Pincel intimista
Giorgio Morandi: independência
Giorgio Morandi (Bolonha, 20 de julho de 1890 – Bolonha, 18 de junho de 1964), pintor e gravador, Morandi foi o artista italiano do século 20 que melhor explorou o tema “natureza-morta”, um gênero de estudo a que os pintores vêm se dedicando ao longo dos séculos.
Atropelada por duas guerras mundiais entre outras mazelas, a Itália do século 20 produziu uma arte marcada pela convulsão. De todos os seus pintores, apenas o bolonhês Giorgio Morandi conseguiu empunhar seus pincéis à revelia da angústia e da violência. Produzindo sempre naturezas-mortas, paisagens e vasos de flores, Morandi construiu uma obra extraordinária.
Morandi inicia seus estudos em 1907, na Academia de Belas Artes de Bolonha, onde permanece até 1913. Suas primeiras pinturas e gravuras datam de 1911 e 1912 e denotam influência de artistas do Renascimento italiano como Giotto, Uccello e Caravaggio, e de artistas contemporâneos como Cézanne, Picasso e Braque.
É considerado um dos maiores pintores do século 20 na Europa, mesmo levando em conta que o continente produziu gigantes como os espanhóis Pablo Picasso (1881-1973) e Joan Miró (1893-1983) ou o francês Henri Matisse (1869-1954). Morandi, pela concisão elegância de sua pintura, seria, em certo sentido, mais “europeu” do que Picasso, Miró ou Matisse. Nessa linha de reciocínio, só encontrada paralelo no continente com o holandês Piet Mondrian (1872-1944).
Sujeito arredio e solitário, que nunca soube quanto cobrar por seus quadros, o pintor com certeza recusaria o seu lugar no alto do pódio.
Em sua aparente palidez e quietude, a obra de Morandi encerra um mistério: afinal, o que pode haver de tão eloquente em telas que não passam de 1 metro quadrado e sempre retratam as mesmíssimas garrafinhas, vasos e plantas? À semelhança do francês Paul Cézanne (1839-1906), que passou a vida retratando a montanha Ste.-Victoire na Provença, Giorgio Morandi também não se dedicou a produzir uma pintura que pretendesse retratar a realidade. Cada um a seu modo, ambos concebiam seu trabalho como uma pesquisa na qual os objetos do mundo exterior adquiriam outro tipo de existência num quadro. De modo que a pintura não reproduzisse o mundo, mas o recriasse.
Teia visual – Giorgio Morandi não era obcecado por garrafas e potes, que usava apenas como pretexto para pintar. Ele escalava sempre essa mesma tralha, já bastante conhecida de seu olho, para que os objetos que retratava não reivindicasse a primazia do quadro. O que rege a obra de Morandi é uma harmoniosa teia de relações entre volume, cor e distância a envolver todos os objetos e o fundo do quadro. Assim, o pintor acabou conseguindo jogar por terra, de maneira límpida e cirúrgica, toda a tradição da pintura italiana surgida às portas da Renascença, com Giotto, que por meio do uso da perspectiva iludia o olhar a enxergar uma superfície tridimensional numa tela plana. Morandi induz o espectador a ver a tridimensionalidade, para logo em seguida desmanchar esse jogo de ilusão.
O pintor viveu, ao final de sua juventude, nos anos 20, a época das vanguardas. Aderiu a dois desses movimentos, mas não deixou que teorias de gabinete o desviassem de seu caminho. A força e a modernidade de sua obra estão justamente na maneira singular e destemida com que le conduziu sua carreira. Primeiro Morandi se declarou futurista, mas só da boca para fora. Como se sabe, a escola que teve entre seus principais expoentes Filippo Tommaso Marinetti (que viria a aderir ao fascismo) fazia o elogio do progresso e da velocidade na pintura, poesia e escultura. Em uma de suas bravatas, os futuristas chegaram a propor nada menos que a destruição de cidades históricas como Veneza. Nada mais avesso ao temperamento de Morandi. Mais do que aderir à escola, o pintor bolonhês passou a frequentar as rodas futuristas. Foi ao lado de pintores dessa escola que Morandi fez sua primeira exposição em 1914, em Roma.
