Mao Tsé Tung, vencedor de uma sangrenta guerra civil. Fundador da República Popular da China

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Mao Tsé Tung (Shaoshan, China, 26 de dezembro de 1893 – Pequim, China, 9 de setembro de 1976), vencedor de uma sangrenta guerra civil de mais de vinte anos, dirigente supremo da nação nos últimos 27 e dono de uma autoridade absoluta, semidivina, que transformou radicalmente a China e mudou o destino de seus 800 milhões de habitantes. Fundador da República Popular da China e um dos mais proeminentes teóricos do comunismo do século 20, Mao Tsé-Tung (ou Mao Zedong) desenvolveu ideias sobre revolução e guerrilha que influenciaram marxistas no mundo inteiro, inclusive no Brasil, onde o PC do B – então na clandestinidade e ligado à China – desenvolveu ações guerrilheiras durante a década de 1970.

A trajetória do líder

Foi o período mais terrível da vida de Mao Tsé Tung, os dezoito meses passados entre a vida e a morte, a glória ou o esquecimento, e conhecidos como a Longa Marcha – 10 000 quilômetros de colossais avanços e recuos, entre 1934 e 1935, em que as tropas guerrilheiras, fugindo ao assédio das forças nacionalistas de Chiang Kai-shek, rasgaram a China desde a província de Kiangsi, ao sul, até a de Shensi, no norte.

Quase sempre, Mao se encontrava em estado febril – pouco se alimentava, menos ainda dormia. De dia, a ordem era combater ou marchar, às vezes a cavalo, quase sempre a pé. À noite, ele consultava mapas, fazia anotações, lia os jornais e livros que trazia na mochila. Ou então escrevia poemas como este: “Montanhas!/Elas penetram no azul do céu/seus picos afiados.? Os céus ruiram/se sua força não os sustentasse”. Mao Tsé Tung, no que tinha talvez de mais essencial, era isso: no meio da batalha mais árdua, a parada para a contemplação lírica: no fogo da ação, o momento de recolhimento em si mesmo.

Ele era ao mesmo tempo o guerrilheiro e o poeta, o estadista ardiloso, às vezes cruel, e também o visionário em sua versão mais acabada. Nada mais chinês, nada mais de acordo com a milenar herança de um povo habituado a imperadores-poetas, ou senhores feudais em que se mesclavam o impulso guerreiro e o ardor místico. Mao era capaz de frases agudas, de chocante praticidade, como a célebre “O poder está na ponta dos fuzis”, mas podia mergulhar em insondáveis abismos metafísicos, como quando afirmava: “Meu ser mais profundo é o universo infinito”.

Mao era o presente, mas de certa forma representou também o passado e o futuro da China. Ele foi o introdutor no país do que havia de mais moderno e revolucionário, mas foi também o promotor do reencontro histórico dos chineses consigo mesmos, o grande unificador do país – uma proeza frequentemente comparada às jornadas épicas dos imperadores de milênios atrás. Não é de espantar, portanto, que sua morte, longamente esperada, tenha sido considerada pelos chineses como a perda de um deus – e que, sua nação se encontrasse desamparada e perplexa. Pois Mao Tsé Tung não era apenas um grande chefe político, ou um articulador de ideias. Acima das ideologias e circunstâncias, pode-se dizer que entre suas obras está a de ter feito a China ressuscitar como potência.

Rebeldia – Aquela Grande Marcha dos anos 30, não só para Mao como para a China, representou a crucial travessia. Antes, encurralado com seu bando guerrilheiro nos confins de Kiangsi pelas tropas de Chiang Kai-shek, Mao parecia viver a agonia sem remédio. Depois da resistência penosa, e apesar das perdas enormes – dos 100 000 componentes originários da coluna, apenas entre 10 000 e 20 000 chegaram a Shensi -, o grupo revolucionário teve condições de se reerguer e reagir até a vitoria final em 1° de outubro de 1949. Bem antes e bem depois desse crucial episódio, no entanto, podem-se econtrar e exemplos, ao longo da vida de Mao, de outra característica inseparável de sua personalidade – a indomável, incurável rebeldia.

