Foi uma pioneira, como fotógrafa e como ativista política
Gerda Taro (1° de agosto de 1910 – 26 de julho de 1937), fotógrafa, jornalista e ativista política.
Foi uma mulher muito liberada para seu tempo, priorizando seu trabalho em detrimento de qualquer papel feminino mais tradicional.
Robert Capa e Gerda Taro: o amor em tempos de guerra
A história começa com uma foto. Em 1934 o jovem fotógrafo húngaro André Friedmann, que vive no exílio em Paris, é encarregado de fazer fotos para o folheto publicitário de uma seguradora de vida suíça. Procurando modelos potenciais, ele aborda a jovem refugiada suíça Ruth Cerf num café na Margem Esquerda e a convence a posar para ele num parque em Montparnasse.
Como não confia plenamente no fotógrafo jovem, charmoso e mal vestido, Ruth chega acompanhada de sua amiga Gerta Pohorylle, uma ruiva mignon com sorriso cativante e jeito autoconfiante. Assim tem início o relacionamento mais icônico na história da fotografia, uma história complexa que funde política racial, boêmia e coragem e que, nos anos passados desde então, assumiu ares de um mito moderno.
Juntos, André Friedmann e Gerta Pohorylle mudariam seus nomes e seu destino, virando Robert Capa e Gerda Taro, os mais famosos documentaristas visuais da Guerra Civil Espanhola. Também juntos eles mudariam a natureza da fotografia de guerra, reinventando-a de modo que encontra eco até hoje.
Capa se tornou o mais famoso dos dois e possivelmente o mais conhecido fotógrafo de guerra do século 20, graças às suas imagens viscerais dos desembarques do Dia D na praia Omaha, na Normandia. Sua frase mais famosa viraria um ditado seguido por gerações de fotógrafos de guerra que o seguiram: “Se suas imagens não são boas o suficiente é porque você não chegou perto o suficiente”.
Essa abordagem ousada e despreocupada, obtendo imagens da ação desde seu interior, custaria as vidas tanto de Gerda Taro quanto de Robert Capa: a primeira morta na linha de frente da Guerra Civil Espanhola em 1937, o segundo, na explosão de uma mina terrestre na Indochina em 1954.
O mito de Robert Capa e Gerda Taro continua hoje, com a publicação no Reino Unido do romance “Waiting for Robert Capa” (à espera de Robert Capa), da escritora e professora espanhola Susana Fortes. Publicado originalmente na Espanha em 2009, o livro recebeu o cobiçado Prêmio Fernando Lara nesse país e, desde então, já foi traduzido para 20 idiomas; os direitos para o cinema foram comprados por Michael Mann, o premiado diretor de “Fogo Contra Fogo” (1995), “O Informante” (1999) e “Inimigos Públicos” (2009).
O livro de Fortes é essencialmente um romance histórico que foca principalmente o relacionamento entre Capa e Taro. Embora os dados históricos sejam precisos, Fortes literalmente coloca palavras nas bocas dos dois protagonistas, imaginando conversas, pensamentos e discussões, além de acentuar o romance malfadado e o espírito de audácia e despreocupação daqueles tempos.
Tendo a Guerra Civil Espanhola como seu principal pano de fundo, a narrativa é uma fusão intranquila, às vezes desajeitada, de fatos e ficção; é quase certo que desagrade aos muitos guardiões das reputações de Capa e Taro, assim como é quase certo que fascine o público cinematográfico “mainstream”, caso seja convertido em filme de Hollywood.
“Tentei ser muito respeitosa aos fatos –os dados biográficos, os locais etc.”, diz Fortes quando a procuro na Espanha, onde ela está em turnê de divulgação do livro. “Vasculhei tudo o que pude encontrar: cartas, biografias, livros de memórias. Mas, para que um romance possa respirar, é preciso dar alma a seus personagens. Isso se reflete nos diálogos, na tensão literária, nas brigas, na paixão, no sexo, nos sentimentos ambíguos. Ou seja, na vida. Isso faz parte do trabalho do romancista. Sempre escrevemos com um pé no chão e o outro no ar. É o único jeito.”
