Humberto Mauro, considerado um dos pioneiros do cinema brasileiro

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O eletricista que virou cineasta

Humberto Mauro (Volta Grande, 30 de abril de 1897 – Volta Grande, 5 de novembro de 1983), considerado um dos pioneiros do cinema brasileiro. Dirigiu doze filmes de longa-metragem, entre os quais “Tesouro Perdido (1927), “Brasa Dormida (1928), “Sangue Mineiro (1929) e o clássico “Ganga Bruta (1933).

Colaborou como intérprete, roteirista ou fotógrafo em outros doze filmes e realizou outros 250 curtas-metragens. Sua última participação foi em “A Noiva da Cidade (1979), dirigido por Alex Vianny e rodado em Volta Grande, cidade mineira onde nasceu em abril de 1897.

 

Embora seja sempre associado a Cataguases, Humberto Mauro na verdade nasceu perto dali, numa fazenda de Volta Grande, Minas Gerais, a 30 de abril de 1897, filho do modesto italiano Caetano Mauro e da tradicional mineira Thereza Duarte Castro. Com uma infância cheia de pobreza e estripulias, o menino Mauro carregou malas, vendeu cocadas e pediu tostões. De mascate a engenheiro sem título, o pai mudou-se com a família para Cataguases em 1910, em gradativa melhora financeira.

 

Mauro interessou-se por literatura, teatro, esportes e fotografia. Via filmes de graça no Cine Recreio Cataguasense (o gerente lhe dava um lugar logo atrás da tela, um espectador semi-alfabetizado lhe pagava a entrada em troca da explicação das legendas). Revelava, como disse, uma “curiosidade volúvel, muito brasileira”. Do pai autodidata e da mãe culta, herdou talento e gosto por música, técnica e ciência. Seu engenho na conjugação (rítmica e isomórfica) de música e mecânica seria visto em “A Velha a Fiar” (1964), exemplar por seu método e espantoso por sua eficácia. Findo o ginásio, foi para Belo Horizonte.

 

Largou a faculdade após cursar o primeiro ano de engenharia civil e voltou para Cataguases. Na voga dos cursos por correspondência, estudou eletricidade. Em 1916, no Rio, trabalhou numa oficina de enrolamento de motores e transformadores, na Light e no Loide. Em 1918 retornou a Cataguases, onde fundou sua própria oficina eletromecânica. Em 1919, instalava a eletricidade nas fazendas.

 

No curto-circuito das “novidades modernas” que chegavam à região rural, Mauro tornou-se “o playboy de Cataguases”. “Ele era ‘dernier cri’±”, disse d. Bêbe, sobre a primeira vez que o viu, desfilando garboso pela cidade. Ela era Maria Vilela de Almeida, sua companheira por toda a vida (casaram-se em 1920). “Romeu e Julieta de Cataguases”, tiveram seis filhos. À saída das matinês, o fã de seriados e aventuras achava fácil emular o que via na tela e se aproximou de Pedro Comello, o renomado fotógrafo. À época, Mauro fazia fama com instalações pioneiras de rádios para os abastados (o rádio seria sua cachaça, dizia; seria também pioneiro nas infovias do radioamadorismo e locutor de palestras sobre cinema nos anos 40).

 

Dono da casa Carcacena, o comerciante Homero Cortes Domingues encomendou um rádio e financiou a aventura de Mauro e Comello. Fizeram um filmete com uma Pathé-Baby 9,5 mm, “Valadião, o Cratera” (1925). Agenor Cortes de Barros, negociante progressista, aderiu ao trio para formar a Phebo Sul America Film. “Insistia numa atividade que escandalizava as pessoas rotineiras e sensatas. Começaram a pôr de quarentena a minha sanidade mental”, declarou Mauro.

 

Com “Na Primavera da Vida” (1926), tornou-se amigo de Adhemar Gonzaga, artífice de “Cinearte” (com Pedro Lima). Lançada nesse ano, era plataforma aglutinadora em prol do cinema nacional. Desde 1927, nos salões da casa de madame Schnoor, ocorriam serões cinematográficos, onde a equipe de produção de “Barro Humano” se reunia para discutir problemas da realização do filme e questões mais amplas de técnica e arte. Foi ali que Mário Peixoto conheceu Adhemar Gonzaga, Pedro Lima e Humberto Mauro. Peixoto chegou a convidar Mauro para dirigir “Limite”, mas ele recusou.