Nascido no dia 26 de dezembro de 1893, de uma família de camponeses pequenos proprietários de terra no sul da China, os primeiros sinais de tensão que Mao detectaria à sua volta originavam-se dentro da própria família. Como relataria ele mais tarde, em seu incorrigível jargão político, havia “dois partidos” dentro do círculo familiar. “O partido do poder”, prosseguiu Mao, “era constituído por meu pai. A oposição era formada por minha mãe, eu e um dos meus irmãos.” O pai, Mao Jen-sheng, proprietário de 1 hectare de terra na província agrária de Hunan, era, segundo Mao, insensível e vingativo. Ao contrário, a mãe – analfabeta e devota de Buda – era carinhosa e pacífica. “Dentro da “frente unida” da oposição”, conta ainda Mao, “havia divergências de opinião. Minha mãe advogava uma política de ataque indireto. Ela criticava qualquer demonstração de emoção ou tentativas de aberta rebelião contra o poder dominante, dizendo que isso não era próprio dos chineses.”

O menino Mao, no entanto, não podia conter seus impulsos. Aos 10 anos, já encenava seu primeiro grande ato de sublevação, ao fugir da escola e ficar sem aparecer também em casa durante três dias. Depois, aos 13, viveria outra cena marcante, quando o pai “denunciou-o” certo dia como “preguiçoso” e “inútil” na frente de convidados que visitavam a família. Imediatamente, o menino saiu correndo de casa, perseguido pela mãe conciliadora e o pai punitivo. Na beira de um poço, parou e ameaçou atirar-se na água. “Nesse momento”, diz Mao, “propostas e contrapropostas foram apresentadas para a cessação da guerra civil.” O pai insistia que ele pedisse desculpas e fizesse o kou-tou – gesto cerimonial de ajoelhar-se e abaixar a cabeça até o chão, como sinal de respeito filial. Afinal, Mao concordou em executar a reverência, mas abaixado sobre um joelho só – uma espécie de maio kou-tou -, e em troca obteve o compromisso de que o pai não lhe aplicaria castigos físicos.

Revolução cultural – O futuro revolucionário, naturalmente, não deixaria passar um episódio desses sem teorizar a respeito. “Aprendi então”, diria Mao, “que, quando eu defendia meus direitos com uma aberta rebelião, meu pai recuava, mas quando permenecia submisso ele apenas blasfemava e me batia mais ainda. A luta dialética em nossa família estava em constante desenvolvimento.” De qualquer forma, o eterno rebelde contido naquele menino não se acalmaria nunca. Mesmo depois de instalado no poder, ele promoveria outras revoluções dentro de sua revolução – movido por um fogo de rebelião absolutamente inapagável. Foi assim que ele lançou a China em turbilhões sócio-econômicos como o das “100 Flores”, movimento inspirado numa frase sua – “Deixai desabrochar as 100 flores” – e que, em 1956, pretendia libertar todas as correntes intelectuais, doutrinárias e artísticas existentes na China.

Depois viria o gigantesco, controvertido e fracassado esforço do day wejin, o “Grande Salto para a Frente”, com o qual, em 1958, Mao pretendia queimar etapas no desenvolvimento da China e promover um fantasmagórico programa de progresso econômico. Finalmente, em meados da década de 60, ele incendiaria o país, desta vez com mais combustível do que nunca, desde sua chegada ao poder, com a “Grande Revolução Cultural Proletária” – o movimento que virou a China de cabeça para baixo, reciclou sua ideologia para o ponto mais alto do fervor ideológico e liberou um incontrolável terremoto social.

A lógica da sublevação, que sempre orientou o pensamento de Mao, é expressivamente ilustrada por um diálogo travado no dia 24 de junho de 1964 – ás vésperas da Revolução Cultural – entre ele e uma sobrinha, Wang Hai-jung, cujas transcrições foram divulgadas depois pelo governo chinês, junto com outros documentos íntimos sobre o líder. A certa altura, a sobrinha queixava-se da presença, em sua escola, de um aluno que dormia e lia romances durante as aulas. “Os professores permitem que se durma ou s eleiam romances durante as aulas?”, perguntou então Mao. Wang Hai-jung respondeu que não, e então Mao decidiu: “É preciso autorizar a ler romances durante as aulas; é preciso autorizá-los a dormir. Creio que esse estudante de que você me fala será alguém”. Mais tarde, a sobrinha relatava seu cansaço em comparecer à escola mesmo nos domingos à noite. “Então você não precisa ir”, comentou Mao. “Quando você voltar à escola, é preciso que você seja a primeira a se rebelar. Qual a importâncias disso tudo? Você simplesmente não vai, e declara “Eu não respeito o regulamento da escola”. É preciso que as escolas dêem aos estudantes a permissão de se revoltar.”