Mas, quando falo do livro para Jimmy Fox –veterano historiador da fotografia e ex-diretor da famosa agência Magnum, que Robert Capa fundou com Henri Cartier-Bresson–, ele diz: “Fiquei consternado com o romance. É tão bobinho, tão adocicado. Acho que é errado elevar o fator romance dessa maneira. Robert Capa foi um sujeito bombástico, grande bebedor e mulherengo que teve muitas amantes, incluindo Ingrid Bergman. Taro encontrou o amor de sua vida na pessoa de Ted Allan, o homem que estava com ela quando ela foi fatalmente ferida. Mas isso, é claro, não se encaixa tão bem na versão romântica simplificada.”
A cineasta independente Trisha Ziff, que dirigiu “The Mexican Suitcase” (2010), sobre a descoberta de um tesouro de negativos desconhecidos de Capa, Taro e David “Chim” Seymour, concorda: “Waiting for Robert Capa” é uma obra de ficção baseada num romance, mas é também um romance baseado numa ficção. Se virar um filme de Hollywood, o mito sem dúvida tomará o lugar dos fatos.”
Se existe algo sobre o qual todos os especialistas estão de acordo, é que nada no relacionamento de Robert Capa e Gerda Taro foi simples e direto. Pouco depois do primeiro encontro deles, o jovem André Friedmann foi enviado à Espanha num trabalho para uma revista de fotografia de Berlim. Ele fotografou a procissão da Semana Santa em Sevilha e descreveu os festejos em carta a Gerta Pohorylle na qual também mencionou quanto estava pensando nela. Ao retornar, passou o verão em férias no sul da França com Gerta e seus amigos.
De acordo com Ruth Cerf, citada no livro de Alex Kershaw “Blood and Champagne: The Life and Times of Robert Capa” (sangue e champanhe: a vida e os tempos de Robert Capa), os dois “se apaixonaram no sul da França”, apesar de Gerta desconfiar que Friedmann fosse “um cafajeste e mulherengo”.
Se a jovem Gerta ficou fascinada com a rebeldia de Friedmann, este, por sua vez, admirou o espírito independente dela. Kershaw escreve: “Era uma mulher que não o sufocava com afeto, não se envergonhava de sua sexualidade e tinha consciência de seu status de outsider em Paris, por ser judia alemã”. Essa descrição chega ao cerne da atração mútua do casal: o radicalismo e o senso agudo de exílio que os dois compartilhavam.
Friedmann tinha partido da Hungria, seu país natal, para Berlim em 1931, pouco depois de ter sido detido pela polícia secreta por seu ativismo estudantil de esquerda. Em fevereiro de 1933, aos 19 anos, fugiu de Berlim quando Hitler chegou ao poder, viajando até Viena e depois voltando a Budapeste, antes de deixar a Hungria definitivamente em setembro para viver na penúria em Paris, onde conheceu Pohorylle naquele dia momentoso de 1934.
Quando eles se encontraram, também Pohorylle já tinha conhecido a política radical, a prisão e a fuga. Nascida em Stuttgart em 1910, filha de pais burgueses, Pohorylle ingressou numa organização de juventude comunista; mais ou menos na época em que Friedmann fugiu de Berlim ela estava distribuindo panfletos antinazistas e colando cartazes de propaganda comunista, durante a noite. Foi detida pelos nazistas em 19 de março de 1933 e interrogada sobre um suposto complô bolchevique para derrubar Hitler.
Ao ser libertada, ela usou um passaporte falso para viajar a Paris, onde foi ajudada por uma rede comunista. Tanto André Friedmann quanto Gerta Pohorylle, apesar de jovens, eram exilados e ativistas tarimbados quando se conheceram, decididos a criar novas vidas e, ao mesmo tempo, permanecer fiéis a suas raízes radicais de esquerda.
