Sartre: perseguindo, até o fim, o sentido da existência
Jean-Paul Sartre (Paris, 21 de junho de 1905 – Paris, 15 de abril de 1980), filósofo, romancista, teatrólogo, político, o fundador do existencialismo. Sartre deixou uma das obras mais ricas e polêmicas do pensamento do século XX.
Para Sartre, a existência humana pode ser descrita a partir de duas noções totalmente opostas e, ao mesmo tempo, correlatas: o “Ser e o Nada”. Pura vacuidade, o Nada é um “oco vazio” preenchido por algo cuja natureza é ser puro preenchimento: o Ser.
Com esse par de contrários, Sartre procura compreender um dos temas centrais da fenomenologia: a relação consciência-objeto. Ter consciência de algo (por exemplo, ver uma mesa, “ter algo em mente”, amar alguém) é apenas um caso particular dessa relação de preenchimento que o “Ser e o Nada” mantêm entre si.
Dessa oposição abstrata emerge assim, pouco a pouco, todo o conjunto das estruturas da existência humana. O homem, agora, dá sentido ao vazio de sentido inicial da existência, estabelecendo e se engajando em projetos de ação que ele determina livremente –é, portanto, pura liberdade.
A “fenomenologia” de Merleau-Ponty e o “existencialismo” de Sartre são duas das filosofias que nasceram do pensamento de Edmund Husserl (1859-1938), o fundador da fenomenologia “propriamente dita”.
Sartre era o intelectual mais importante do pós-guerra, talvez do século XX: afinal, ele jamais se aposentara, sua voz continuava a ser registrda num gravador, sua obra de maneira alguma podia ser dada como terminada.
Mas Sartre sempre esteve longe de ser um fantasma em vida: só saíra do centro da cena intelectual e política que ocupou nos últimos quarenta anos por causa da cegueira que limitou sua vida aos 200 metros que separam sua casa, no bulevar Edgard-Quinet, do Café de la Liberté, em Montparnasse.
O peso, a extensão e a abrangência da obra de Sartre são de fato tão impressionantes que a cova filosófica aberta pelos movimentos mais recentes do pensamento francês está longe de ter a medida do morto.
CAVES ENFUMAÇASDAS – Com suas peças, romances, discursos e viagens, mais que com sua reflexões propriamente filosóficas, Sartre conseguiu um milagre: ser um autor de sucesso. Como Bertrand Russell, que octogenário participava de manifestações de rua na Inglaterra, Sartre sexagenário distribuía aos transeuntes seu jornal Libération. Em 1945, quando a guerra terminou, suas conferências faziam furor e nelas jovens estudantes esperneavam como num concerto de rock.
Sartre, talvez sem se dar conta, acabava de fundar uma escola filosófica, o “existencialismo” com seu folclore de desespero envolto em caves enfumaçadas, pálidas mulheres vestidas de preto, liberdade acima de todas as coisas e coisa alguma no horizonte.
Até no Brasil, onde Sartre teve vários obras traduzidas e peças encenadas, o novo movimento filosófico saltitou ainda nos anos 40 na marchinha carnavalesca “Chiquita Bacana”, na qual Emilinha Borba mencionava o personagem “existencialista com toda a razão, só faz o que manda o seu coração”. Nada mal para um jovem professor de Filosofia que anos antes de publicar obras como “O Ser e o Nada, Ensaio de Ontologia Fenomenológica” (1943).
A trajetória do pensamento de Sartre, na verdade, tanto fascinou quanto desconcertou e irritou seus críticos. Sua vida pessoal fundada na liberdade inalienável e suas relações íntimas, às vezes ásperas, com toda uma geração de intelectuais franceses, em que brilhavam nomes como André Malraux e Albert Camus, aguçaram a cruriosidade de seus leitores.
