Corção: no fundo, nem contra um regime – contra o seu tempo
Os abismos de Corção
Gustavo Corção Braga (Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 1896 – Cosme Velho, Rio de Janeiro, 6 de julho de 1978), escritor e pensador católico brasileiro, um escritor de porte, um homem sensível, um radicalíssimo cronista. Tudo ao extremo
Corção, ou Gustavo Corção Braga, nascido no Rio de Janeiro, a 13 de dezembro de 1896, deixou em primeiro lugar a imagem que andou semeando nos últimos anos: a do intransigente, do radical, do publicista de linguagem destemperada, venenosa, do raro inimigo não só da mudança, qualquer mudança, mas de seu próprio tempo.
Pobre Corção – Antes de ser polemista apaixonado, muitas vezes desabusado, dos artigos que espalhava pelos jornais brasileiros na última década de 60 ou pouco mais, ele foi um escritor vigoroso, amparado em sólida cultura e uma rara, raríssima habilidade no manejo da língua.
Em “Lições de Abismo”, seu único romance, de 1951 – onde está presente em toda a plenitude seu talento de linhagem machadiana, sua fina sensibilidade, suas qualidades de observador, seu espírito atormentado pela busca de um sentido para a vida. O livro é a história de um homem que sabe que vai morrer, que tem não mais que três ou quatro meses pela frente, e que se põe a querer “viver a própria morte, já que a vida não pudera viver.”
CONVERSÃO – Tome-se um trecho, ao acaso – aquele em que a personagem se instala num quarto de sua casa, num quarto apenas, para esperar a morte, e descobre que também era assim, num quarto apenas, que em outros tempos esperava a mulher que amava. Prossegue Corção: “O amor e a morte não precisam de muito espaço. A casa é demais. A casa é necessária quando a vida se multiplica em ramificações anárquicas, quando há crianças que não param quietas, criadas que manobram aspiradores, telefones que tocam, visitas que chegam de repente. Mas o amor e a morte nisso se assemelham: não precisam de toda essa parasitária cópia de detalhes, utensílios e compartimentos que fazem de uma casa um efervescente e ruidoso microcosmo”. Esse Corção meditativo, debruçado sobre si mesmo e a vida, pode surpreender a quem conheça apenas o Corção dos artigos. Há quem veja uma dicotomia. E então voltou a ser o Corção de “Todo Homem É uma Ilha” e “Lições de Abismo”.
Corção pertence à estirpe dos convertidos, uma família que, milinarmente, tem fornecido à Igreja as vocações talvez mais seguras, e os pensadores mais fecundos. No caso do Brasil, são convertidos os três expoentes maiores do pensamento católico no século 20: Jackson de Figueiredo (1891-1928), Alceu Amoroso Lima e Gustavo Corção. Os dois primeiros por sinal, convertidos mais antigos, tiveram influência decisiva na conversão do terceiro. Em especial Alceu Amoroso Lima (1893-1983), ou Tristão de Athayde, foi exatamente quem encaminhou Corção ao Mosteiro de São Bento, onde se daria a conversão – experiência que é narrada por Corção em seu livro de estreia, “A Descoberta do Outro”, de 1944. Conta o autor que uma crise se abriria em sua vida a partir de 1936, com a morte de sua primeira mulher – crise essa que teria seu desfecho em 1939, com sua entrega ao catolicismo. Corção, que, como diz, até então andara “em rodas marxistas e nietzschistas”, não sabendo se “deveria levantar a mão direita dura como um dardo ou a esquerda com o punho fechado”, resolve então “levantar as duas mãos” ao senhor – conclui o autor, em “A Descoberta do Outro” -, “como acaba esta história, um pouco ao gosto das novelas policiais, estando eu desarmado, hands up, entregue inteiramente como um prisioneiro de Deus.”
SIMILARES E OPOSTOS – Corção e Tristão de Athayde – impossível falar do primeiro sem recorrer ao segundo. Suas vidas se cruzam pela primeira vez nesse crucial episódio da conversão – e prosseguirão amalgamadas na semelhança como na decisiva diferença que, mais tarde, os separará e os tornará cada um o símbolo das tendências opostas que o catolicismo passou a trilhar no Brasil. Por enquanto, as coincidências são amplas. E Tristão não é apenas uma espécie de irmão mais velho no catolicismo, ele que tem três anos mais de idade, e chegará à conversão onze anos antes, como também uma espécie de patrono literário do outro. Tristão era já uma voz influente, um crítico literário consagrado, quando Corção – até então um engenheiro que não chegara ao último ano do curso, e trabalhava como topógrafo ou técnico em telefonia no interior do Brasil – fez sua tardia estreia em livro com “A Descoberta do Outro”. Tristão saudou a obra como uma “revelação”. Mais tarde, passaria a cobrar um romance do novo autor. E foi dessa insistência que nasceu “Lições de Abismo”.