REINVENÇÃO PRÓPRIA
Apesar de Friedmann raramente ter dinheiro para comprar filmes e em vários momentos ser obrigado a penhorar sua máquina fotográfica para sobreviver em Paris, ele ensinou os rudimentos da fotografia a Pohorylle e encontrou um emprego para ela na recém-criada agência Alliance Photo. E ela também pareceu ancorar-se a ele –por algum tempo, pelo menos.
“Sem Gerta, André não teria sobrevivido”, disse a Kershaw a falecida Eva Besnyö, outra fotógrafa húngara que frequentou o mesmo circuito boêmio em Berlim. “Ela lhe deu direção. André nunca quis uma vida comum; quando as coisas não iam bem, ele bebia e jogava. Ele estava mal quando os dois se conheceram; sem ela, é possível que tivesse sido o fim para ele.”
Quando a carreira fotográfica de Friedmann decolou em Paris, ainda de maneira hesitante, seu irmão mais jovem, Cornell, veio juntar-se a ele, revelando as fotos feitas por André e também as de seus amigos Henri-Cartier-Bresson e David “Chim” Seymour, fazendo o trabalho num banheiro escurecido de um hotel que dava para o célebre Café du Dôme. Foi ali que os três fotógrafos passavam tempo com filósofos, escritores e artistas, bebendo e sonhando com tempos melhores. Foi também nessa época que André Friedmann e Gerta Pohorylle viraram Robert Capa e Gerda Taro, num ato compartilhado de reinvenção própria que ainda hoje parece ousado.
A primeira vez em que outras pessoas ouviram falar em Robert Capa foi quando o casal apareceu no escritório da Alliance Photo e anunciou ter descoberto um célebre fotógrafo americano com esse nome. Em pouco tempo os dois descobriram que podiam vender fotos atribuídas ao fictício Capa a agências fotográficas francesas por três vezes o preço das fotos de Friedmann, tão grande era o status dado a fotógrafos americanos visitantes.
O truque dos dois não demorou a ser descoberto, mas os pseudônimos continuaram a ser usados. No ensaio que escreveu para o catálogo da mostra “Gerda Taro: Archive”, publicado em 2007, Irme Schaber observa: “Taro e Capa não estavam apenas reagindo à sua situação econômica precária. Estavam reagindo também ao antissemitismo na Alemanha e à crescente antipatia a estrangeiros na França. E, para fugir do estigma associado ao fato de serem refugiados, eles rejeitaram qualquer rótulo étnico ou religioso.”
Se a reinvenção conjunta deles foi o primeiro fator significativo na trajetória dramática de Robert Capa e Gerda Taro, o segundo foi sua decisão de irem juntos à Espanha em 1936 para cobrir a resistência republicana aos rebeldes fascistas de Franco.
Como muitos escritores e artistas, incluindo George Orwell e André Malraux, eles foram por convicção política e repudiaram qualquer noção de imparcialidade jornalística. A luta contra o fascismo era a luta deles, de uma maneira muito real e pessoal, dada sua história de exilados e refugiados, e a guerra civil espanhola era a linha de frente, literal e metafórica, dessa batalha.
A LENDA
Mas foi uma aventura que acabou quase assim que começou, quando o avião fretado pela revista francesa “Vu” para levá-los a Barcelona fez um pouso forçado num campo nos arredores da cidade. Taro e Capa chegaram até Barcelona, mancando, em meio a cenas de desordem e insurgência, enquanto forças anarquistas assumiam o controle da cidade. Ali eles fotografaram jovens republicanos deixando Barcelona para a linha de frente.
Em setembro eles próprios viajaram juntos até o front, chegando ao povoado de Cerro Muriano, nas proximidades de Córdoba, onde encontraram e fotografaram multidões de moradores fugindo de suas casas enquanto os fascistas despejavam morteiros sobre o povoado.