Percebeu-se, muito cedo, que Sartre chegara com algo a dizer. “Tenho a paixão de compreender os homens”, escreveu ele em outro de seus pensamentos célebres. Na entrevista ao Nouvel Observateur, completava, ironizando as especulações sobre cada uma de suas palavras e comentando a quase reclusão em que vivia: “Se tenho um homem diante de mim, procuro compreendê-lo. Mas não vou procurá-lo.”
PALAVRAS E PENSAMENTOS – “O homem é uma paixão inútil”: “o homem é uma ilha povoada de mistérios”; “o homem se faz” – sempre “o homem”, e, no entanto, não era fácil compreender onde Sartre queria chegar. Filho único, criado pelo avô, Charles Schweitzer, professor de línguas, calvinista e severo, o pequeno Jean-Paul acreditou-se desde cedo um predestinado, conforme conta num de seus mais belos livros, “As Palavras” (1964). Aos 7 anos cortaram-lhe os cabelos longos e descobriram que ele era feio.
Encontrou Simone de Beauvoir nos corredores da Sorbonne, “simpática e mal vestida”, e com ela viveu até a morte, sem jamais se terem casado. Formaram, sem dúvida, o casal literário do século: ele achava “até simpáticos” os amantes de Simone, como o escritor americano Nelson Algren (1909-1981), e ela jamais manteve com ele discussões sobre “amores secundários”.
Ela também o poupava de discussões sobre as jovens que arrebanhava nas férias. Liam os respectivos livros nos originais e se criticavam “formalmente”. Sem filhos, o casal adotou em 1965 uma colaboradora, Arlette El Kaim, herdeira dos direitos de todas as obras de Sartre, algumas traduzidas para mais de trinta línguas.
UMA OBRA AINDA EM FASE DE DESCOBERTA
Foi em 1936, professor de Filosofia num liceu, que Sartre começou a escrever com regularidade, em cadernos sempre iguais, pautados, hábito que manteve durante quase quarenta anos, quase todos os dias, até que a vista finalmente o abandonou, em fins de 1973.
Para ele, a cegueira foi uma “morte simbólica”: seu primeiro ensaio publicado, “A Imaginação”, de 1936, abria-se justamente com uma extensa descrição das relações entre quem observa e a coisa observada, entre um homem e a folha de papel branca posta a sua frente.
Suas obras publicadas, até a sua morte, totalizam 48 volumes entre ensaios literários e filosóficos, contos, romances, peças de teatro e roteiros para cinema, mas sabe-se que ela é muito maior. Existem textos inéditos anteriores ao primeiro livro, “A Imaginação”, e posteriores ao último, “O Idiota da Família” de 1973.
Uma ideia da extensão dessa obra foi dada em 1979 por três pesquisadores franceses, Michel Contat, Michel Rybalka e Jacques Prunair, que se embrenharam num trabalho de arqueologia para localizar no ano de 1922 o primeiro texto de Sartre, um amontoado de anotações esparsas, “Cadernos de Pensamentos”. O último, de 1979, “Poder e Liberdade”, era feito de parceria com Pierre Victor (1945-2003), expoente de maio de 1968 e depois da Esquerda Proletária, movimento maoísta dissolvido em 1971.
TEXTOS RECUSADOS – Entre esses dois extremos descobre-se que Sartre, já aos 18 anos, escrevera metade de um romance autobiográfico, “A Semente e o Escafandro”, e que em 1928 produziu, sem achar editor, um volume de poesias. Também recusado pela Gallimard, depois editora de quase toda sua obra, foi o romance “Uma Derrota”, em 1928, sobre as ligações entre Richard Wagner e Friedrich Nietzsche.
O levantamento desenterrou o roteiro inacabado de um filme sobre a Revolução Francesa, o segundo volume da “Crítica da Razão Dialética”, “Freud”, o roteiro de 800 páginas para o filme de John Huston, recusado pelo diretor, e as 600 páginas intituladas “A Moral e a Dialética”, preparação do curso que Sartre acabou não ministrando em universidades americanas em protesto contra a intervenção no Vietnã.