“Liberdade” – O espírito devastadoramente inquieto de Mao Tsé-tung forjou-se numa China ferida pela miséria e pela submissão ao estrangeiro. O país que ele tinha à sua volta, na sua juventude, no início do século, era uma nação em que à humilhação da pobreza se somava um poder repartido: a autoridade do imperador estava em franca decadência e era desafiada pelos “senhores da guerra”, donos absolutos de seus feudos, ou por potências como a França ou a Inglaterra, que não só gozavam de privilégios no comércio como possuíam faixas inteiras do próprio território chinês. Nesse ambiente, começaram a fervilhar ideias estranhas à milenar tradição chinesa, como por exemplo o conceito ocidental de “liberdade”, algo absolutamente exótico no país.

Nessa ocasião, Mao, que completara a duras penas seus estudos primários, obrigado, desde os 6 anos, a trabalhar nas plantações de arroz do pai, atravessava as dificuldades comuns aos jovens sem recursos e, ainda por cima, com alarmantes falhas em sua educação. Mao só veio a ler um jornal em 1911, aos 17 anos, quando se instalou em Changsha, a capital da província de Hunan – e foi uma descoberta. Outra surpresa eram as ideias com as quais ele começava a entrar em contato.

O futuro líder comunista, nessa época, se fez republicano e alistou-se no Exército, onde permaneceria durante seis meses. Ao mesmo tempo, o ledor voraz que já era desde criança, quando passava noites em claro lendo os clássicos chineses ou romances de ação, começou a travar conhecimento com uma literatura mais instigante para seu espírito. Na biblioteca da província de Hunan, em Changsha, da qual se tornou assíduo frequentador, Mao toma contato com algumas obras fundamentais do pensamento ocidental – “A Riqueza das Nações”, de Adam Smith, “A Origem das Espécies”, de Charles Darwin.

Definitivamente, contudo, tratava-se de um jovem irresoluto quanto à sua vocação. Depois de deixar o Exército, Mao percorria incansavelmente os anúncios nos jornais em que as escolas descreviam seus cursos e suas vantagens. Chegou a se inscrever e pagar a matrícula num curso de polícia, que jamais frequentou. O mesmo aconteceucom relação a uma escola de comércio, de Direito, e até mesmo um curso para aprender a fazer sabão. Finalmente, fixou-se na Escola Normal, que cursou de 1912 a 1918. O diploma que ali obteve lhe seria útil: mais tarde, Mao se empregaria como instrutor numa escola primária de Changsha e, ainda mais para a frente, teria um período como professor de História na Universidade de Pequim.

Culto à personalidade – A profissão de professor era algo de que Mao se orgulharia até o fim. Numa de suas últimas conversas com Edgar Snow, o falecido jornalista e historiador americano que mais recolheu fatos e depoimentos sobre a Revolução Chinesa, ele diria que dos quatro títulos então invariavelmente acoplados a seu nome nas proclamações oficiais – os de “Grande Chefe”, “Grande Educador”, “Grande Timoneiro” e “Grande Comandante Supremo”, o único de que gostava realmente era o de “educador”. Isso eu fui a vida toda”, acrescentaria Mao.

Nessa mesma conversa com Snow, foi abordado o avassalador culto à personalidade de que Mao era objeto. O líder chinês, ele que, no início do regime comunista, havia decretado a proibição de dar nomes de pessoas a ruas, justamente para evitar as idolatrias abusivas, reconheceu o exagero da veneração à sua pessoa e confessou-se algo entediado por ser tratado como um ser sagrado. No entanto, justificou-se Mao, “para um povo que está acostumado a venerar seus imperadores há três milênios, não é fácil renunciar à devoção a seus chefes”.

