Visionário, ele pregou o autoconhecimento
Hermann Hesse, escritor alemão, ícone da contracultura
Os bancos de sua pequena cidade natal Calw, em Baden-Württemberg, Sul da Alemanha, amanheceram ocupados pela frase “Liebe ist stärker als Gewalt” (“o amor é mais forte que a violência”). É por esse credo pacifista que o nome de Hesse, premiado com o Nobel de Literatura de 1946, gostaria de ser lembrado numa época como a nossa, marcada pela barbárie, ele que dedicou sua vida à busca da sabedoria – e, por que não dizer, da iluminação, a exemplo do seu cultuado herói em Sidarta, bíblia laica da contracultura e guia dos jovens mochileiros que partiram para a Índia nos anos 1960, movidos pelo desejo de uma vida menos ordinária. Visionário, Hesse fez essa mesma jornada em 1911, escrevendo em Sidarta (1922) sobre a mística experiência de um jovem brâmane. Ele não imaginava, contudo, que sua obra seria apropriada, em diferentes épocas, por hippies ou oportunistas que tentaram imitar seu estilo (atrás de repetir o êxito do autor, que vendeu 140 milhões de exemplares).
Hesse é homenageado também como pintor pelo Museu de Arte de Berna, na Suíça. Foi o país que adotou como moradia permanente e do qual se tornou cidadão. Nas paisagens expostas no museu suíço não há sombra do orientalismo que o escritor explora em seus livros. Ele buscou na exuberância cromática de suas aquarelas uma correspondência visual para sua poética mística sobre o esplendor da natureza, fazendo desta sua religião. Hesse lutou boa parte de sua juventude, passada durante a 1.ª Guerra Mundial, contra o que julgava ser medíocre, tentando compensar as terríveis visões do conflito com representações de idílicas paisagens. A frase dos bancos de Calw antes citada foi cunhada justamente nesse período, num artigo para o jornal Neue Zürcher, em 1914, conclamando seus companheiros intelectuais a não se deixar seduzir por vozes nacionalistas que pregavam o ódio. Por causa dela, foi considerado traidor da pátria, atacado pela imprensa alemã – por abjurar o militarismo do Kaiser – e renegado pelos antigos companheiros.
O trauma seria reforçado com a morte do pai, em 1916, a descoberta da séria doença de seu filho Martin e da esquizofrenia de sua mulher. Hesse abandonou o Exército e resolveu fazer terapia. Datam dessa época suas primeiras aquarelas e também um de seus livros mais populares, Demian (escrito no breve período de três semanas, entre 1917 e 1919). Ele e mais três grandes títulos de Hesse – Sidarta (1922), O Lobo da Estepe (1927) e O Jogo das Contas de Vidro (1943), seu último romance – estão sendo relançados pelas Edições BestBolso. São edições econômicas dos livros publicados anteriormente pela Record, proprietária do selo, mas não iguais. Sidarta, por exemplo, apesar de ser a mesma tradução de Herbert Caro (1906-1991), não traz o prefácio que Luiz Carlos Maciel, um dos mentores da contracultura no Brasil, escreveu para a edição revisada de anos atrás.
Maciel foi seduzido na juventude por Hesse, como tantos escritores e intelectuais. ” A empatia suscitada tanto pelo adolescente conturbado Demian quanto pelo homem maduro e obstinado de O Lobo da Estepe era irresistível”, escreve Maciel, justificando o fascínio por Hesse: “Nosso próprio instinto rebelde se reconhecia nele” . Com o escritor Ferréz, morador de Capão Redondo, aconteceu o mesmo. O autor de Deus Foi Almoçar (Planeta) diz que começou a ler por ter encontrado um exemplar de Demian num barraco do Jardim Jangadeiro, deixado pela antiga moradora. “Foi com Hesse que aprendi o valor da vida, a olhar com atenção os rios, a apreciar boa música, coisas que na periferia parecem tão distantes pela dureza do concreto.”
Hesse, de fato, desperta um sentimento de rebeldia contra os valores da sociedade burguesa. Nesse sentido, é enorme o débito do escritor com a tradição romântica alemã – especialmente Goethe e Hölderlin -, mas seria injusto não reconhecer a modernidade de sua literatura, a despeito de Hesse rejeitar o experimentalismo como força motora. Contudo, sua sintaxe simples e sua sensibilidade estética, alinhada com Novalis, não deve ser confundida com a fórmula new age de escritores medíocres que trataram dos mesmos temas – a busca espiritual no Oriente, a crise de valores do homem ocidental, o drama ético dos jovens diante do hedonismo de uma sociedade consumista. Hesse diferencia-se não só por ser o pioneiro a tratar desses temas como pela crença sincera na espiritualidade como alternativa do desespero – e ele mesmo pensou em suicídio antes de pregar o autoconhecimento e se retirar para uma vida tranquila no campo.
Hesse intuía que, diante da mecanização do mundo moderno, a sobrevivência de valores do romantismo alemão era não só necessária como essencial. Max Demian é um rebelde que incita o atormentado Emil Sinclair, em Demian, a se voltar contra as convenções sociais e os pais piedosos, fazendo-o descobrir sua potência destruidora e, ao mesmo tempo, instalando-o no olho do furacão espiritual, ao revelar que existem no mundo pessoas marcadas por uma natureza caimita. Já nesse livro, que muitos consideram o pilar de sua obra, está clara a natureza metafórica dos papéis intercambiáveis entre o bem e o mal, o masculino e o feminino.
Os personagens de Hesse andam aos pares: em Narciso e Goldmund, dois noviços de um mosteiro medieval vão se reencontrar na velhice após anos de separação. Um ficou confinado a vida toda. Outro, foi experimentar a vida mundana. Em Sidarta, o jovem e talentoso brâmane é um simulacro do Gotama verdadeiro, que, a exemplo de Buda, conclui que o importante é mesmo a vivência. A mesma aspiração pela luz da sabedoria move os dois. É a experiência existencial, e não a doutrina, o caminho para a iluminação.
Em O Lobo da Estepe, o misticismo cede lugar à psicanálise. A luta agora é contra a natureza predatória da fera que dorme no interior de cada homem. Antibélico, Hesse faz do protagonista Harry Haller seu alter ego (como o escritor, que tinha 50 anos quando escreveu o livro, Haller tem a mesma idade e tenta resistir à tentação do abismo, o suicídio). Dele, Thomas Mann disse que era um livro tão genial quanto o Ulisses, de Joyce, mas o melhor ainda estava por vir: O Jogo das Contas de Vidro, biografia fictícia de um magister ludi, o mestre de um jogo que leva o leitor a concluir que o saber acadêmico, erudito, é vazio sem o autoconhecimento.
(Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer – Herbert Caro – Antonio Gonçalves Filho – O Estado de S. Paulo – 10 de agosto de 2012)