Jeremy Brett – um gentleman dos filmes e TV
Ser, Antes de Parecer
Peter Jeremy William Huggins (Berkswell Grange, Warwickshire, 3 de novembro, 1933 – Londres, 12 de setembro de 1995), ator inglês que escolheu o nome artístico de Jeremy Brett
Jeremy Brett nasceu a 3 de novembro de 1933 em Berkswell, no Warwickshire, na Inglaterra.
Quando se fala no pseudônimo que este ‘lendário’ Gentleman escolheu, o caso muda de figura. Em 1954, para a sua estreia teatral, aos 21 anos, inspirando-se na marca do seu primeiro fato (Brett & Co.), o jovem Peter Huggins escolheu o nome artístico de Jeremy Brett. Desta forma, fazia face à imposição do seu pai, Lord Henry William Huggins. Tradicionalíssimo Tenente-Coronel do exército britânico, herói de guerra e marido da herdeira da dinastia Cadbury, Lord Huggins entendia que ter um filho actor poderia trazer desonra à família.
Nascer em “berço de ouro” não isentou Jeremy Brett de dificuldades. Foi o mais novo de quatro irmãos rapazes; e a juntar à rigidez da educação parental, o seu percurso académico no prestigiado Eton College foi tudo menos bem-sucedido, devido a dificuldades de aprendizagem provocadas por dislexia. Como se não bastasse, o jovem sofria ainda de rotacismo, uma deficiência da fala que o impedia de pronunciar, correctamente, o som do “r”.
Empenhado no sonho de ser actor e percebendo que no canto coral o seu rotacismo não era evidente, Jeremy Brett sujeitou-se a cirurgias correctivas e “obrigou-se”, vida fora, aos mais exigentes exercícios diários de dicção, com os quais atingiu a magnética voz e impecável pronúncia que o acompanhariam ao estrelato.
Dos Palcos de Londres ao Brilho de Hollywood
Jeremy Brett estreou-se no Library Theatre de Manchester em 1954, chegando a palcos londrinos dois anos depois, com a companhia do Old Vic, numa arrojada produção de «Tróilo e Créssida», de Shakespeare, com os gregos e troianos da tragédia original substituídos por ingleses e prussianos. Brett começou por desempenhar o papel secundário de Pátroclo, mas acabou promovido a protagonista. Crítica e público renderam-se ao seu porte heróico e ao brilhantismo que deu ao retrato de um homem torturado.
O seu talento e porte (tinha 1,85m de altura, enquadrado por um físico perfeito) rapidamente conquistaram atenções também no grande ecrã: nesse mesmo ano de 1956, Jeremy Brett foi escolhido para a primeira grande produção cinematográfica de «Guerra e Paz», dirigida por King Vidor, com um elenco internacional de estrelas onde pontificavam Audrey Hepburn, Henry Fonda, Mel Ferrer, Vittorio Gassman, Herbert Lom e Anita Ekberg.
A partir de 1956, Jeremy Brett nunca mais deixou de ser requisitado nos palcos de Londres e Nova Iorque, especialmente em papéis clássicos e shakespearianos. A década de 1960 viu-o consolidar-se também como um rosto televisivo cada vez mais familiar dos lares britânicos, em peças e séries da BBC, onde geriu inteligentemente a carreira, “saltando” entre os papéis de herói e vilão, das tragédias às comédias.
O estrelato mundial chegou-lhe em 1964, no clássico filme «My Fair Lady», com o papel de Freddie Eynsford-Hill, o jovem aristocrata que se toma de amores pela personagem de Eliza Doolittle – e que lhe deu a oportunidade não só de voltar a contracenar com Audrey Hepburn como também de mostrar, no grande ecrã, os seus dotes de cantor.
A partir de então, entre o cinema europeu e americano, o teatro nas mais prestigiadas salas dos dois lados do Atlântico e os papéis cada vez mais frequentes na TV, Jeremy Brett fez-se referência, contracenando com gigantes como Laurence Olivier, Joan Plowright, Alec Guinness, Richard Burton, Vanessa Redgrave, John Gielgud, Maggie Smith e John Hurt. Nas memórias do seu trabalho com estes e tantos outros nomes estelares, Jeremy Brett dava provas da sua estatura ética, dizendo que “o bom de trabalhar com os grandes é poder aprender com eles, não o tentar ser melhor que eles”.
“Elementar, Meu Caro Watson”
Mas a aventura da vida de Jeremy Brett ainda estava por vir – e chegaria em 1984. Depois de vencer (em boa hora) os medos de ficar demasiado “preso” a uma personagem, o actor aceitou o convite da Granada Television para protagonista da série «As Aventuras de Sherlock Holmes». Aquilo que era para ser uma curta temporada de homenagem à mítica criação literária de Sir Arthur Conan Doyle acabaria por estender-se ao longo de 10 anos, 36 episódios de uma hora e cinco filmes para televisão.
Ironicamente, o primeiro contato de Brett com Sherlock havia sido nos EUA, no início dos anos 80, assumindo em palco o papel de Dr. Watson, enquanto Charlton Heston desempenhava Holmes.
Jeremy Brett entregou-se ao seu papel de alma e coração, recusando até alguns argumentos que apresentavam demasiadas discrepâncias em relação à obra original. No set de filmagens, fazia-se acompanhar sempre pelo seu “Dossier Baker Street”, um manual de 77 páginas concebido por si, com “tudo” sobre a personagem. O método de Brett consistia em apagar de si tudo o que era humanamente seu, absorvendo então as características do excêntrico detetive.