Nem sempre foi assim, porém. Nem sempre Mao foi encarado como o líder incontrastado do comunismo chinês, nem sempre suas ideias foram endossadas pelos demais companheiros de Partido como a linha oficial a ser seguida. Ao que se saiba, sua definitiva adesão ao marxismo se deu por vola de 1918 ou 1919, sob o impacto da revolução bolchevista russa, então em seus primeiros passos. Em fins de 1920, Mao criava um núcleo comunista em Changsha, seguindo o exemplo dos grupos que começavam a surgir nas principais cidades da China. E foi na qualidade de líder regional que em julho de 1921 participou do acontecimento considerado como a fundação do Partido Comunista Chinês: a reunião de treze delegados desses grupos em Xangai, no que passou a ser considerado depois como o primeiro congresso do Partido.

Conspiração no barco – As circunstâncias desse primeiro encontro nacional dos comunistas chineses, como era de se esperar, foram altamente desfavoráveis para os participantes. Primeiro, eles se reuniram numa escola para moças, na parte de Xangai que se encontrava sob domínio francês – fora do alcance, portanto, das autoridades chinesas. Mas a escola, no dia seguinte, fechou para férias, e os conspiradores tiveram de perambular longamente pela cidade, em busca d eum lugar tranquilo onde prosseguir os trabalhos. Finalmente, a última sessão realizou-se em plena superfície de um lago que banha a cidade – o lago sul. Fingindo-se de turistas, os delegados alugaram um barco e, a bordo dele, tomaram suas resoluções finais.

De qualquer forma, demoraria ainda mais de uma década até Mao impor definitivamente sua liderança ao novo partido. Inclusive porque suas ideias pouco ortodoxas, para os padrões do marxismo-lenismo, causaram-lhe incontáveis atritos, não só entre os companheiros chineses como também em suas relações com os agentes do Comintern – a Internacional Comunista, que, sob regime de Josef Stálin, na União Soviética, funcionava como guia, organizadora e e financiadora das revoluções ao redor do mundo.

Mao cortejava a ideia, por exemplo, de que a revolução poderia partir do campo, dos camponeses – algo que se chocava frontalmente com a concepção leninista segundo a qual a classe operária, nos grandes centros urbanos, devia ser a vanguarda da revolução comunista. Além disso, Mao via com desconfiança as táticas, aconselhadas por Stálin, de aliança com os partidos liberais e tentativa de conquista do poder por meios pacíficos – para ele, o comunismo só poderia ser implantado através da luta armada.

Embaixador com Chiang – Nessas divergências – num momento em que poucos divergiam de Stálin – já estavam as primeiras sementes daquilo que muito depois se transformaria numa ruptura definitiva entre a China e a União Soviética e num gigantesco cisma no movimento comunista mundial. Durante toda a longa e intermitente guerra civil chinesa das décadas de 30 e 40, entre o Kuomintang, ou Partido Nacionalista, de Chiang Kai-shek, e os comunistas – com períodos de trégua em que ambos se uniam para enfrentar o invasor japonês -, Moscou sempre hesitou em dar seuapoio decisivo aos comunistas e nunca deixou totalmente de cortejar os nacionalistas.

Até mesmo quando Mao Tsé-tung tomou Pequim, em 1949, os russos continuaram com sua atitude ambígua: ordenaram a seu embaixador que se deslocasse a Nanquim, onde se refugiou o governo de Chiang Kai-shek. Em seguida, quando Nanquim foi tomada e Chiang retirou-se para o que seria o seu último bastião no continente chinês – Cantão -, o embaixador russo continuou a acompanhá-lo. O representante de Moscou só não chegou ao ponto de cruzar as águas até a ilha de Formosa, quando Chiang, protegido pela Marinha americana, ali se instalou – e essa longa série de dibiedades, nas relações entre os dois partidos comunistas, sempre foi comentada com desgosto por Mao Tsé-tung.

Depois da morte de Stálin, da ascensão de Nikita Kruschev e da denúncia, por esse último, do stalinismo, o precário dique que continha os ressentimentos acumulados, as divergências ideológicas e os interesses conflitantes das duas potências comunistas se romperia definitivamente. Uma conferência de Mao com Stálin, numa das duas vezes em que o chinês foi a Moscou – suas únicas viagens ao exterior -, não foi capaz de estabelecer uma aliança realmente sólida entre os dois. Nem um encontro com Kruschev, quando este último foi a Pequim, serviu para evitar o rompimento. O distanciamento com Moscou, finalmente, ainda haveria de produzir outro resultado, mais recente: a reaproximação com os Estados Unidos, selada com a histórica viagem de Richard Nixon a Moscou em fevereiro de 1972.

