ele ter sido avisado de que poderia vir a ser detido…”

Na realidade diária da época, Pompidou era mais notado por chegar atrasado todas as manhãs no liceu, com as mãos no bolso, nenhuma anotação, caderno ou livro, mas um indefectível Lucky Strike no canto dos lábios – em meio ao racionamento draconiano de cigarros. Ele próprio, entretanto, jamais se sentiu diminuído. “Quanto ao romantismo da Resistência”, declarou alguns anos atrás a um jornalista americano, “aos verdadeiros heróis ou aos que se proclamam heróis (…), detesto todas essas histórias. Detesto as medalhas, as condecorações de qualquer espécie.”

Segunda decisão – Mas não foi apenas com a Resistência que Pompidou não se comprometeu. Ao longo de sua carreira pouco ortodoxa, ele não se amarraria como militante de partido algum. Por temperamento, o militantismo o aborrecia. Para ele, a política só tinha sentido na medida de sua ambição pessoal – ela não era a luta pelo poder, mas o próprio poder. Esta ambição talvez tenha começado a brotar em Pompidou aos 30 anos, quando, já casado com Claude e pai de um filho, Alain, assistiu a 26 de agosto de 1944, perdido numa multidão eufórica de 2 milhões de parisienses, à passagem do heróico cortejo da Libertação nos Champs-Elysées – e viu, pela primeira vez, de Gaulle.

Poucas semanas depois, Pompidou tomava a “segunda decisão mais importante” da sua vida – a primeira tendo sido seu casamento, em 1934, com a jovem estudante de direito Claude Cahour, elegante, ambiciosa filha de um médico anarquista de província. Para desespero de seu pai, Léon, e de sua mãe tuberculosa, Marie-Louise, ele abandonou o magistério, para entrar na política – mas discretamente, pela porta dos fundos, e pelas mãos de um ex-colega da École Normale, René Brouillet, chefe adjunto do gabinete de de Gaulle.

Sua missão não era grandiosa – assessor para assuntos de Educação Nacional “que saiba escrever direito”, segundo exigência única do general – e sua pequena sala na rua Saint-Dominique ficava fora dos passos triunfantes de de Gaulle, ali instalado em seu novo QG. Ainda assim, esse foi o primeiro de uma série de extraordinários movimentos intuitivos que empurrariam Pompidou sempre para cima na direção do poder. De fato, em meio a outros 320 funcionários gaullistas vindos da Resistência de Londres, de Argel ou do “maquis” francês, que se afrontavam duramente por um chamado, uma saudação mais pessoal, uma sala mais próxima à do general, Pompidou se contentava em esculpir memorandos concisos, apresentar projetos concretos, distinguir o essencial a fazer. Foi sua primeira prova de paciência e obscuridade.

Auréola de mágico – Em 1946, quando Pompidou já improvisava soluções para o Ministério da Informação – inclusive o renascimento de uma imprensa livre e a fundação do jornal “Le Monde”, além de assessorar seu amigo Brouillet em questões de política interna -, de Gaulle anunciou sua retirada da direção política da nação. Começou então para “Pompon”, como ele nunca se zangou em ser chamado, a grande, longa prova de fidelidade e discrição.

Realmente, enquanto a maioria corria para o campo dos políticos em ascensão, Pompidou decidiu investir seu respeito e amizade no general marginalizado. E, numa série de movimentos precisos, conseguiu rapidamente chamar a sua atenção. Com o uso de puro senso prático, salvou da falência a Fundação Anne de Gaulle* para meninas retardadas, conquistando a auréola de mágico aos olhos da esposa de de Gaulle, Yvonne. Com a mesma habilidade, e sem qualquer filiação partidária, ele reabilitou os anêmicos cofres do movimento gaullista, negociando coma editora Plon condições excepcionais para a publicação das “Memórias” do general.

Ao mesmo tempo, ele administrava, num pequeno escritório de l’Université – longe das salas oficiais do partido, das assembleias, das reuniões públicas -, os hipersensíveis contatos de de Gaulle com a classe política em ebulição. E, como chefe de gabinete do general retirado, Pompidou passou a ser a emanação direta do futuro presidente.

De relance – Desde então, Pompidou jamais deixou de ser a sombra do general – acompanhando-o, cada vez mais intimamente, até o esperado retorno ao poder. E nem mesmo sua fulgurante carreira no banco Rothschild – onde ingressou pelas mãos de um amigo, para tornar-se dois anos depois, e sem falar o inglês, o segundo homem depois do barão Guy de Rothschild – fez com que diminuísse suas atenções para com de Gaulle.