CRONOLOGIA DE SARTRE
1905 – Jean-Paul Sartre nasce em Paris, no dia 21 de junho.
1907 – Morre seu pai. Muda-se para a casa do avô materno, em Meudon.
1911 – Muda-se para Paris com a família.
1924 – Sartre se matricula na Escola Normal Superior (Paris). Conhece Simone de Beauvoir.
1931 – É nomeado professor de filosofia em Havre. Escreve “Légende de la Vérité”.
1940 – Sartre serve o exército durante a 2ª Guerra, sendo preso em Padoux (na região da Lorena) e enviado a um campo de prisioneiros.
1941 – É libertado e volta para a França.
1943 – Publicação de “O Ser e o Nada”.
1945 – Publicação de “A Idade da Razão” e “Sursis” (primeiras duas partes da trilogia “Os Caminhos da Liberdade”). Sartre funda, com Merleau-Ponty, a revista “Les Temps Modernes”. Viaja aos EUA.
1946 – Pronuncia a conferência “O Existencialismo é um Humanismo”.
1952 – Adere ao Partido Comunista.
1956 – Rompe com o Partido Comunista e escreve “O Fantasma de Stálin”.
1960 – Publicação de “Crítica da Razão Dialética”. Visita o Brasil.
1964 – Publicação de “As Palavras”. Recusa o Prêmio Nobel de Literatura.
1968 – Sartre se engaja na revolta estudantil de maio.
1970 – Apóia o grupo maoísta “Esquerda Proletária”.
1971 – Publicação de “O Idiota da Família”.
1973 – assume nominalmente a direção do jornal esquerdista “Libération”.
1980 – Sartre morre em Paris, no dia 15 de abril.
Da poligamia ao presente sensório-motor
O pensamento de Sartre, pendular, móvel, dificilmente pode ser reduzido a uma fórmula comum a todas as suas fases. Eis alguns deles, expressos entre 1930 e 1980:
– “Votar nos comunistas, antigamente, era um ato que se considerava revolucionário. Hoje, é um ato de republicanismo clássico.”
– “A teoria da tomada do poder político pelo Partido deve ser substituído por uma teoria da tomada do poder por cada homem, ligado a todos os outros. O partido constitui-se a imagem do Estado porque é o aparelho que o proletariado opõe ao aparelho da burguesia não é espantoso que acabe por se identificar com ele.”
– “É abjeto crer que os trabalhadores húngaros lutam ao lado dos soviéticos: é o sangue do povo que vai correr.”
– “Falar, pedir, declamar, manifestar: que agitação inútil!”
– “Desde pequeno fui polígamo. Sempre pensei que minha vida sexual seria múltipla. Também aí eu era machista: nunca imaginei uma mulher que se tornasse a única em minha vida.”
– “É preciso que os cubanos triunfem ou perderemos tudo, até a esperança.”
– “De Gaulle é um general de pronunciamento, cujas aspirações de grandeza reduzem a França ao nível de uma ditadura sul-americana do século passado.”
– “Que é, na verdade, o presente? Meu presente é, por essência, sensório-motor. É “um corte” que a percepção pratica em uma massa em vias de escoamento. Esse corte é precisamente o “mundo material”. É, ainda, uma coisa absolutamente determinada e que se recorta sobre meu passado.”
– “O mundo de hoje é absolutamente intolerável.”
(Fonte: Veja, 23 de abril de 1980 – Edição 607 – IDEIAS – LIVROS/ Por GERALDO MAYRINK – Pág: 56/60)
(Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/8/14/mais! – FOLHA DE S.PAULO – MAIS! / Por ALBERTO ALONSO MUÑOZ / ESPECIAL PARA A FOLHA – São Paulo, 14 de agosto de 1994)
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(Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/8/14/mais! – FOLHA DE S.PAULO – MAIS! – CRONOLOGIA DE SARTRE – São Paulo, 14 de agosto de 1994)
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