Ideias vitoriosas – As diferenças com os russos, desde o princípio da década de 60 até hoje, sempre pareceram inarredáveis enquanto Mao Tsé Tung continuasse a exercer sua influência esmagadora sobre o comunismo chinês. E, infelizmente para os russos, aquele camponês-guerrilheiro – um herético do marxismo, segundo Moscou – já se encontrava entricheirado no comando do Partido de seu país desde aquele turbulento ano da Longa Marcha, 1935. Foi em janeiro desse ano, com efeito, que Mao conquistou o posto supremo entre os comunistas chineses. Até então, a Longa Marcha era comandada por Chu Te, no plano militar, e por Chu Em-lai no plano político.

Mas as ideias de Mao de cultivar os camponeses, ir promovendo a reforma agrária e aumentando os quadros do Partido, à medida que a coluna percorria as imensidões do interior chinês, começavam a dar resultado. Afinal, sua doutrina não parecia tão longe da realidade. Proclamado presidente do Partido, nessa época, Mao teria, dez anos depois, também seu pensamento entronizado como a linha oficial a ser seguida. Realmente, o 7.° Congresso do Partido, realizado em Yenan, cidade da província de Shensi, onde os comunistas se instalaram e fundaram um soviete, depois da Longa Marcha, proclamava, em junho de 1945: “O PC chinês reconhece como teoria-guia de todo o seu trabalho a doutrina do marxismo-leninismo e os princípios derivados da experiência prática da Revolução Chinesa, isto é, as ideias de Mao Tsé-tung”.

Na verdade, isso não significava ainda o fim dos sobressaltos do líder chinês. Ele haveria de passar por violentas contestações à sua autoridade, como quando, no início da década de 60, a linha moderada chefiada por Liu Shaochi apoderou-se de importantes posições no Partido e no governo. Mas Mao acabaria por derrotar Liu, ao fim da Revolução Cultural, como haveria de derrotar também aquele que deveria ser seu sucessor – Lin Piao -, ao fim de outra sangrenta e até hoje ainda não totalmente esclarecida luta pelo poder transcorrida em 1971. E ainda em 1976, depois da morte de Chu Em-lai, em janeiro, mais uma convulsão sacudiria o Partido chinês, desta vez ocasionando a deposição do então primeiro-ministro interino Teng Hsiao-ping, até hoje rotulado como um “revisionista” inimigo de Mao. Mas nada disso é de surpreender na China, nem na vida do velho líder. Na realidade, sua biografia é uma sucessão contínua de tumultos – inclusive no plano pessoal.

Mulheres – Com efeito, a vida familiar de Mao Tsé-tung apresenta-se quase tão acidentada quanto sua trajetória política. Aos 14 anos, sob imposição dos pais, ele se casaria pela primeira vez, com sua noiva quatro anos mais velha. Esse casamento, porém, de acordo com o próprio Mao, jamais se “consumaria” – logo ele fugiu da noiva, segundo alguns biógrafos no próprio banquete de núpcias. Depois, em 1921, Mao casou-se com Yang Kai-hui, filha de um seu professor na Escola Normal, e no fim da década de 20 (nunca se soube precisar bem a data) faria um terceiro casamento, desta vez com Ho Tzu-chen, sua companheira durante a Longa Marcha.

Finalmente, em 1939, na época do reduto comunista de Yenan, Mao se uniria a uma ex-atriz de cinema nascida com o nome de Li Ching-syun, que durante sua vida artística adotaria o nome de Lan Ping (Maça Azul), para enfim ser rebatizada por Mao como Chiang Ching (Rio Verde). Nos últimos anos, segundo consta, as relações entre Mao e Chiang Ching encontravam-se num nível de distanciamento tal que nem mesmo acesso à residência do líder, na Cidade Proibida de Pequim, a esposa tinha. Em todo caso, cabem agora à ex-atriz, uma mulher de extrema militância na política chinesa – com atuação destacada durante a Revolução Cultural e até agora uma das cabeças da ala mais redical do Partido chinês -, as honras de viúva do grande líder.