A recompensa teria de esperar até o ensolarado dia de janeiro de 1959 em que o general foi empossado como primeiro presidente da V República. Mas, então, ela seria régia. De Gaulle, simplesmente, fez Pompidou sentar-se a seu lado na limusine que subiu triunfalmente os Champs-Elysées – deixando o presidente demissionário René Coty, perplexo, a pé. Foi, talvez, a primeira vez que o público francês viu de relance o sucessor de de Gaulle.

Pompidou, a essa altura, era um dos homens mais influentes da França – mas ainda não estava no governo. Após trabalhar seis meses como secretário de de Gaulle, voltou ao banco. E, ali, esperou pela hora certa. Ela viria em abril de 1962, quando o gaullista ortodoxo Michel Debré foi rudemente obrigado a ceder o cargo de primeiro-ministro. O nomeado, em seu lugar, era Georges Pompidou.

Contato secreto – Raras vezes, como nessa ocasião, os franceses terão ficado tão surpresos. “De Gaulle nos despreza a tal ponto”, indignou-se um ministro, “que nos faz presidir por seu secretário.” Outros se insurgiram contra a nomeação de um homem forte das finanças privadas. Mesmo após sua ascensão à presidência, essa suspeita haveria de persegui-lo: uma das piadas de salão mais frequentes dizia que as iniciais “RF”, nos portões do palácio presidencial, não mais significavam “République Française” e sim ” Rothschild Frères”.

Para a grande maioria dos franceses, ao mesmo tempo, o jamais ouvido nome Pompidou, assim como o lugar de nascimento do novo primeiro-ministro – Montboudif -, não podiam ser levados a sério. Pompidou? Montboudif? Um estadista não podia combinar com esses nomes. Talvez não pudesse, mas o desconhecido já tinha uma experiência tão grande ou maior que a de qualquer ministro.

Um ano antes, como enviado pessoal do general de Gaulle, Pompidou, numa missão precursora do estilo kissingeriano, havia viajado para a Suíça – dizendo no banco que iria esquiar. E lá, no auge do drama da guerra da Argélia, fez o primeiro contato secreto com representantes da Frente de Libertação Nacional argelina, abrindo caminho para a conferência de paz de Evian.

Explosão – Apesar de já ter 50 anos quando lhe foram dadas as primeiras rédeas oficiais do poder, Pompidou não perdeu tempo: assim como aprendera a nadar só aos 40 anos, mas em apenas poucas horas, o novo chefe do governo dominou a arte da política em pouco tempo. De qualquer forma, durante os primeiros seis anos no Palácio Matignon, preferiu atuar em tom menor, parecendo mais eficaz que brilhante, mais prático que doutrinário. Sem uma única palavra de protesto em público, Pompidou executou mediadas gaullianas tão controvertidas como a retirada da França da NATO ou a exclusão da Inglaterra do Mercado Comum.

Seu grande momento viria com a rebelião estudantil e operária de maio de 1968. Enquanto os mais ilustres gaullistas perdiam-se na perplexidade, Pompidou, numa explosão de energia, assumiu quatro ministérios, negociou com sindicatos e estudantes, orientou a polícia em sua repressão aos santuários estudantis que antes frequentara e controlou a economia à deriva. Mas que tudo, enquanto o general de Gaulle batia em retirada desconexa, foi o único político francês capaz de administrar uma calamidade nacional.

Uma heresia – Quando, logo depois, o governo obteve uma estonteante maioria nas eleições gerais, era Pompidou, não de Gaulle, quem aparecia como o arquiteto da vitória. Dez dias mais tarde, ele pagaria com a perda do cargo de primeiro-ministro a heresia de ter se tornado um homem de mais peso para o país que o general. Mas, a essa altura, nem mesmo Charles de Gaulle podia evitar a ascensão final de Georges Pompidou ao Palácio do Eliseu.

No espaço de apenas dois meses – abril a junho de 1969 – a nação francesa, impassível, assistiu à melancólica renúncia do general e à eleição popular de seu renegado delfim. Até a morte de de Gaulle, em novembro de 1970, o poder na França ainda pareceu dividido: legalmente, ele estava no Eliseu, moralmente, no retiro do herói da França, em Colombey-les-deux-Églises. Nesse período, Pompidou ainda se mostrou contido. Mas, à medida que o poder de aço do general foi passando para as memórias nacionais, Pompidou assumiu integralmente o reinado da França.

Ali, nos últimos cinco anos, ele substituiu as expressões de grandeza cultivadas pelo general por um vocabulário mais modesto e funcional. Em seus discursos, ele falava de problemas, contratos, progresso, felicidade. Talvez mais que qualquer outra coisa, Georges Pompidou terá sido o arquiteto que demoliu uma França de papel, grandiosa e cheia de orgulho, para construir uma outra, mais modesta e vulnerável, habitada por franceses que dependem de vizinhos e aliados.

(Fonte: Veja, 10 de abril, 1974 – Edição n.° 292 – INTERNACIONAL/FRANÇA – Pág; 28/34)

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