Ignaz Semmelweis, médico obstetra húngaro, do Allgemeine Krankenhaus, o Hospital Geral de Viena.

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O estranho Semmelweis e um mistério milenar

Ignaz Semmelweis (Ofen, 1° de julho de 1818 – 13 de agosto de 1865), médico obstetra húngaro, do Allgemeine Krankenhaus, o Hospital Geral de Viena.

Em 1847, um espectro rondava a Europa: o da febre puerperal. Vítimas de um mal antigo de 2 mil anos, citado em registros médicos egípcios, parturientes morriam como moscas nas enfermarias dos grandes hospitais do século 19. Foi um obstetra húngaro nascido em 1818 que fez, aos 29 anos, uma descoberta que figura em lugar de honra entre os feitos da saúde pública: eram as mãos sujas dos médicos que contaminavam as mulheres.

Esta história está contada em A peste dos médicos — Germes, febre pós-parto e a estranha história de Ignác Semmelweis, livro de 164 páginas lançado no ano passado pela Companhia das Letras. O autor é Sherwin B. Nuland, ex-professor de Cirurgia da Escola de Medicina de Yale (EUA), onde hoje ensina Ética Médica e História da Medicina.

O médico e escritor Moacyr Scliar diz no prefácio que o autor fala “de uma jovem que vai morrer” com a “paixão de um ficcionista”. De fato, Nuland apresenta o tema ao leitor pelos medos da mocinha em trabalho de parto que caminha quase 800 metros para chegar ao gigantesco Allgemeine Krankenhaus, o Hospital Geral de Viena, e implora para ter o filho na enfermaria da Segunda Divisão, onde seria atendida por parteiras. As amigas da fábrica tinham alertado: na Primeira Divisão, assistidas por estudantes de Medicina, as parturientes morriam. A jovem acaba na Primeira.

A descrição da prática médica de professores e alunos é chocante: das salas de dissecação de cadáveres putrefatos saíam todos diretamente para o leito das pacientes, nas quais faziam exame de toque, um após outro, sem lavar as mãos. Em poucos dias as mulheres estavam mortas, e muitos bebês também.

Uma em cada seis parturientes morria de febre pós-parto no Allgemeine Krankenhaus. Na Maternidade Geral de Londres, entre 1833 e 1842, morriam 587 em cada 10 mil; na Maternidade de Paris, entre 1830 e 1834, 547, com pico de 880; 304 no Hospital-Maternidade de Dresden, entre 1825 e 1834. Austrália e América saíam-se um pouco melhor, mas não muito. Havia um sem-número de teorias a respeito, algumas absurdas, outras próximas da realidade. Hoje, quando se sabe que o agente da doença é um estreptococo beta-hemolítico do Grupo A, quase exaspera o leitor acompanhar progressos e retrocessos dos pesquisadores em busca de explicações: a teoria dos germes de Pasteur, Lister e Kock estava apenas em gestação.

Semmelweis, obstetra do Allgemeine Krankenhaus, vivia atormentado, como a maioria dos médicos, pelos surtos da febre. E observou: na divisão das parteiras, que não freqüentavam as salas de dissecação, as mortes eram mais raras. Quando um professor morreu da mesma febre, após se cortar com o bisturi numa autópsia, ele concluiu que o mal entrava nas enfermarias pelas mãos dos profissionais. Determinou então que à porta da enfermaria todos lavassem as mãos em solução clorada e escovassem as unhas. Os índices de mortalidade caíram drasticamente. No período 1848-1859, para 35,7 mortes em 1.000 na Primeira Divisão (eram 90,2 entre 1832-1847). Mesmo na Segunda Divisão baixou para 30,6, frente aos 33,8 anteriores.

Foi dramático para a classe médica admitir que vinha matando pacientes. Um obstetra se suicidou ao entender que contaminara a sobrinha na sala de parto. Mesmo tendo conquistado aliados importantes, a teoria de Semmelweis ganhou inimigos influentes, que a trataram pejorativamente de “envenenamento por cadáveres”. Foram necessários 32 anos para que finalmente Louis Pasteur interrompesse a lengalenga de um orador num congresso médico na Paris de 1879, desenhasse os estreptococos num quadro-negro e decretasse: “É o médico e sua equipe que transportam o micróbio da mulher doente para a sadia.”

O “estranho” na história de Semmelweis é que ele curiosamente não seguiu os passos lógicos de um epidemiologista. Não publicou suas conclusões em revistas científicas, para compartilhar achados, buscar credibilidade e apoio: deixou esse trabalho a cargo de amigos e acabou mal compreendido. Voou alto a partir da observação, mas não levou sua teoria a ensaios de laboratório para confirmação. Foi brilhante ao exigir escovação das unhas por concentrarem as “partículas” mortais, mas não recorreu ao microscópio para “vê-las” — embora um professor de Anatomia amigo seu vivesse debruçado sobre esta ferramenta poderosa.

E a época não poderia ser melhor para iniciativas inovadoras: eram tempos de revoluções na Europa, de literatura transformadora, de pioneiros abrindo portas na medicina. Semmelweis, porém, fechou-se em suas certezas. Tornou-se paranóico e irascível a ponto de abandonar Viena e voltar à Hungria natal. Deserção, ressentiram-se os amigos. No ostracismo, mente deteriorada, acabou num “asilo de loucos”, onde morreu aos 47 anos, espancado por funcionários. Nuland afirma que ele sofria da doença de Alzheimer, e não de sífilis, como quer a maioria dos biógrafos.

Importa pouco a causa da morte de Semmelweis, hoje reconhecido benfeitor da humanidade — bem, não no Allgemeine Krankenhaus. Quando Nuland visitou o hospital pela primeira vez, em 1985, perdeu-se nos corredores e perguntou a vários estudantes onde era a histórica enfermaria de Semmelweis. “Quem?”

No prefácio, Moacyr Scliar inclusive compara as trajetórias de Semmelweis e Oswaldo Cruz (1872-1917), de quem é biógrafo (Coleção Perfis do Rio, Relume-Dumará, 1996). Ambos visionários, ambos combatidos. Felizmente o brasileiro, glorificado em vida, não morreu sozinho num asilo, e sim em casa, de longa doença renal, cercado pela família e os amigos.

(Fonte: http://www6.ensp.fiocruz.br/radis/revista-radis/51/comunicacao_e_saude/ Por Marinilda Carvalho)

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