Mao teve um mínimo de seis filhos, computados todos os seus casamentos, mas o número preciso jamais foi conhecido. Sabe-se, de qualquer forma, que a tragédia sempre também esteve presente na vida do líder. Dois de seus filhos, com Ho Tzu-chen, ele deixaria aos cuidados de uma família de camponeses, durante a Longa Marcha – e jamais os encontraria depois. Outro filho morreria na guerra da Coreia, em 1950. Os dois irmãos e a irmã de Mao morreram em combate, na época da guerra civil, e sua segunda mulher, Yang Kai-hui, seria fuzilada pelas forças nacionalistas, depois de divorciada de Mao, em 1930. Ho Tzu-chen, a terceira, morreu na União Soviética, para onde seguiria em 1937, doente dos nervos.

De todas as mulheres, segundo alguns, a segunda seria a que mais marcante influência teria deixado em Mao Tsé-tung. Nada de tão difícil comprovação, na vida de alguém absolutamente refratário a confessar qualquer sentimento íntimo. Seja como for, Yang -álamo, em chinês – mereceu o único poema conhecido de Mao em que uma mulher é citada, um texto em que o autor começa se lamentando da perda de seu “magnífico álamo”, para depois imaginar sua alma “bailando no céu infinito”. Nos outros poemas, o tema nunca é uma pessoa individualizada. São entidades incapturáveis, como os montes e os rios, as tempestades, a noite, os dragões, os sonhos – e a China.

APAGA-SE A ÚLTIMA ESTRELA

Com a morte de Mao Tsé-tung, seu líder absoluto há três décadas, a China perde a última e maior figura de sua constelação de heróis nacionais
Desde o início, para a China, 1976 foi um ano carregado de desgraças. Inundações assolavam várias províncias, um gigantesco meteoro espatifou-se contra região nordeste e, começando a 28 de julho, uma avassaladora sucessão de terremotos espalhou pelo país destruição e mortes.
Finalmente, na quinta-feira, dia 9 de setembro, 15.° dia da oitava lua, segundo o antigo calendário chinês, o rosário de infortúnios seria coroado com a conta de talvez mais pesadas consequências: aos 10 minutos da madrugada, morreu o líder que mais fundo tenha marcado a vida do país, em seus três milênios de história – Mao Tsé-tung, vencedor de uma sangrenta guerra civil de mais de vinte anos, dirigente supremo da nação nos últimos 27 e dono de uma autoridade absoluta, semidivina, que transformou radicalmente a China e mudou o destino de seus 800 milhões de habitantes.

Fossem outros os tempos e o nexo entre as várias catástrofes seria imediatamente estabelecido. Pois, segundo a milenar cosmologia chinesa, desastres naturais eram o prenúncio de que chegara para o imperador, finalmente, o momento de perder o “Mandato dos Céus” – o direito absoluto e incontestável de governar. Seja como for, o imperador-guerrilheiro que foi Mao, o filho de camponeses transformado em algo próximo de uma divindade entre seus concidadãos, desaparecido dois meses e meio antes de completar os 83 anos, teve sua morte anunciada, apropriadamente para o país que forjou, na forma de um comunicado do Comitê Central do Partido Comunista. “O camarada Mao Tsé-tung”, dizia a nota, “respeitado e querido líder de nosso Partido, no Exército e das diversas nacionalidades do nosso povo, grande mestre do proletariado internacional e das nações e povos oprimidos do mundo, morreu em consequência do agravamento de sua enfermidade, em que foram esgotados todos os recursos médicos”.

Nenhum analista previu com exatidão que terá na condução e na vida do país a morte do líder. Com Mao, desapareceu o último dos grandes forjadores da história do século XX. E, para os chineses, apagou-se a última e maior das estrelas de uma constelação de heróis que já fora desfalcada, ainda em 1976, de figuras como o primeiro-ministro Chu En-lai, segundo homem na mais alta hierarquia chinesa desde a vitória da Revolução, em 1949, e o marechal Chu Teh, ex-comandante supremo do Exército Popular de Libertação.

A morte de Mao só foi anunciada às 16 horas do dia 9 de setembro, com um atraso de mais de dezesseis horas, e provocou enorme comoção. O primeiro sinal de que algo havia acontecido foi a transmissão da “Internacional”, o hino dos comunistas em todo o mundo, pela Rádio de Pequim. A emissora pedia também que todos os chineses estivessem perto de um aparelho de rádio às 16 horas, para uma “importante comuicação” – o que, de certa forma, preparou os epíritos.

