Gérard de Nerval (Paris, 2 de maio de 1808 – Paris, 25 de janeiro de 1855), fez parte da última geração romântica francesa.
Cronologicamente, Nerval corresponde a um final e a um início. Ao final de um ciclo: nascido em 1808, seis anos mais novo que Victor Hugo e treze anos mais velho que Baudelaire, faz parte da última geração romântica francesa, aquela dos Jeune France liderados por Petrus Borel, freqüentadores do Petit Cénacle, que participaram da Batalha do Hernani em 1830 (para essas e outras informações, Nerval, Gérard de, Oeuvres complètes, org. Jean Guillaume, Claude Pichois e outros, Éditions Gallimard, Paris, vol. I, 1989, vol. II, 1984; vol. III, 1993, Gallimard, Paris). E a um início: aquele do verdadeiro romantismo francês, não só pela tradução, aos dezenove anos de idade, do Fausto (elogiada pelo próprio Goethe). Foi o tradutor e difusor na França de românticos alemães, reunidos na coletânea Poésies allemandes; e, em especial, um leitor da vertente onírica e fantástica de Hoffmann e Jean-Paul.
Representante do romantismo interior examinado por Béguin, do subjetivismo herdeiro dos românticos alemães, Nerval também representou a continuidade romântica entre arte e vida. Ninguém confundiu a tal ponto a esfera simbólica e aquela dos acontecimentos biográficos. Foi um personagem de si mesmo. Sua biografia traz um fascínio adicional à leitura da obra: inclui a agitação boêmia em companhia de outros românticos, como Gautier, Borel e Houssaye; as viagens, algumas delas parecendo de um beatnik precursor; a paixão pela atriz Jenny Colon, a quem conheceu em 1836, e que morreria em 1843 (o que não o impediu de ter outras relações com mulheres); a dilapidação de praxe de uma herança (para patrocinar uma revista teatral através da qual cultuava sua amada); as crises, surtos e internações a partir de 1841 (ou antes, conforme sugerido nas notícias biográficas das Oeuvres Complètes), culminando com o suicídio em 1855 crises e surtos que não o impediram de escrever o equivalente a duas mil páginas (em formato Pléiade) de 1850 até sua morte.
Conseqüentemente, foi e pôde ser, de pleno direito, auto-referente, a pronunciar-se na primeira pessoa de diferentes modos: nos relatos e crônicas de viagens reais, nos quais, no entanto, introduziu bastante ficção, especialmente em Voyage en Orient; em ficções, a exemplo de Pandora e das narrativas de Les filles du feu, apresentados na primeira pessoa, além de incorporarem acontecimentos reais. De modo recíproco, projetou-se em personagens, como na história de Raoul Spifâme, o louco que acreditava ser outro, em Le Roi de Bicêtre de Les Illuminés. Segundo Max Milner (no prefácio da edição da Livre de Poche de Les Illuminés), no início do extenso trecho sobre Restif de la Bretonne em Les Illuminés é relatado o encontro do autor de Noites Parisienses com uma atriz; na verdade, seria o encontro do próprio Nerval com Jenny Colon. E, finalmente, Nerval foi personagem de si mesmo em Aurélia. Por isso, o comentário de Steinmetz sobre Petits châteaux de Bohême vale para o conjunto da sua obra: somos constantemente convidados a passar de um regime de leitura a um outro, do domínio fictício ao domínio vivido: de toda evidência, através de referências dadas e como que impostas, uma outra realidade tende a vir à luz.
Fazem parte de uma cultura romântica, igualmente, as ligações de Nerval com o esoterismo. Como relatou na abertura de Les Illuminés e comentou em Aurélia, com a mãe morta quando acabara de completar dois anos de idade e o pai, médico militar, em campanha, foi criado por um tio-avô, colecionador de livros de cabala, alquimia e magia. Teria aprendido a ler através dessas obras. Faz parte da continuidade nervaliana entre arte e vida o protagonista de seus relatos ficcionais, a exemplo de Angélique, ser um pesquisador em acervos dos quais a biblioteca do seu tio-avô foi o modelo.
Nerval prosseguiria e ampliaria essa pesquisa ao longo de toda a sua vida, orientado por um propósito místico resumido neste comentário de Richer: A obra de Nerval é, pois, um perpétuo esforço de reintegração. Pode-se, por isso, conferir-lhe a condição, não só de interessado e fascinado por doutrinas esotéricas, mas de conhecedor. Assistemático, embaralhava fontes, ou deixava de citá-las, mas, sem dúvida, sabia claramente do que falava, como se vê por esta caracterização do martinismo em Les Iluminnés, como doutrina que renovava simplesmente a instituição dos ritos cabalísticos do século XI, último eco da fórmula dos gnósticos, onde algo da metafísica judaica se mistura às teorias obscuras dos filósofos alexandrinos.
Nerval, quando do seu delírio de 1841, edificou pelo que seus textos e suas cartas nos permitem perceber , sob a invasão das imagens de seu inconsciente, um mundo quase gnóstico paralelo ao nosso. Seu sincretismo daquele tempo não correspondia embora pudesse parecê-lo a um princípio de confusão, mas tendia a construir um sistema intuitivamente justificativo das anomalias da sua vida, das dores que o haviam dilacerado, dos erros que ele havia perpetuado.
Uma característica importante de Nerval é sua duplicidade, comentada por estudiosos. Em Aurélia e As Quimeras, foi esoterista a sério. Em outros escritos, tratou das disciplinas herméticas e suas ramificações à distância, ironicamente, como um cronista e não como adepto. No prefácio de Les Illuminés, sobre a biblioteca de seu tio-avô, comentou que, bem jovem, absorvi muito dessa alimentação indigesta ou insalubre para a alma; e mesmo mais tarde, meu julgamento teve que se defender contra essas impressões primitivas.
As reformas de Paris a partir de 1848, com a destruição que precedeu a abertura dos grandes bulevares, embora sejam um dado mais importante para a interpretação de Baudelaire, também afetaram Nerval. Tiveram um efeito mais direto: por causa delas, foi desalojado, expulso de onde morava em 1850, para nunca mais ter domicílio fixo.
O estreitamento das perspectivas de Nerval e seus contemporâneos não foi apenas político. Em meados do século XIX, saíam do horizonte as possibilidades da realização do conhecimento total, da grande integração e síntese, reconciliando religião e ciência, misticismo e racionalismo. A filosofia romântica dos Schelling e Schlegel caía em desgraça. Na razão direta da perda de prestígio dos Werner e Ritter, das doutrinas vitalistas e organicistas na ciência, o determinismo tomava conta da cena, agora com um novo porta-voz, Augusto Comte, sistematizador e arauto do positivismo. Enfim, tudo parecia dar razão à premissa gnóstica adotada por ambos, Nerval e Baudelaire, de que o Tempo é uma via descendente, ao longo da qual tudo inexoravelmente tende a piorar.
(Fonte: http://www.revista.agulha.nom.br – revista de cultura – Fortaleza, são paulo – maio/junho de 2008 – Claudio Willer)