José de Alencar, romancista e desbravador da literatura brasileira

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Alencar: ao lado de Augusto dos Anjos e Jorge Amado na preferência dos brasileiros

 

José Martiniano de Alencar (Mecejana, Ceará, 1° de maio de 1829 – Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 1877), romancista e desbravador da literatura brasileira. Com poucas exceções, a crítica da época não morreu de amores por José de Alencar, a literatura brasileira encontrava-se em fase de transição do romantismo para o realismo naturalista. A doutrina positivista fazia proselitismo e gerou a crítica sociológica, da qual um dos expoentes foi o sergipano Sylvio Romero.

 

No opúsculo – “Como e Por Que Sou Romancista”, Alencar defendeu-se como pôde, contestando os modelos estrangeiros apontados em sua obra e a contrafação de algumas personagens, sobretudo o índio. Em parte, essa crítica rigorosa, senão hostil, deixava-se contaminar pelas atitudes de Alencar como homem público. A exemplo do pai, que fora senador,ele abraçou o que veio chamar de “alta política”, como parlamentar e ministro da Justiça do Senhor Imperador Dom Pedro II. Alencar colocou-se à mercê de censuras e antipatias ao expor, com franqueza e desassombro, suas ideias – nem todas, é certo, bem inspiradas. Como político foi um burguês liberal, de ideias progressistas, filiado ao Partido Conservador, que lhe coube, a certa altura, reestruturar.

 

Glória póstuma -– No entanto, apesar da má vontade da crítica e de dificuldades editoriais (pagou do próprio bolso a edição de alguns romances em forma de livro), José de Alencar conheceu, ainda em vida, os favores do público. O reconhecimento pleno só viria mais tarde, com o correr do tempo. Machado de Assis – que havia publicado “Helena”, seu terceiro romance, um ano antes da morte de Alencar –profetizou-lhe a glória póstuma, mediante “a conspiração da posteridade”. Em verdade, o autor de “O Guarani”, não obstante o aparato formal de que viria a se revestir o romance moderno, mais ou menos a partir de 1920 (o caso de Marcel Proust e James Joyce), tornou-se o mais popular dos nossos escritores do passado, e um dos mais lidos. As edições de suas obras sucederam-se, e ele só encontra paralelo, no carinho do público, nos poetas Castro Alves e Augusto dos Anjos, e, Jorge Amado. Continua-se a ler Alencar. Um exemplo, é os jovens que iniciando-se nas leituras, não elegesse logo “O Guarani”, “O Sertanejo” ou “As Minas de Prata”. E moça que não houvesse acolhido, suspirosa e trêmula, o enredo de “O Tronco de Ipê” e as delicadas vinhetas impressionistas de “Lucíola”.

 

Mas a consagração de Alencar não decorre pura e simplesmente da monumentalidade de sua obra ficcional, tampouco da variada galeria de personagens – fidalgos portugueses, índios, virgens aborígenes ou donzelas da sociedade urbana, aventureiros, heróis do sertão – que atiçam as imaginações. Alencar continua atual, e até certo ponto inspirador, por vários motivos. Aliás, os mesmos motivos que o fizeram conceber, num passe de premeditação, sua obra literária, quando, ainda no frescor da juventude, estudava em São Paulo.

 

Temas brasileiros – Conhecedor, como ele próprio confessou, da obra de Fenimore Cooper, Walter Scott, Chateaubriand (Machado de Assis elogiou a novela idílica “Iracema”, considerando-a, sob certos aspectos, superior ao seu modelo francês, “Les Natchez”), José de Alencar não foi um mero transplantador. Aplicou conscientemente os postulados do idealismo romântico em temas brasileiros. A água que foi beber em outras fontes ele a faria decantar em nossa realidade, seja a crônica do tempo da colonização, seja a temática americanista, na qual desponta o índio, por ele idealizado.

 

Em sua obra de ficcionista “o poeta do romance” mostra logo que Alencar buscou sem vacilações uma temática brasileira e, por extensão, americana. Além dos temas indianistas, ele abordou aspectos rurais e urbanos, numa tentativa de branger o amplo universo geográfico e humano que conhecia ou que lhe chegava através da sensibilidade de artista.

 

A vocação brasileira de Alencar não se limitou à escolha dos temas romanescos. Já aos 21 anos de idade, numa premonição que caracteriza o grande criador, o romancista cearense assim pensava: “O estilo antigo não pode renascer em nossa literatura brasileira com suas cores, seus tons clássicos: – nascido nos tempos da fé, do heroísmo dos portugueses, ele conservou essa forma imóvel e inflexível das crenças profundas, das convicções inabaláveis: – naquela época decerto dera ela a expressão aberta do pensamento. Hoje as ideias caminham delirantes, várias e desvairadas, não se poderiam conter na fórmula rápida, breve, do período antigo: – e além disso a expressão ardente e animada de nossa literatura não se casa com essa lenta e pausada inflexão da frase antiga”.