Centenas de pessoas concentraram-se depois na imponente praça Tien Ân Men – a praça da Paz Celestial, em Pequim, na entrada da Cidade Proibida, onde se encontra a residência de Mao. Enquanto os alto-falantes tocavam música fúnebre, a “Internacional” e o hino chinês, “O Oriente é Vermelho”. Nas ruas reinava um completo silêncio, embora elas estivessem cada vez mais cheias. A lua cheia começou a iluminar a imensa praça da Paz Celestial e o grande retrato do presidente sobre o portal da Cidade Proibida ficou cercado de flores e faixas de saudação.

O rádio transmitia a nota do Partido lembrando que Mao fizera praticamente tudo: liderara a Revolução e o Exército, vencera “os oportunistas de esquerda e de direita”, revelara a teoria histórica de que “a burguesia existe dentro do Partido”, lutara contra o “revisionismo” e proporcionara uma “experiência nova e plena de significado mundial”. Agora, dizia a nota, é “o momento de transformar a dor em força para continuar a vontade de Mao”.

Segundo a proclamação do Comitê Central, é preciso “fortalecer a direção unificada do Partido” e “unir-se estreitamente em torno do Comitê Central”, “aprofundar a crítica a Teng Hsiao-ping” – o dirigente que caiu em desgraça em abril -, “continuar o contra-ataque ao vento direitista” e “consolidar e desenvolver as vitórias da Grande Revolução Cultural Proletária” – o vendaval ideológico que, sob a inspiração de Mao, varreu a China de 1966 a 1969.

Na verdade, a morte de Mao ocorreu num momento especialmente nebuloso da política chinesa – o mais confuso desde o final da tormentosa Revolução Cultural. Desde 1975 começaram a se alastrar desordens públicas ligadas a uma luta pelo poder ou a um enfraquecimento da autoridade.

Mao, na verdade, talvez não tenha um sucessor formal. O corpo de Mao foi exposto à visitação de milhões de chineses, no Grande Salão do Povo – última oportunidade para o adeus a um líder que não mais apareceu em público a partir de 1.° de maio de 1971 e foi visto pela última vez na televisão a 27 de maio de 1976, durante a audiência ao primeiro-ministro paquistanês Zulfikar Ali Bhutto. Nenhum governante estrangeiro, conforme a tradição, foi convidado. A bandeira permaneu hasteada a meio pau em todos os mastros e todas as atividades recreativas foram suspensas pelo luto oficial. Perante a multidão reunida na praça Tien Na Men, uma alta personalidade pronunciou o último elogio fúnebre. Ao iniciar o ato, tocaram sirenas em todos os rincões da China durante três minutos – e, por igual período, centenas de milhões de chineses manteram-se em pé, em silêncio. Uma reverência poderosamente significativa para alguém, como Mao Tsé-Tung, que se orgulhava de ter, como disse, feito sua pátria levantar-se dos próprios joelhos.

Os ensinamentos do pensador Mao Tsé-tung

O gabinete de trabalho de Mao Tsé-tung na Cidade Proibida, repleto de livros, recortes de jornais e manuscritos, lembrava mais o local de trabalho de um escritor, segundo o jornalista americano Edgar Snow, do que o escritório do dirigente supremo de 800 milhões de chineses. Quase tão ampla como sua atividade à frente do PC chinês, na verdade, foi a formidável produção literária de Mao – e seus textos políticos, suas citações ou simples slogans, às vezes recorrendo a surpreendetes imagens, tornaram-se imensamente populares não apenas na China, mas em quase todo o mundo. Abaixo, algumas de suas célebres citações:

A revolução não é o convite para um jantar, a composição de uma obra literária, a pintura de um quadro ou a confecção de um bordado. Ela não pode ser assim tão refinada, calma e delicada, tão branda, tão afável e cortês, comedida e generosa. A revolução é uma insurreição, é um ato de violência, pelo qual uma classe deruba a outra. (Março, 1927)

Devemos apoiar tudo o que o inimigo combate e combater tudo o que o inimigo apóia. (Setembro, 1939)

