O último dos mestres modernos
Marc Chagall (Vitebsk, Bielorrússia, 7 de julho de 1887 – Saint-Paul de Vence, França, 28 de março de 1985), um dos mestres que ajudaram a transformar a arte do século 20. Um dos maiores nomes da pintura moderna ao lado de Picasso e Miró. Ele foi um prestidigitador de evocações do passado e um sonhador nato. Com seus pincéis, empreendeu incontáveis e coloridos passeios pelas reminiscências de sua vida e de sua devoção. Modernista na forma, Marc Chagall foi antes de tudo um contador de histórias através da imagem. Seu universo de vacas coloridas, rabinos e soldados, acrobatas e amantes que levitam alegremente é inconfundível.
O monstro sagrado Pablo Picasso, que só ao morrer, em 1973, abriu espaço para Chagall ser promovido a maior pintor moderno vivo, considerava a arte do colega russo um estado de espírito. “Nunca se sabe se Chagall está dormindo ou acordado. Ele deve ter um anjo na cabeça”, dizia Picasso. Para o poeta surrealista francês André Breton, “foi através dos quadros de Chagall que a metáfora marcou sua entrada triunfal na pintura moderna”.
Último dos mestres de sua geração só não sobreviveu a Salvador Dali, o sonhador do surrealismo, que em 1984, aos 80 anos, escapou de ser queimado vivo em seu leito na Espanha -, Chagall atravessou todos os ciclos da arte moderna sem jamais ter perdido contato com a emoção. Nunca foi tentado pela austeridade intelectual da arte abstrata pura, e sua pintura jamais se desprendeu de sua alma. Por isso a obra de Marc Chagall jorra vida, cor, imaginação, intensidade. Ela não provoca surpresas – além da inicial – além da inicial – e não arromba portas. Da mesma forma que um passeio pela obra de Renoir deixa um mesmo sabor agradável, a arte de Marc Chagall transformou uma mesma sensação de encanto e profundidade.
UNIVERSO PESSOAL – “Marc Chagall fez com a gravidade o que os cubistas fizeram com o espaço”, diz o crítico americano Paul Richard. De fato seus personagens flutuam livremente pelo espaço da tela e a escala dos objetos só obedece a um critério emocional: o vaso sobre a mesa pode ser tão gigantesco que os namorados se abrigam junto a seu pedestal, uma aldeia em chamas pode esconder-se sob as dobras de uma toalha ou pacatos animais domésticos como cabras, bois e jumentos podem crescer, diminuir ou simplesmente voar num horizonte de cores intensas.
Tantas ousadias no espaço, com temas tão prosaicos, tornaram a pintura de Chagall difícil de ser classificada – embora ela seja inconfundível. Ao contrário de outros mestres, como Picasso, Cézanne ou Matisse, cujas descobertas básicas serviram de ponta-de-lança para outros artistas, Chagall não criou regras. Em compensação, abriu um fantástico horizonte poético de um universo absolutamente pessoal. “Meus quadros sempre foram minha memória”, confessou Chagall mais de uma vez. Realmente, ele transformou em pintura seus vizinhos de aldeia, os rabinos na sinagoga, os animais domésticos e suas cenas de amor.
Em toda a pintura moderna, ninguém foi mais nostálgico de lembranças do que Chagall. Na juventude evocava as festas de Vitebsk, seus encontros com a amada – a namorada da aldeia, Bella Rosenfeld, com quem casou-se e viveu 29 anos, apaixonado até sua morte, em 1944 e personagens queridos como o inesquecível tio Neuch, transformado em violinista em várias de suas telas. Com o passar dos anos, eram os lugares que o comoviam – surgiram telas com Paris ao fundo e objetos familiares flutuando como se surgissem da memória. Finalmente, com imagens da Bíblia conseguiu concentrar sua nostalgia por um mundo perdido onde o sagrado e o religioso eram uma experiência cotidiana.
Apesar de conviver com cubistas, fauvistas ou pioneiros radicais, como o russo Kasimir Malevich (1878-1935), Chagall nunca se aventurou no rigor da arte abstrata. Ele partiu sempre de elementos de sus própria biografia. Uma tela como O Aniversário, por exemplo, pintada entre 1915 e 1923, na qual um casal voador corta a tela em diagonal e um chão vermelho faz contraponto para delicados tecidos bordados, nada mais é que a transcrição da primeira visita que sua bem-amada Bella fez a seu quarto em Vitebsk, no dia de seu aniversário. “Naquele dia, corri cedo aos arredores da cidade para colher um grande buquê”, escreveu Bella Chagall recordando essa tela, “e, ao chegar ao quarto, desembrulhei depressa meus xales de muitas cores e os pendurei na parede. Ele se virou, arrumou o cavalete e disse: não se mexa, fique onde está… Eu ainda tinha as flores nas mãos.” Assim começava uma tela.