A paixão desmedida que entregou ao papel da sua vida deu a Sherlock Holmes uma fisicalidade emotiva nunca antes vista, desde os maneirismos até à estranha gargalhada triunfal. O actor não se coibia de atirar-se ao chão para analisar uma pegada, ou saltar sobre as mobílias do décor para aumentar o realismo das cenas, chegando a comprometer a sua própria segurança.
O realismo e fidelidade de Brett a Sherlock Holmes teve apenas uma exceção. Depois de perceber, à terceira temporada, como a série televisiva era adorada por crianças e jovens, o ator procurou a autorização da filha e herdeira de Sir Arthur Conan Doyle para que o “seu” Sherlock abandonasse o vício das drogas, algo consolidado no episódio “O Pé do Diabo”, na quarta temporada, com Holmes a enterrar simbolicamente a sua seringa.
Brett dizia que Holmes era o seu “lado lunar”, explosivamente temperamental e solitário, o suficiente para ameaçar a sua própria vida e conduta sociais. Por isso, a dado ponto, o actor começou a referir-se à sua personagem apenas como “ele”, ou “vocês sabem quem”, para evitar dizer-lhe o nome em voz alta. Independentemente de chegar a assustar Jeremy Brett, a personalidade obsessiva e depressiva de Sherlock Holmes contribuiu para o diagnóstico de mais uma doença na vida do actor: o distúrbio bipolar.
O excesso de dedicação a Sherlock Holmes e a morte da sua segunda mulher, Joan Sullivan Wilson, em 1985, terão tido o seu papel no desfiar das escamas que revelaram a doença do ator. Antes disso, a sua vida privada havia sido bastante estável, apesar de nela caberem duas mulheres e dois homens.
A bisexualidade de Jeremy Brett deverá ter sido um dos motivos para, por duas vezes, ter falhado a conquista do papel de James Bond. O actor chegou a fazer audições para ser 007 em 1969 (para «Ao Serviço de Sua Majestade») e 1973 (para «Vive e Deixa Morrer»). Foi, definitivamente, a causa do ruidoso pedido de divórcio da sua primeira mulher, a atriz Anna Massey. O casal separou-se em 1962, mas teve um filho: David Huggins, nascido em 1959. Entre 1969 e 1976, Brett esteve envolvido com o ator Gary Bond. No final da década de 1970, Brett teve ainda uma relação, esta fugaz, com outro ator, Paul Shenar. Casou uma segunda vez com a acima referida Joan Sullivan Wilson, a quem chamou “o amor da sua vida” – e de cuja morte jamais se recompôs.
Cair de Pé
Talvez por isso, após a segunda viuvez, as alterações de humor de Jeremy Brett começaram a ser demasiado frequentes e intensas para passarem por apenasstress. Em 1986, depois de procurar ajuda médica e ser diagnosticado, o ator começou a tomar lítio para combater os estados maníaco-depressivos. A sua vida retomou a normalidade possível e Brett voltou a empenhar-se no trabalho.
O seu físico debilitou-se gradualmente e de forma acentuada, mas não a sua energia. Iam longe os tempos do jovem Gentleman britânico que não passava sem as suas sessões de arco-e-flecha, cavalaria e piano; mas Brett aproveitava o seu estado clínico frágil e medicado para estrear-se em algo que nunca antes tinha admitido: falar da sua vida privada sentimental e das suas lutas com a doença, multiplicando-se em entrevistas que usava para motivar a resistência de outros, em circunstâncias semelhantes de conflito pessoal e debilidade física.
Tornou-se praticante de Ioga e juntou à sua vida um Jack Russell terrier a quem chamou “Mr. Binks”. Entre os seus compositores favoritos, encontravam-se Verdi, Fauré, Bizet, Mozart e (Richard) Strauss.
Na recta final da série «Sherlock Holmes», Jeremy Brett tinha engordado bastante; não deixara de fumar mesmo sabendo que o seu coração estava em risco de pane; e as dificuldades respiratórias eram tantas que precisava, por vezes, de interromper as filmagens para buscar conforto numa máscara de oxigênio. Às preocupações de todos os colegas e técnicos, limitava-se a sorrir e responder “darlings, the show must go on“.
Morreu a 12 de Setembro de 1995, aos 61 anos, na sua casa de Londres, vítima de paragem cardíaca, na sequência de uma cardiomiopatia. O seu último trabalho, um pequeno papel no filme «Moll Flanders», com Morgan Freeman e Robin Wright, teve estreia póstuma, em 1996. Da sua carreira como ator, deixou escrito que tinha tido a sorte – e o pequeno milagre – de poder trabalhar em algo que o fazia feliz.
Jeremy Brett é hoje considerado “o melhor Sherlock Holmes de sempre”, à frente de actores como Basil Rathbone, Robert Downey Jr., Benedict Cumberbatch, Peter Cushing e Rupert Everett. Já aclamado em vida, o ator nunca perdeu a modéstia que lhe era característica. Lia com espírito analítico todas as críticas ao seu trabalho, boas e más; dizia que uma das maiores provas de coragem era saber quando pedir ajuda… E quando um dia lhe perguntaram qual era o elemento principal do sucesso da série que lhe trouxe a fama, Brett respondeu: “a amizade”.
(Fonte: http://www.gentlemans-journal.com/2014/05/jeremy-brett-um-gentleman-dos-filmes-e-tv – CRÔNICA/ Por JOÃO JACINTO/Ricardo Belo de Morais – 07/05/2014)