Dr. Corção e dr. Alceu: destinos tão similares – e tão opostos. A trilha de Tristão de Athayde, que nos anos 30 se alinhara no integralismo de Plínio Salgado, é da direita para a esquerda. Tristão saudou o advento da Igreja pós-conciliar e cresceu com ela. Tornou-se o profeta do liberalismo, doaggiornamento, da Igreja dos Evangelhos. Corção, ao contrário, que na mocidade andara namorando o marxismo, dispara da esquerda para a direita. Cada vez mais, aferra-se na retaguarda. Torna-se o apóstolo do tradicionalismo, da imutabilidade, do monolítico. Aqui, começa a nascer o Corção familiar aos leitores de jornal. O tomista ao pé da letra, o cruzado contra um mundo que a seu ver evolui torto, equivocado, desnaturado. Tudo misturado, compõem-se um tipo raríssimo: um reacionário em estado puro, exemplar, completo. Um militante onde essa palavra – reacionário – não soa nem como retórica nem como insulto, mas simplesmente quer dizer o que é, nos dicionários: entre outras coisas, “aferrado à autoridade constituída”, “inimigo da liberdade”, “adversário da mudança.”
EUA, FRANCO… – Seu pensamento político configura um caso único, singular. Corção era contra o Socialismo. Mas nem é preciso chegar ao socialismo – ele é contra, recuando mais um pouco, a Revolução Francesa. Ora, caminhe-se ainda mais para trás. Corção não aceita o Renascimento e a Reforma, movimentos responsáveis, como disse numa entrevista, por “males terríveis”, cuja extensão “bem podemos avaliar”. Mas qual seria o mal maior do Renascimento e da Reforma. Corção responde: “Creio que podemos localizá-lo no liberalismo, que, além do livre exame, traz ao mundo cristão o divórcio entre a Fé e as obras, que ficam entregues ao capricho dos homens. Inaugura-se o liberalismo liberticida, a caricatura da liberdade, e sobretudo reedita-se, com dimensões civilizacionais, o pecado essencial do homem, que é pretender ser sua própria lei.”
Pode-se acusa-lo de tudo – menos de não ser um pensador absolutamente peculiar. “A democracia faliu”, escreveu ele. “Temos de continuar a busca de um regime que procure a máxima participação pela forma representativa sem ter como ideal o igualitarismo, que é anti-humano por ser um ideal de mediocridade.” Acrescente-se que ele considerava a administração do generalíssimo Francisco Franco, na Espanha, “o melhor governo do mundo no século XX.”; que, para ele, os Estados Unidos “agonizam de tolerância, de tuberculose óssea, de liberalismo”; e que Corção era contra a tolerância. “Tempos atrás”, escreveu, “qualquer católico sabia que a tolerância não é uma virtude, porque seu objeto é o mal.”
“ATMOSFERA ÉTICA – Para entendê-lo melhor, é preciso dizer que Corção talvez não chegue a ser contra um determinado regime nem a favor de uma determinada causa – no fundo, ele é contra seu tempo. Seu ideal é a autoridade e a obediência. Ele nega o pluralismo; exalta a unidade. Em suma, o mundo dos sonhos de Corção é anterior não só a Lutero como a Descartes, a Galileu, a Thomas Morus. “Os regimes absolutos tinham qualquer coisa de paternal que estabelecia uma atmosfera ética”, disse certa vez. “Ao contrário, os totalitarismos do século XX se movem no vácuo moral.”
O pensamento político de Corção, por mais apaixonado e descabelado em suas consequências, por mais radical e démodé, nunca se guiou por nenhuma conveniência – e eis aí outro traço notável desse singularismo intelecto. Ele não buscava favor, não queria ser diferente de nenhum departamento, os poderosos simplesmente não o interessavam. Pensava assim porque pensava. E, enquanto as mesmas ideias que defendia podem ser secretamente acalentadas por outros, ele não tinha a mais remota preocupação em disfarça-las ou torna-las mais dirigíveis. Sua trajetória é a de alguém que nasce para a vida intelectual no bojo de uma crise existencial, depois se aposta de uma verdade e a cavalga essa verdade até as últimas consequências. Era um desassombrado.
Ao morrer, em 6 de julho de 1978, enquanto dormia, às 5 horas da manhã, em sua casa no Cosme Velho, no Rio de Janeiro – de acidente cardiovascular.
(Fonte: Veja, 12 de julho de 1978 – Edição 514 – IDEIAS/ Por ROBERTO POMPEU DE TOLEDO – Pág: 78)