Mestre da luz e do mar
Um precursor dos impressionistas e dos modernos
Joseph Mallord William Turner (Londres, 23 de abril de 1775 – Chelsea, 19 de dezembro de 1851), precursor do impressionismo, foi uma figura singular da história da pintura.
Turner foi um artista temperamental, filho de um barbeiro londrino, cujos primeiros trabalhos seu pai orgulhoso colocava na vitrina do seu salão. “Meu filho”, dizia orgulhoso aos seus clientes, “será pintor.”
Turner não só conseguiu tornar-se rapidamente um pintor como ingressou com alguma facilidade, graças ao talento excepcional, na Royal Academy, à qual todos os artistas oficiais da época deveriam pertencer. Não foi difícil, para Turner, ao mesmo tempo, encontrar, entre os aristocratas, mecenas e colecionadores que lhe compravam o trabalho e lhe financiavam as viagens.
Para um pintor que não respeitava as regras de seu tempo, é surpreendente seu sucesso. Nada o deteve, nem as críticas de que fazia apenas uma pasta de pintura que mais parecia um molho de cozinha nem as acusações de que, como disse um crítico da época, se tinha especializado em “paisagens do nada”.
Se a intenção era ridicularizar o artista, o crítico estava, sendo premonitório. Toda a história da pintura, a partir daí, descreveria uma trajetória em que se daria adeus à honra e à glória, à nobreza e à religião – os temas clássicos – para se fixar no “nada”, ou nos “nadas”.
No próprio Turner, a paisagem se foi transformando gradativamente apenas num pretexto para a luz. “Sua ideia era registrar a luz como assunto, independente dos objetos sobre os quais ela se espalhava”, escreveu o crítico francês Charles Blanc (1813-1882), ainda em 1863.
PERSONAGEM DE PROUST – Turner levava ao exagero sua veneração pelos efeitos de luz. Certa vez, em 1845, ao levar um grupo de colecionadores para ver seus novos trabalhos, primeiro ele os deixou numa antecâmara totalmente mergulhada na penumbra para só então chamá-los à sala onde estavam as telas.
Ele sabia valorizar seu trabalho e fazer a sociedade admirá-lo e respeitá-lo. Não foi suficiente para marginalizá-lo o lado irreverente de sua personalidade, que o fazia usar o pseudônimo de “Mr. Booth” e passar por um lobo do mar aposentado, numa casa modesta à beira do Tâmisa, onde vivia com a empregada e companheira Sophie Booth. Paralelamente, ele usufruía de todo o prestígio social possível, na respeitável posição de professor de perspectiva da Royal Academy.
Mais do que qualquer outra coisa, suas marinhas são inesquecíveis. Turner sabia domar os elementos e dirigir as águas em suas telas, como um capitão implacável. Em obras como A Praia de Callais na Maré Baixa ou Cena no Porto de Margate o mar é reflexo para o céu, moldura para as escunas ao vento e espelho onde morrem os últimos raios do sol.
Incêndios, mares bravios, o vento nas nuvens – Turner foi o pintor que tornou eternos esses fragrantes da natureza em sua forma mais instável e fugaz. Em suas pinceladas nervosas, o céu revolto e o mar bravio derretiam-se em reflexos de luz e o resultado eram telas quase abstratas – o que o transforma num precursor do Impressionismo e da pintura moderna.
Um pandemônio se instalou em Londres naquela noite de 17 de outubro de 1836 em que a parte mais antiga do Palácio de Westminster, onde funciona o Parlamento inglês, pega fogo. Alheio à confusão e à correria, porém, havia alguém que tirava proveito do incêndio: o pintor Joseph Mallord William Turner.
Turner convocou seus alunos de pintura da Royal Academy, distribui-os em barcaças pelo Rio Tâmisa e aproveitou para dar-lhes uma aula, trabalhando noite adentro em aquarelas e esboços em que representava as labaredas, a destruição do prédio e as chamas que lambiam as águas. Na verdade, ele não foi o único pintor londrino de fama a retratar o evento: também Constable, o outro mestre inglês da época, passou a noite em frente ao incêndio. São a tela de Turner e sua série de aquarelas, porém, que tornaram inesquecível o incidente.
Os impressionistas franceses, entre os quais Monet e Renoir, conheceram as telas de Turner. Matisse era fascinado pelos efeitos que ele obtinha. E Marcel Proust chegou a criar um personagem de Em Busca do Tempo Perdido, o pintor Elstir, cujas pinturas são inspiradas nos delírios visuais de Turner.
(Fonte: Veja, 9 de novembro de 1983 – Edição 792 – Arte – Pág: 158/159)