Lucian Michael Freud (Berlim, 8 de dezembro de 1922 – Londres, 20 de julho de 2011), o maior pintor realista da segunda metade do século XX. Em suas pinturas exibia a crueza e a modernidade
Ele já foi considerado por boa parte dos críticos como um artista antiquado para o século XX. Enquanto a maioria de seus colegas trocou a pintura realista por borrões de tinta ou formas geométricas, o inglês Lucian Michael Freud, passou a vida pintando gente, paisagens e naturezas-mortas, como se fazia antigamente. Só que com uma crueza de espantar.
Pessoas nuas, feias e angustiadas davam o tom em sua pintura. Também do ponto de vista pessoal, as coisas não foram fáceis para o artista. Neto de Sigmund, o pai da psicanálise, Lucian sempre foi encarado como o pária da família. Ele, que sempre se recusou a se deitar no divã, foi descrito como tarado, beberrão, perdulário e jogador inveterado, entre outros tantos vícios. Em 1933, ao desembarcar em Londres, fugindo da Alemanha nazista com a família, o arquiteto Ernst, pai de Lucian e filho caçula do velho Freud, apresentou assim o menino, então com 11 anos, à sua babá inglesa: “Este animal selvagem é meu filho”.
Os críticos, que só lhe deram a importância devida nos anos 80, erraram totalmente, mas seu pai acertou em parte ao falar do filho. Em sua arte, Lucian foi tão selvagem quanto moderno.
A selvageria dos retratos de Lucian está na crueza com que ele trata as dobras de pele macilenta, os seios caídos, órgãos genitais flácisos ou o olhar indefeso e esgazeado de seus modelos. Já a sua modernidade se manifesta na acintosa bravura com que o artista desafia a técnica fotográfica às portas do século XXI.
Desde a invenção da fotografia, em meados do século XIX, os retratos pintados foram condenados à extinção pelos artistas e críticos mais afoitos. Apenas dois grandes pintores da segunda metade do século XX ousaram desafiar tal sentença de morte: Lucian Freud e seu companheiro de boemia, o pintor expressionista Francis Bacon (1909-1992). De fato, nenhuma foto, por mais talentoso que seja o fotógrafo, é capaz de esquadrinhar o corpo humano, e sobretudo desnudar sua angústia, com o realismo de Lucian. Numa de suas raras entrevistas, Lucian disse que sempre quis que a tinta de seus quadros não apenas representasse a carne, mas realmente fosse carne.
MONTANHA HUMANA – Desde o final dos anos 80, a arte de Lucian foi cada vez mais audaciosa ao lidar com o lado mais radical da presença física, sem recair na caricatura. Ele é capaz de assumir riscos, como distorcer proporções do desenho até o limite da verossimilhança.
“Se os meus quadros parecem mais audaciosos é porque sou mais ambicioso”, diz. Em parte, Lucian conseguiu isso graças a seu novo modelo, o travesti Leigh Bowery, uma imensa e macia montanha de carne, com rosto de criança e a leveza de um búfalo.
Os quadros que Lucian faz de Bowery são produzidos de uma forma próxima ao divertimento: sua excitação em pintar as costas de Bowery na tela Homem Nu, Visto de Costas (1991-1992) é tão paupável que o pintor parece ter explorado não um corpo humano, mas uma nova paisagem – o que de fato Bowery não deixa de ser.
A série que Lucian fez de Bowery custou-lhe a quebra de contrato com seu antigo marchand e ex-amigo, o inglês James Kirkman. Por anos a fio, Kirkman deu polpudos adiantamentos ao lentíssimo Lucian, que chega a levar cinco anos para terminar uma única tela. Depois de romper seu contrato com Kirkman, ele assinou outro com o americano William Acquavella. Ironicamente, uma das primeiras vendas de Acquavella foi Homem Nu, Visto de Costas.
RETRATO DA MÃE – Viscrealmente autobiográfico em sua arte, não raro Lucian Freud pintava seus próprios parentes, além de amigos, amigas e até amantaes. Nem mesmo sua mãe, Lucie, já octogenária, escapou do pincel do pintor nos anos 70, submetendo-se a mais de 1 000 sessões em seu estúdio num subúrbio londrino, que resultou num pungente retrato de Lucie deitada sobre uma cama e com o olhar perdido no teto. As sessões de pintura do artista com sua mãe durariam até a morte dela, em 1989. Lucian chegou a fazer esboços da mãe morta no hospital. “Quando percebi que ela era um corpo morto, perdi a vontade de retratá-la”, disse mais tarde.
Não se pense, entretanto, que Lucian teve algum prurido ético na ocasião, já que ele é avesso a tabus. Em 1975, o pintor retratou a própria filha Annabel, então com 28 anos, nua e grávida, em companhia de uma amiga, também nua, sobre a mesma cama em que sua mãe posara em seu estúdio. Annabel teve seu ventre inchado minuciosamente destrinchado pelo pai, de quem não escaparam nem mesmo as veias azuladas dos seios intumescidos pela gravidez.
No quesito família, a propósito, a vida de Lucian Freud primava pela complicação. Filho rebelde, foi mandado ainda criança para a Dartington House, um tradicional liceu de artes inglês. Teoricamente, o garoto frequentava as aulas, mas, de fato, passava o tempo no campo montando cavalos. Aos 17 anos, obteve uma vaga na prestigiosa East Anglian School of Drawing and Paiting.
Numa noite quente, ao deixar um cigarro aceso, acidentalmente Lucian incendiou a escola. Em seguida, abandonou a família para embarcar num navio da Marinha Mercante inglesa rumo à Africa. Voltaria à Europa antes do fim da II Guerra Mundial. Desde então nunca mais parou de pintar.
PAIXÃO E DOR – Mulherengo, Lucian casou-se apenas duas vezes, mas teve nada menos que seis filhos ilegítimos, além de Annabel e Annie, de seu primeiro casamento, com Kitty Garman, filha do escultor inglês Jacob Epstein (1880-1959) e uma de suas primeiras modelos, a partir de meados dos anos 40. Kitty comparece à mostra em retratos em que faz companhia a flores e plantas.
Na época, o pintor produzia quadros hiperrealistas de modelos vestidos, em poses comportadas, mas que já carregavam o ar sombrio de suas pinturas mais recentes. Mas a grande paixão de sua vida foi a nobre e milionária inglesa lady Caroline Blackwood (1931-1996), escritora diletante e filha de um marquês. O romance, iniciado nos anos 50, foi uma paixão arrebatadora, pelo menos da parte do pintor, que conseguiu levar a moça ao cartório.
O casamento, contudo, durou pouco. Em 1957, cansada das moitadas do marido e de suas temporadas de jogatina em Monte Carlo, Caroline o abandonou.
(Fonte: Veja, 12 de janeiro de 1994 – ANO 27 – Nº 3 – Edição 1322 – ARTE – Pág: 82/83)