Manuel Urrutia, o 1º presidente de Cuba após a revolução – e antes de Fidel Castro
Advogado nascido no centro da ilha, sem simpatia partidária ou carreira política, ele esteve envolvido em uma série de acontecimentos que o levaram a assumir a liderança política de Cuba no dia 1º de janeiro de 1959, pelo menos por alguns meses.
Manuel Urrutia (Yaguajay, 8 de dezembro de 1908 – Nova York, 15 de julho de 1981), foi não apenas o último governante de direita da ilha, mas também o primeiro presidente de Cuba na revolução. Tudo ao mesmo tempo.
Ele foi o único homem que esteve acima de Fidel Castro no governo de Cuba: o único que, em teoria, poderia dar ordens ao “comandante”.
Urrutia, advogado nascido no centro da ilha em 1908, sem simpatia partidária ou carreira política, esteve envolvido em uma série de acontecimentos que o levaram a assumir a liderança política de Cuba no dia 1º de Janeiro de 1959, pelo menos por alguns meses.
Mas, quase seis décadas após esses tempos turbulentos, sua figura permanece tão desconhecida no exterior como no interior da ilha que governou.
Seus desentendimentos com Fidel Castro e sua relutância em relação ao comunismo o tornaram um personagem incômodo e, com o tempo, sua trajetória desapareceu das versões principais da história oficial, como aconteceu com muitos outros que se opuseram ao rumo tomado por Cuba na época.
“Ele foi o primeiro opositor do governo ao comunismo e autor da primeira tentativa notável de interromper aquilo”, disse à BBC Mundo o escritor cubano e autor da autobiografia de Fidel Castro, Norberto Fuentes, na qual dedica diversos capítulos à passagem de Urrutia pela Presidência.
Segundo Fuentes, a ascensão e queda de Urrutia nos primeiros meses de 1959 foi uma espécie de metáfora das figuras com “vida limitada” que também foram protagonistas dos inícios da revolução cubana e mais tarde esquecidas.
Mas quem foi Urrutia e como ele se tornou uma figura-chave no início da revolução?
O primeiro passo
A entrada de Urrutia na história de Cuba, que marcaria o resto de sua vida pública, pode ser datada em 1957, ano do julgamento de um grupo de jovens que apoiaram o desembarque de Castro e suas tropas.
“Urrutia era juiz na Audiência de Santiago de Cuba, onde iriam julgar esses meninos que haviam participado do levante”, disse o historiador cubano Tomas Diez, do Instituto de História de Cuba, à BBC Mundo.
“Mas, em um ato de coragem, Urrutia disse que os jovens não poderiam ser condenados porque o que eles tinham feito era amparado pela Constituição de 1940, que dizia que as pessoas tinham o direito de se rebelar contra um governo ditatorial.”
A atitude de Urrutia abalou a opinião pública de Cuba, na época sob o governo linha-dura de Fulgencio Batista.
“A ditadura não aceitou essa decisão, começou uma perseguição política contra ele (Urrutia) e o forçou a deixar o país”, conta o historiador Sergio Guerra Vilaboy, professor da Universidade de Havana.
Urrutia não teve escolha senão fugir de Cuba, ainda que sua atitude em relação aos seguidores de Castro fizesse com que este último voltasse a pensar nele pouco tempo depois.
“Quando a luta na Sierra Maestra estava se consolidando, as diferentes forças contra a ditadura começaram a pensar em quem poderia ser um possível candidato para substituir Batista. Fidel Castro propôs (Urrutia) devido à atitude que teve no julgamento e porque este não tinha compromisso com nenhuma organização política”, explica Guerra Vilaboy.
De acordo com o historiador, a proposta de Castro foi aceita pela maioria dos partidos de oposição a Batista, com exceção do Diretório Revolucionário, uma organização estudantil que atacou o Palácio Presidencial em 1957.
Diante do quase consenso, o magistrado exilado foi escolhido para substituir Batista nas rédeas de Cuba.
Assim, em dezembro de 1958, ocorreu um dos eventos mais peculiares na história presidencial da ilha: enquanto Batista governava em Havana, Urrutia foi nomeado presidente da nova Cuba, no meio da selva da Sierra Maestra e diante de Fidel Castro.
“Naquele momento, o almirante Wolfgang Larrazabal, que era o presidente interino da Venezuela, enviou um avião com armas para a Sierra. Nesse avião estava também Urrutia, e se constituiu ali um governo provisório. Ele se encontrou com Fidel Castro e foi nomeado presidente”, diz Guerra.
Após sua atípica nomeação presidencial, Urrutia passou os últimos dias de dezembro refugiado em um lugar também incomum.