 

Alencar e Machado – A longa citação se faz necessária para acentuar melhor o credo literário de José de Alencar, suas preocupações com uma temática e uma linguagem de fato brasileiras. Credo que persiste até hoje, pois, se tem sido expresso com outras palavras, a substância do que se pretende propor seria exatamente a mesma. O autor de “O Guarani” exprimiu o que Machado, dois decênios depois, chamaria de “o instinto da nacionalidade”. Com a diferença de que esse “instinto” era, para Alencar, a epopeia, a poesia desatada, o mito. E para Machado (que embora rastreando a crônica das instituições ao tempo do Segundo Reinado, foi um herdeiro da cultura, europeia), aquele “instinto da nacionalidade”, seria a fusão da cultura livresca da Europa ocidental com a visão-de-mundo do homem brasileiro e o enquadramento histórico.

 

A diferença é significativa porque situa dois cursos de realização literária, outrora em conflito aberto, correndo para o mesmo estuário. Em “Helena”, Machado de Assis já anunciava, através de algumas personagens e frases cortantes, sua reação discreta, porém firme, ao pensamento positivista, o qual significava altruísmo, e ao realismo cru de Émile Zola e seu discípulo brasileiro Aluízio Azevedo. Sem tomar partido, e faltando-lhe, por temperamento, a visão épica de Alencar, Machado preferiu rir e resumir tudo na frase “ao vencedor, as batatas!”, do apólogo das duas tribos famintas, que ele pôs na boca de Quincas Borba.

 

Romance americano -– A primeira corrente, a alencariana, talvez explique no Continente, a voga da novelística hispano-americana atual, e aqui no Brasil, após a escassa colheita do Modernismo quanto a temas e linguagem brasileiros, o romance de 30, chamado de pós-modernista, bem como o retorno, a um neo-naturalismo de temas e de linguagem, beneficiado pela estruturação mais complexa do arcabouço ficcional. José de Alencar foi contemporâneo, e muitas vezes antecessor de escritores como o peruano Santos Chocano (1875-1934), o venezuelano Rômulo Gallegos (1884-1969), o argentino Ricardo Güiraldes (1886-1927), o equatoriano Jorge Icaza (1906-1978), o colombiano Jorge Isaacs (1837-1895), o venezuelano Mariano Picón-Sallas (1901-1965), o chileno Manuel Rojas (1896-1973), o colombiano José Eustasio Rivera (1889-1928), que é autor de “La Vorágine”.

 

Estes ficcionistas, e alguns outros, cantaram em primeiro lugar a terra e os seus mitos, lançando as bases do que Alencar chamou “o romance americano”. Havia neles todos o impulso de conhecer a terra, de explorá-la, numa moldura nativista que encontra correspondência na “poesia nova” pregada por Alencar. Todos, a seu modo, mapearam as regiões americanas de seu conhecimento, recensearam populações, atribuíram ao meio físico forças e mitos poderosos, quase intransponíveis, e abriram caminho, através desse jornadear, para a ficção de denúncia social.

 

O novo nativismo – Referindo-se a esse romance americano, o cubano Alejo Carpentier propôs uma fórmula para que o escrevam (e ele próprio vem tentando): somar o conteúdo telúruco à situação épico-política. Já existem sínteses eloquentes, como “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, e “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez. José de Alencar não realizou esse romance americano porque lhe coube o ônus do desbravador: a luminosidade e o viço das paisagens fizeram com que ele, encantado, idealizasse ao invés de questionar. Daí a predominância, em sua ficção, notadamente nos romances indianistas e “sertanejos”, do primitivismo psíquico, da nota exótica, sem conjeturar não apenas sobre o destino do homem (o que Machado fez, centralizando sua análise na precariedade humana, como ironista e cético que era), mas também sobre sua segurança, sua permanência.

 

As tensões sociais refletidas no romance europeu ocidental não são as mesmas desse romance americano. Raízes colonialistas continuam fincadas na terra latino-americana;´por toda parte situações de anormalidade condicionam o homem e esmagam a individualidade. O novo nativismo hispano-americano e brasileiro procura, agora com o reforço do discurso literário e a amplitude do ponto de vista narrativo, expor tais mazelas de maneira a tentar uma síntese cultural e humanística. E Alencar, com sua “poesia nova”, foi um inspirador.

 

(Fonte: Veja, 25 de janeiro de 1978 –Edição 490 –O desbravador de José de Alencar: José Olympio – LITERATURA/ Por Hélio Pólvora – Pág; 93/94)

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