Conta-se que, numa das discussões com os futuristas, Morandi, um sujeito de bons modos mas de língua afiada, teria ouvido de um pintor medíocre pertencente à escola o seguinte: “Nossa pátria ganhará a guerra e nossa pintura revolucionará a arte.” De pronto, Morandi deu o troco: “Se a qualidade de nosso Exército for igual à de sua pintura, estamos derrotados desde já.”
Logo depois de se desvencilhar do futurismo, Morandi aderiria a um novo movimento de vanguarda, o metafísico, capitaneado pelos pintores Giorgio De Chirico (1888-1978) e Carlo Carrà (1881-1966). Indo na direção oposta ao futurismo, os metafísicos pintavam quadros com ingredientes surrealistas, imersos numa atmosfera pessimista, de magia e delírio. Dessa vez, a adesão de Morandi não foi apenas pro forma. Mas são raros os quadros dessa curta fase do pintor, da qual o Masp exibiu a tela Natureza-Morta Metafísica, de 1918, em que Morandi juntou um cachimbo, um tronco humano e, é claro, uma garrafa.
À luz do dia – Após suas incursões no futurismo e na pintura metafísica, Morandi concentraria, de uma vez por todas, seu interesse pelas naturezas-mortas, vasos de flores e paisagens. As paisagens, que retratam os Montes Apeninos, eram invariavelmente pintadas a partir da visão que ele tinha da janela de sua casa-ateliê na Rua Fondazza, no centro histórico de Bolonha. Nesse endereço, Morandi viveu toda a sua vida. Apenas à luz do dia ele pegava nos pincéis. À noite, insone, dedicava-se ao desenho e à gravura, especialidades nas quais também era um mestre. Em quase seis décadas de produção, sua pintura sofreria mudanças sutis, mas perceptível a um olhar mais atento.
Nos anos 30 e durante a II Guerra Mundial, suas naturezas-mortas trazem pinceladas mais densas, compondo formas que parecem prestes a derreter. Já suas paisagens feitas durante a guerra exibem traços mais nervosos, junto com o uso de cores soturnas.
Timidez – Logo depois do final da II Guerra Mundial, já maduro, Morandi produziu naturezas-mortas de contornos mais nítidos do que havia feito antes. Por outro lado, como se se impusesse um desafio, passou a trabalhar com cores ainda mais pálidas, que iam do branco e do cinza aos amarelos e rosados. Nos anos 50, Morandi mudaria mais uma vez o seu trabalho. Mais preocupado com o espaço do que com as formas de seus objetos, ele passou a compor suas garrafas e potes de modo que preenchessem uma figura geométrica claramente definida no quadro. Em sua velhice, a obra de Morandi viria a alcançar o máximo rigor e serenidade pretendidos pelo artista, que durante toda a vida desejou isolar-se dos dramas e misérias da vida.
Cidadão pacato, um solteirão que passou a vida na companhia de suas três irmãs, igualmente solteiras – Anna, Dina e Maria Teresa -, Giorgio Morandi não ganhou a vida como pintor, mas como professor de desenho e gravura em escolas públicas em Bolonha. Contam-se nos dedos as vezes em que saiu de sua terra natal, uma cidade provinciana no norte do país que, além de seu famoso molho para macarronada, é conhecida pela universidade, a mais antiga da Itália. A maior distinção acadêmica de Morandi veio em 1930, quando se tornou professor titular de gravura da Academia de Belas-Artes de Bolonha, posto que manteve até se aposentar, em 1956.
Até o final dos anos 40, Morandi era um desconhecido em sua terra. Nos anos 50, quando já desfrutava fama e respeito na Itália, ao saber da alta que seus quadros alcançavam nas galerias de Milão, exclamava: “Que absurdo! Que absurdo!”
Ao morrer de câncer aos 74 anos, Morandi deixou para suas irmãs 155 obras, entre óleos, desenhos e gravuras. Foi esse acervo, acrescido da biblioteca particular do pintor, que viria a originar o Museu Morandi, em Bolonha, que concentra a maior coleção do artista.
(Fonte: Veja, 26 de fevereiro de 1997 ANO 30 – Nº 8 – Edição 1484 ARTE/ Por Angela Pimenta Pág; 126/129)
(Fonte: Veja, 18 de junho de 1975 Edição 354 ARTE/ Por Olívio Tavares de Araújo Pág; 96/97)