“Fidel o mandou para Vegas de Jibacoa, um lugar que ele havia criado e era como uma espécie de Yenan (os campos de concentração para intelectuais na China), onde estavam os intelectuais que apoiaram os rebeldes e para onde se mudou a Rádio Rebelde (a emissora dos insurgentes criada por Che Guevara)”, explica Fuentes.
Mas sua estadia ali não durou muito: nas primeiras horas de 1º de janeiro, Fulgencio Batista fugiu para as Bahamas em um avião com malas cheias de dinheiro, segundo conta a historiografia oficial de Cuba.
Era a hora de Urrutia voltar de Sierra e assumir as suas funções.
Urrutia presidente
O primeiro governo da Cuba revolucionária começou a funcionar na Universidad de Oriente, em Santiago.
Urrutia jurou formalmente e uma de suas primeiras medidas foi nomear Fidel Castro como seu delegado nos institutos armados do país, bem como Comandante das Forças do Mar, do Ar e da Terra da República.
O novo presidente também nomeou como primeiro-ministro José Miró Cardona, um reconhecido advogado, filho de um general das lutas de independência do século 19.
“Foi um governo sem dúvida muito moderado, de direita”, diz Guerra Vilaboy.
“Isso levou os Estados Unidos a dar-lhe rapidamente o reconhecimento diplomático, já que o presidente era um homem tão respeitável como Urrutia e o primeiro-ministro era o presidente da associação de advogados, filho de José Miró Argenter. Ambos representavam os grandes interesses do capital na ilha”, explica.
Segundo o professor, o governo de Urrutia dava a Washington a garantia de que a revolução não se radicalizaria e oferecia à poderosa burguesia cubana certa tranquilidade de que não perderia seus benefícios.
“Isso pode ter sido uma tática de Fidel Castro, de (promover) um governo de consenso nacional, que todas as forças políticas o aceitaram, e bem visto pelos Estados Unidos e pela burguesia cubana, de modo que não houvesse atritos”, diz Guerra Vilaboy.
No entanto, Cardona renunciou em pouco menos de um mês, e Fidel Castro assumiu o cargo de primeiro-ministro.
Foi o começo do fim do governo de Urrutia ou, pelo menos, de suas funções presidenciais.
“Quando Fidel Castro assume o posto, faz uma reforma na Constituição de 1940. A partir desse momento, é o primeiro-ministro que tem o poder para fazer as leis e, portanto, o governo recebe a tarefa de executá-las”, explica Guerra.
“Na prática, desde fevereiro de 1959, Urrutia desponta como uma figura de segunda ordem”, acrescenta.
Renúncia e voo
“Em sua Presidência, o que Urrutia fez de melhor foi aproveitar seu salário: 1.200 pesos. Era um advogado de direita, mas sem qualquer experiência em cargos públicos e, no final, virou apenas mais uma ficha no jogo político”, opina Fuentes.
Após sua chegada ao governo, Fidel Castro começou a promover as chamadas “leis revolucionárias”: desde duas polêmicas reformas agrárias até o confisco de propriedades de famílias poderosas.
“Urrutia, a princípio, apoiava essas leis, mas começou a se distanciar quando considerou que elas estavam aproximando o país do comunismo. Isso provocou uma crise do governo. Fidel Castro renunciou e isso obrigou Urrutia, por sua vez, a renunciar também”, explica Guerra.
O intelectual cubano Ambrosio Fornet lembra que Castro anunciou sua demissão na televisão e depois, seus seguidores, convocaram uma mobilização para exigir a renúncia de Urrutia.
“Foi um ato maciço e não havia dúvida de que Fidel era o herói do momento e que Urrutia não tinha outra opção a não ser renunciar”, disse ele à BBC Mundo.
Segundo o historiador Tomas Diez, Urrutia “se deixou levar pela propaganda” de ir contra a revolução comunista e a “traiu”.
“Ele foi uma pessoa que deu declarações anticomunistas e jogou o jogo de não concordar com o governo”, diz ele.
Depois de renunciar à Presidência, em julho de 1959, Urrutia se refugiou na embaixada venezuelana.
Ele foi substituído por Osvaldo Dorticós, um líder comunista que anos depois acabaria se matando com um tiro na cabeça.
Desde 1976, a figura do presidente da República desapareceu da Constituição cubana e todo o poder recaiu formalmente sobre Fidel Castro.
Um salvo conduto permitiu que Urrutia deixasse Cuba e se refugiasse nos Estados Unidos, de onde, sem apoio, tentou fazer oposição ao castrismo até sua morte, em 1981.
“No exílio, ele teve sua maior transcendência. Ele não era um político, aqueles que o conheciam sempre se referem a ele como um homem sem carisma. Ele realmente chegou a um lugar que nem ele mesmo imaginava nem pretendia alcançar. Foi um instrumento do momento histórico que lhe coube”, conclui Guerra Vilaboy.
Envelhecido e desgastado, seu nome se perdeu desde então no esquecimento da história.