Todos os reacionários são tigres de papel. Na aparência, os reacionários são terríveis, mas na realidade não são assim tão poderosos. A longo prazo não são os reacionários, mas o povo que é realmente poderoso. (Agosto, 1946)

Ninguém é sem defeitos…Eu vi os manuscritos de Lênin e constatei que havia uma porção de correções. Se ele não tivesse cometido erros, por que então teria feito correções? (Julho, 1959)

O nosso princípio é o seguinte: o Partido comanda o fuzil e jamais permitiremos que o fuzil comande o Partido. (Novembro, 1938)

A nossa palavra de ordem na instrução das tropas é que “os oficiais instruem os soldados, os soldados instruem os oficiais e os soldados instruem-se uns aos outros”. Os soldados têm muita experiência prática de combate. Os oficiais devem aprender com eles. (Abril, 1948)

Desde a noite dos tempos, os que tiveram o espírito mais criativo, que geraram novas ideias, novas correntes de pensamento, sempre foram jovens. Esses jovens não tinham, necessariamente, muita instrução. (Marcço, 1958)

Não temam criar problemas. Qaunto mais problemas vocês criarem e quanto mais tempo os fizerem durar, melhor. A confusão é sempre digna de interesse. Quanto mais vocês temerem os fantasmas, mais irão encontrá-los. Porém, não descarreguem os fuzis. Nunca é bom abrir o fogo. (Setembro, 1966)

O ensino da medicina deveria ser reformado. Fundamentalmente, não é necessário ler tantos livros, passar tantos anos na escola… Quando se lêem livros demais, fica-se estúpido. (Junho, 1965)

Inflinge-se exames aos estudantes como uma espécie de inimigo a vencer. Preparam-se emboscadas contra eles, cheias de truques e questões obscuras. São métodos acadêmicos estereotipados que eu desaprovo. (Fevereiro, 1964)

Os estudantes deveriam ter o direito de se consultar, de “colar”. O que conta é ter boas respostas e é uma boa coisa que elas sejam copiadas por outros. (Fevereiro, 1964)

Devemos usar o nosso cérebro, refletir bem sobre cada coisa. Há um ditado que diz: “Basta um franzir de sobrolho para que um estratagema venha à mente”. Em outras palavras, muita reflexão engendra sabedoria. Para nos livrarmos do vício de agir às cegas, tão generalizado em nosso partido, devemos encorajar os camaradas a refletirem. (Abril, 1944)

É preciso estar atento não só às partes mas ao todo. Uma rã no fundo de um poço dizia que o céu “era tão grande como a boca do poço”. Isso não era exato… mas se ela tivesse dito que “uma parte do céu era tão ampla como a boca do poço” estaria falando uma verdade, já que isso corresponde à realidade. (Dezembro, 1935)

Que cem flores desabrochem e cem escolas de pensamento rivalizem, eis a política para o desenvolvimento das artes e o progresso das ciências. Pensamos que é prejudicial o recurso a medidas administrativas para impor um estilo particular ou uma só escola de pensamento. O problema do certo e do errado nas artes e nas ciências deve ser resolvido pela discussão livre nos circulos artísticos e científicos. (Fevereiro, 1957)

A conquista da vitória em todo o país não é mais que um primeiro passo. A Revolução Chinesa é uma grande revolução. Mas, após a vitória, a estrada a percorrer será ainda mais longa, a nossa tarefa ainda mais grandiosa e árdua. (Março, 1949)

Todo homem tem que morrer um dia, mas nem todas as mortes têm a mesma significação. Sema Tsien, um escritor da China antiga, dizia: “É verdade que os homens são mortais; mas a morte de uns tem mais peso que o monte Tai, enquanto a morte de outros pesa menos que uma pena”. Morrer pelos interesses do povo tem mais peso que o monte Tai, mas a morte dos opressores do povo pesa menos que uma pena. (Setembro, 1944)

(Fonte: Veja, 15 de setembro, 1976 – Edição n.° 419 – INTERNACIONAL – Pág; 30 a 42)

5 de maio de 1946 – A China começou a enfrentar três anos de guerra civil que terminaria com a vitória dos comunistas e a ascensão de Mão-Tsé Tung.
(Fonte: http://www.guiadoscuriosos.com.br/fatos_dia – 5 de maio)

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