Numa série de imagens que ficou famosa, Capa retratou Taro agachada ao lado de um soldado republicano, com a máquina fotográfica nas mãos, atrás de um muro. Em outra foto ainda mais famosa –possivelmente a foto de guerra mais famosa da história–, Capa captou um miliciano no próprio momento em que morria, atingido pela bala de um franco-atirador.
Naquela fração de segundo nasceu a lenda de Robert Capa, o fotógrafo de guerra, e, décadas mais tarde, aquela mesma imagem estaria ao centro de uma discussão ainda em curso sobre a ética e a veracidade da fotografia de guerra.
Em “Waiting for Robert Capa”, Fortes escreve: “Morte de um Miliciano Legalista” continha todo o drama da pintura “3 de Maio de 1808”, de Goya, toda a ira que “Guernica” mostraria mais tarde… Como é o caso de todos os símbolos, sua força não estava apenas na imagem, mas naquilo que ela representava.”
Fortes também imagina Taro gentilmente sondando Capa para ter o relato do que aconteceu realmente naquele dia, e ele respondendo: “Estávamos brincando, só isso. Talvez eu tenha reclamado que tudo estava muito calmo demais e que não havia nada de interessante a fotografar. Então alguns dos homens começaram a descer o morro correndo, e eu fui junto. Subimos e descemos o morro várias vezes. Estávamos nos sentindo bem. Ríamos. Eles deram tiros no ar. Fiz várias fotos…”
Embora o contexto da foto ainda seja contestado, a conversa imaginada descreve o que provavelmente aconteceu naquele dia pouco antes de um atirador franquista disparar de longe, matando o miliciano que corria colina abaixo para a câmera de Capa. “As pessoas querem a verdade da fotografia de guerra, mais que de qualquer outro tipo de fotografia”, diz Jimmy Fox, editor de imagens da Magnum que já trabalhou com gente como Don McCullin e Philip Jones Griffiths. “Mas a superfície plana de uma imagem não é e nunca poderá ser a realidade.”
Na Espanha, Capa em pouco tempo ganhou fama por fazer fotos independentemente dos riscos, criando o tom da reportagem de guerra como a conhecemos hoje. Taro também era vista com frequência correndo pelas linhas de batalha com sua máquina fotográfica; sua audácia só era comparável à sua imprudência. Ela ia e vinha das linhas de frente, fotografando tudo o que via pela frente, movida por um misto de humanismo, engajamento político e uma compreensão sagaz do poder da fotografia para moldar a opinião pública.
Ao longo de 1937 Taro foi a várias linhas de frente, com Robert Capa ou sem ele. Os dois conseguiram retornar a Paris para férias curtas em julho daquele ano; festejaram o Dia da Bastilha dançando nas ruas abaixo da basílica Sacre Coeur e, segundo Schaber, traçando “grandes planos para o futuro”. Então Taro retornou à Espanha sozinha, apesar dos receios crescentes de seus amigos que, tendo visto suas fotos recentes dos combates, temiam por sua segurança.
Desafiando a proibição de jornalistas se deslocarem até o front, ela mais uma vez foi até Brunete com o jornalista canadense Ted Allan, seu amigo íntimo, companheiro de viagem e, pouco depois, amante. De acordo com o diário de Allan, escrito posteriormente, eles passavam “manhãs, tardes e noites juntos, correndo atrás de notícias. Fomos companheiros constantes por três ou quatro semanas. Finalmente, numa tarde, acabamos no quarto de hotel dela.” Taro disse a Allan: “Capa é meu amigo, meu copain”, e falou que talvez viajasse à China com ele. “Nada estava decidido”, escreveu Allan. “Tudo era possível.”
(Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1092019- SEAN O”HAGAN DO “GUARDIAN” – Tradução de CLARA ALLAIN – 17/05/2012)