Lygia Clark, artista plástica carioca, inovou os Limites entre a obra e o espectador. No começo do século 20, o artista francês Marcel Duchamp dessacralizou a obra de arte ao enviar um urinol para o museu e tornar esteticamente valiosa uma roda de bicicleta fincada sobre um banco. A carioca Lygia Clark, durante sua carreira, também buscou retirar o caráter mítico de seus trabalhos. Duchamp deslocava objetos no espaço (do cotidiano para o museu) e lhes dava um novo significado.
Lygia utilizou a fórmula do deslocamento, mas no próprio corpo da obra que fazia. Seu trabalho mais celebrado, uma série de esculturas de alumínio anodizado com dobradiças, chamadas genericamente de Bichos, permitia ao espectador manipular suas formas, em busca de novas possibilidades de interpretação. Era possível retorcer as esculturas de modo que elas adquirissem formas diferentes dependendo de quem tocasse nelas. Fiel a sua concepção artística e aos seus Bichos, Lygia Clark construiu uma obra luminosa e intransigente.
Lygia nunca esteve plenamente satisfeita com seu trabalho. Ela procurava uma maneira de envolver as pessoas em suas esculturas. A partir de objetos do cotidiano, como grandes sacos de cebola, plásticos cheios de água, tecidos que se transformavam em máscaras, ela criou o que batizou como objetos relacionais. Na época, meados da década de 60, acreditou-se que se tratava de uma esquisitice da artista, mas, com esses objetos, Lygia criou um novo uso para a arte: ela deveria ser sentida pelas pessoas. Valia tudo. Esfregar sacos com água pelo corpo, enfiar-se em sacos, vestir e sentir o cheiro com que ela impregnava suas máscaras. Enfim, sua obra só existia caso as pessoas se envolvessem com ela. Essas experiências sensoriais, que seguiam pela mesma via de seus primeiros quadros, em que as molduras se confundiam com a obra criando uma nova forma de relação com o ambiente, valeram a Lygia um lugar de destaque nas artes brasileiras, principalmente pela sua incrível capacidade de invenção. Naturalmente, criações como as de Lygia, que por vezes mal chegavam a se configurar como obras, não tinham lugar em galerias de arte. Seus Bichos, que são avidamente disputados por colecionadores, por exemplo, deveriam ter um destino mais popular, segundo o desejo da artista. Lygia gostaria de produzir seus Bichos em série, para que pudessem ser vendidos nas ruas, por camelôs, a preços baixos. As esculturas, porém, devido à dimensão reduzida de sua produção, são encontradas apenas entre colecionadores e museus instituição que, ao lado dos divãs de psicanálise e das igrejas, era enfeixada por ela num filme imaginário que se chamava As Coisas que Acabaram mas que Continuam Existindo.
BARRIGA Os críticos achavam as criações de Lygia geniais e insistiam em classificar sua produção como arte conceitual. Avessa às definições, porém, a artista rechaçava qualquer rótulo com veemência. Em geral, arte sai da barriga, não da cabeça, costumava afirmar. Seu trabalho, de fato, tinha muito de visceral, mas sem cair em banalizações, simplificações ou efeitos fáceis. Era fruto de um extremado rigor estético, mesmo quando ela se utilizava de prosaicos sacos plásticos, mas que atingiu seu ápice em sua fase dos Bichos – as melhores obras de sua carreira.
Nos anos 70, suas experiências sensoriais ganharam os bancos acadêmicos. Ela foi convidada a dar aulas na tradicional Sorbonne, em Paris. Seu projeto Fantasmática do Corpo, que utilizava seus objetos relacionais manipulados por grupos de trinta alunos, alterou a fronteira entre arte e psicologia. “A terapia foi a continuidade mais coerente de sua obra, que sempre buscou uma integração existencial”, afirma o psiquiatra e artista plástico Luís Carlos Vanderlei, que trabalhou com Lygia depois de sua volta ao Brasil, em 1976.
Para alguém que representou tanto para a cultura brasileira, pode-se dizer que Lygia chegou tarde às artes plásticas. Sua primeira exposição, realizada em Paris e depois no Rio de Janeiro, ocorreu em 1952, aos 32 anos. No Brasil, curiosamente, amostra lhe valeu o prêmio de “artista revelação do ano”. Sua formação, que começara cinco anos antes, porém, já fazia prever uma obra de fôlego duradouro. Um de seus mestres na França, onde estudou na década de 50, foi ninguém menos que Fernand Léger, o mesmo artista que influenciou a pintura de Tarsila do Amaral.
MANIA POR REMÉDIOS De ascendência abastada – seu pai foi um juiz influente em Belo Horizonte e seu marido um engenheiro de sucesso -, Lygia pôde viajar com frequência ao exterior e tomar contato com pesquisas recentes da arte europeia. Ao retornar ao país nos anos 50, já possuía um trabalho sólido que a deixava à vontade para embarcar em correntes sem perder a identidade. Foi assim em 1959, quando participou do movimento neoconcreto, no Rio de Janeiro. Lygia deixou sua marca naquele que talvez seja o mais importante movimento das artes brasileiras desde a Semana de Arte Moderna de 1922. “Os princípios do movimento que foram teorizados por mim se fundavam principalmente nas obras de Lygia”, afirma o poeta e crítico Ferreira Gullar. O neoconcretismo conseguiu ao mesmo tempo dar o tiro de misericórdia no figurativismo, a corrente oficial da arte brasileira de então, e romper com os concretistas de São Paulo, capitaneados por Valdemar Cordeiro, a quem os cariocas classificavam de racionalistas e mecanicistas, pois sufocariam a subjetividade do artista.
Lygia encerrou sua obra em 1984, causando surpresa no meio artístico e intelectual, que não compreendeu o seu gesto. “Lygia acelerou tanto o processo de criação dentro da arte brasileira que talvez não visse mais caminhos para avançar”, avalia o crítico carioca Frederico Morais. “Ela era muito cobrada a continuar um trabalho que provavelmente não quisesse mais levar em frente.” Nos últimos dois anos, a artista – que tinha entre seus poucos amigos o recentemente falecido psicanalista Hélio Pellegrino -, enfrentava severas crises depressivas e alimentava uma mania por remédios. “Ela sabia que tinha problemas cardíacos, mas chegava ao cúmulo de tomar remédios para aliviar o efeito de outros remédios que havia tomado”, conta seu filho, o industrial Eduardo Clark. Lygia morreu só, em seu apartamento na Rua Pardo Júnior, em Copacabana. Lygia morreu dia 25 de abril, 1988, aos 67 anos, de enfarte, no Rio de Janeiro. Sua morte priva o país de uma de suas melhores artistas.
(Fonte: Veja, 4 de maio, 1988 Edição N° 1026 DATAS Pág; 83 ARTE Pág; 148/149)