 

“Barro Humano” e “Brasa Dormida” (1928) forjaram fornalha prometeica, um padrão de excelência para o filme local. “Sangue Mineiro” (1929), fechou a produtora Phebo, o ciclo de Cataguases e a fase mineira. Em junho de 29, uma sincronia sugestiva: a exibição dos silenciosos (e nacionais) “Barro Humano” e “Sangue Mineiro” e do sonoro (e americano) “Broadway Melodies”. Os capitalistas do cinema de Cataguases se retraíram.

 

Gonzaga convidou-o então para rodar na recém-fundada Cinédia “Lábios Sem Beijos” e “Ganga Bruta” (1933), clássico que recebeu pedras na estréia, mas que nos anos 50 magnetizou críticos e cineastas, imantando sua fama. Outros ecos: “Voz do Carnaval” (misto de reportagem de rua e ficção de estúdio), “Favela dos Meus Amores” (com um certo acento pré-cinemanovista), “Descobrimento do Brasil” (encomenda patriótica, que, visto hoje, virou uma quase alegoria protoglauberiana).

 

“Brasilianas” (1945-56) vislumbrou seu exílio idílico, com filmes sobre engenhos e usinas, carros de bois e minas gerais. Se foi chamado “Freud de Cascadura”, podemos ver no Mauro dos curtas etnológicos um Câmara Cascudo do celuloide. Construiu no seu quintal em Volta Grande o Estúdio Rancho Alegre, onde produziu com autênticos e parcos recursos “O Canto da Saudade” (1952), ícone da volta nostálgica ao lugar natal. Foi seu último longa-metragem. Foi ator em “Memórias de Helena” (1969, David Neves) e, autor de uma gramática do tupi, fez os diálogos nesta língua para “Como Era Gostoso o Meu Francês” (1971, Nelson Pereira dos Santos). “A Noiva da Cidade” (1978, Alex Viany) retomou uma ideia original sua, após 30 anos.

 

Diante de problemas no mercado de trabalho cinematográfico, “meteu-se em negócios de queijos”, ao sair da Cinédia, antes de aceitar o convite da produtora Carmen Santos; no Rio, “morou com a família toda dormindo no chão” e chegou a atrasar o aluguel. No início dos anos 70, voltou à roça, fustigado pela baixa aposentadoria e pelo ar mineiro.

 

Católico praticante, devoto do Eclesiastes, cogitou filmá-lo. Em 64, disse: “±’As Portas da Percepção’, de Huxley, dá um caminho mais novo ao cinema do que o mais novo cinema novo. O sujeito tomou mescalina e começou a ver coisas: formas, cores, texturas diferentes. Você já calculou se a gente pudesse dar mescalina a uma máquina de filmar?”. Velho, com surdez progressiva e quase cego numa das vistas, mantinha-se eterno insatisfeito, jamais resignado, fiel aos princípios da natureza e de um cinema “puros”, sem pressa, preços ou prazos.

 

Apoiado num cajado, orgulhava-se de ser o primeiro a representar o Brasil num festival internacional (Veneza, 1938). Respeitado pelos habitantes de sua cidade, educou-os a nunca olharem para a câmera quando filmava. Uma vez, um matuto passou, encarou a objetiva, e Mauro zangou; à noite, em casa, o diretor recebeu três queijos frescos e desculpas.

 

Testemunho da passagem pela paisagem de sua vida é seu último filme, testamento: “Carro de Bois” (1974), variação definitiva do tema constante e momento pleno de audiovisual brasileiro -a roda de Abel Gance a girar melancólica. O tempo ralenta e fecunda este épico poético em tom menor.

 

Em 5 de novembro de 83 morreu Humberto Mauro, pioneiro plantador de cinema no solo brasileiro, desde tentativas de bases industriais até planos de irrigações educativas. Não fez o projeto acalentado do fim da vida: o filme “Teoria Geral da Fazenda Clássica”.

Humberto Mauro faleceu no dia 5 de novembro, vitimado por um ataque cardíaco, aos 86 anos.

(Fonte: Veja, 18 de janeiro de 1978 – Edição 489 – Literatura – Pág; 95/97)
(Fonte: Veja, 16 de novembro de 1983 – Edição 793 – DATAS – Pág; 83)

(Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/4/27/mais!/5 – FOLHA DE S.PAULO / + MAIS! / POR CARLOS ADRIANO ESPECIAL PARA A FOLHA – São Paulo, 27 de abril de 1997)

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