SEM SEGUIDORES – Embora Chagall construísse seus quadros a partir de emoções simples, a maneira de solucionar plasticamente suas imagens, até os anos 30, foi sempre muito original. “Quero que a liberdade do olho do espectador diante de uma tela minha seja igual à liberdade que tenho ao empunhar o pincel em frente à tela”, dizia ele. Algumas delas tornaram-se ícones do século 20, como a composição Eu e a Aldeia, de 1911, na qual o espaço é dividido em diagonal, com o confronto face a face de uma vaca e o seu dono, e todo um universo de cenas de aldeia é distribuído pelo resto da obra. “É a originalidade que faz de Chagall um dos melhores pintores do século 20”, diz William Rubin, curador do Museu de Arte Moderna de Nova York, “e não a influência que ele exerceu. Não há seguidores para Chagall.”
Para muitos críticos, Marc Chagall, depois da II Guerra Mundial, tornou-se apenas um colorista decorativo, repetindo de forma mais tênue, embora com elegância, os símbolos mais fortes dos períodos anteriores.
Essas críticas jamais mudaram seu humor nem sua forma de pintar; “Se as cores de meus quadros não vibrassem, eu teria que mudar de profissão, declarou certa vez. Em sua Rússia natal, de onde saiu jovem para tentar a sorte em Paris, em 1910, ele buscou inspiração a vida inteira. Contudo, ele tentou retornar para lá uma única vez, quando, em 1918, foi nomeado comissário das Belas Artes em Vitebsk, da revolução que havia derrubado o regime czarista. A experiência não deu certo. “Quando representantes oficiais vieram ver o resultado prático na escola de artes da cidade”, lembra o historiador Lionello Venturi, “encontraram a cidade decorada não apenas com retratos de Marx e Lênin, mas com vacas e cavalos voando pelos ares.
A BÍBLIA - Sessenta anos depois, Chagall estava de volta à União Soviética, como convidado do governo que mantém algumas de suas telas expostas na galeria Tretiakov, em Moscou. Indagado, durante uma cerimônia em sua homenagem, por que não voltava a morar no país onde nascera, respondeu que era por causa da cor. Acredito que até hoje não entenderam, diria mais tarde. Como um pêndulo, Chagall oscilou, por toda a sua vida, entre dois polos: a aldeia de Vitebsk e a sua descoberta da Bíblia. Em 1931, foi convidado a fazer uma série de gravuras sobre o tema e disso nasceram as 105 magníficas águas-fortes que serviram de croquis para várias de suas pinturas e painéis. O próprio Chagall não se considerava religioso, mas chegou a admitir a seu amigo poeta, Guillaume Apollinaire (1880-1918), que buscava uma impossível intimidade com Deus. O judaísmo, dizia, não era uma questão de religião: Á a minha nacionalidade, minha lente para focalizar a vida.
Apesar de profundamente imbuído da simbologia judaica, Chagall usou candidamente o Cristo como tema-símbolo de mais um judeu perseguido. Uma de suas telas mais célebres neste sentido é A Crucificação Branca. Para a sinagoga de um hospital em Jerusalém, o Hadassah, Chagall reservou doze vitrais, simbolizando as doze tribos de Israel, iniciando uma faceta nova de sua criatividade. A partir dessas peças, desenvolveu outros vitrais para diversos espaços religiosos, como a catedral de Metz, a Fraumünster de Zurich e até a lendária catedral de Reims.
DUAS VEZES MODERNO - A partir dos anos 60, Chagall foi totalmente possuído por uma profunda alegria de viver, que passou a expressar criando cenários teatrais, cerâmicas e até mesmo projetos insólitos como o teto da Ópera de Paris, feito sob encomenda de André Malraux, ministro da Cultura da França na época. Seu trabalho mais curioso e certamente menos conhecido, foram seis painéis que decoram o iate Christina, feitos a pedido de seu proprietário, o falecido armador grego Aristóteles Onassis. Chagall teria recebido 2 milhões de dólares pela encomenda (em 1972), mas jamais aceitou visitar o iate, apesar dos insistentes convites que lhe foram feitos.
Mas Chagall jamais abandonou a pintura. Apesar da idade continuou trabalhando, junto com Valentine Brodsky, sua segunda mulher, até três meses antes de morrer. Para Ida, a filha única (do primeiro casamento), a herança paterna promete ser generosa. A recusa de Chagall em avançar pelo empolgante universo da arte abstrata pode ter lhe custado críticas mas também lhe rendeu dividendos. Hoje, a arte figurativa está novamente na moda, com força total. Moderno na juventude, Marc Chagall teve a sorte de viver o suficiente para se tornar moderno uma segunda vez, na velhice.
Chagall morreu no dia 28 de março, aos 97 anos, de ataque cardíaco em sua casa de Saint-Paul de Vence, no sul da França, e ao mesmo tempo, fecha-se definitivamente o capítulo dos mestres que criaram a grande aventura da pintura do século 20.
(Fonte: Veja, 3 de abril de 1985 - Edição 865 - DATAS - Pág; 83 - ARTE Pág; 108/109/111 e 112)
(Fonte: Veja, 17 de dezembro de 1975 - Edição 380 - ARTE/ Por Marinho de Azevedo - Pág; 116/117 e 118)
(Fonte: Veja, 19 de abril de 1978 - Edição 502 - ARTE – Pág; 94/95)