Maura Lopes Cançado, autora foi considerada promessa da literatura na década de 1960

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Mineira. A escritora Maura Lopes Cançado - (Foto: AJB / Agência O Globo/11/04/2014)

Mineira. A escritora Maura Lopes Cançado – (Foto: AJB / Agência O Globo/11/04/2014)

Maura Lopes Cançado (São Gonçalo do Abaeté, 27 de janeiro de 1929 – Rio de Janeiro, 19 de dezembro de 1993), autora foi considerada promessa da literatura na década de 1960, antes de ser internada e cair no ostracismo

Aos 7 anos de idade, Maura Lopes Cançado gostava de contar uma história para os amigos: dizia que era filha de russos, que tinha uma irmã chamada Natacha e que seu tio nascera na China, durante uma viagem dos avós dela. Tudo mentira. Nascida em São Gonçalo do Abaeté, Minas Gerais, em janeiro de 1929, e de família tradicional, seu dom para a fabulação já mostrava a elogiada escritora que Maura se tornaria nos anos 1960. Com a publicação de “Hospício é Deus” (1965) e “O Sofredor do Ver” (1968), a autora, que circulava nas altas rodas literárias do Rio de Janeiro, foi vista como uma promessa — mas que não se cumpriu. Esquizofrênica, ela passou por clínicas psiquiátricas e, em uma delas, matou uma interna e foi detida em um manicômio judiciário. 

Elogiados à época por autores como Ferreira Gullar e Carlos Heitor Cony, os livros de Maura Lopes Cançado vivem um processo de redescoberta. Teses de mestrado e doutorado sobre sua obra começam a surgir. Dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), com pesquisas realizadas no Brasil desde 1987, mostram que ela foi ignorada pela academia até 2006. Desde então, surgiram sete teses sobre ela. Em 2012, a Confraria dos Bibliófilos lançou uma edição da coletânea de contos “O sofredor do ver” para seus associados. Em 2013, o livro “Profissionais da solidão” (Editora Senac), de Cecília Prada, trazia, entre outros, um perfil da escritora mineira.

— Um dia apareceu uma moça lá no “Jornal do Brasil”, em 1956, com uns poemas que eu achei bonitos. Era a Maura. Recomendei que publicassem — afirma Ferreira Gullar. — “Hospício é Deus” é um livro que merecia ser mais conhecido, porque ela era muito talentosa. Também gostaria de ver os poemas dela, muito criativos, publicados.

Logo Maura começou a trabalhar no “Suplemento dominical” do “JB”. Ninguém previu, porém, que ela seria dada a arroubos. Há relatos de ao menos uma máquina de escrever que a autora jogou pela janela. Em outra ocasião, ela derrubou uma estante em cima de um repórter. “Costumo causar sérios desastres aos meus amigos”, teria dito certa vez.

“Sentia vontade de ver um avião cair”

Outra de suas histórias é a do dia em que um avião fez uma aterrissagem forçada numa cidadezinha do interior de Minas. O avião se enroscou nos fios do telégrafo, arrastou postes e bateu em uma casa. Maura, que ganhara a aeronave de presente do pai, a estava pilotando. Ela explicou mais tarde os motivos do acidente aos colegas do jornal: “Sentia vontade de ver um avião cair, e seria muito mais emocionante se estivesse dentro”.

Mas não foram apenas as histórias curiosas que atraíram Daniela Lima a escrever a biografia da autora, e sim o que Maura representa para os que defendem a humanização do tratamento psiquiátrico.

— Ela fala do sistema antes da reforma psiquiátrica. Hoje há uma série de leis que na época não existiam. Ela escrevia de dentro do hospício, e isso tem uma força sem paralelo. Fora o fato de que ela continuava publicando no “Jornal do Brasil” internada. Os amigos davam voz a ela — afirma Daniela, que vê no ostracismo de sua biografada uma “segunda marginalização”.

Maura internou-se pela primeira vez aos 18 anos, por vontade própria — usando o nome da irmã, Judite, por quem tinha uma espécie de fixação na infância. A futura escritora tinha delírios de grandeza e explosões de agressividade, além de uma tendência suicida. Naquele período, ela já tinha se casado, aos 14 anos, e se separado, aos 15, para horror da família conservadora. Também já havia tido seu único filho, Cesarion Praxedes, morto em 2003.

“Hospício é Deus”, relato autobiográfico, foi escrito durante sua internação no antigo Gustavo Riedel — Centro Psiquiátrico Nacional, hoje Instituto Nise da Silveira (Maura foi paciente da psiquiatra, a quem dedica o livro). Na obra, porém, está escrito “Diário 1”. O volume 2 se perdeu quando o editor de Maura à época esqueceu o original em um táxi.

Mundo cheio de sombras

Os amigos próximos pouco sabiam ou pouco falavam sobre a prisão de Maura, em 1973. Internada na clínica Dr. Eiras, em 1972, ela matou uma interna de 19 anos, por estrangulamento. Foi parar no manicômio judiciário. Ali, começou a sofrer de uma cegueira parcial de origem psicológica — por isso via o mundo como um lugar cheio de sombras. Um dos relatos mais contundentes é o da pesquisadora da PUC-RJ Elizabeth Muylaert, que, então com 18 anos, costumava visitar Maura no local.

— Ela tinha uma mala velha cheia de jornais. Eu não sabia que ela era cega, até ela pedir para ler o que achasse mais bonito. Eu lia durante horas e horas para ela — afirma Elizabeth.

Uma reportagem do GLOBO daquele período, intitulada “Ninguém visita a interna do cubículo 2”, dizia que ela estava “abandonada por parentes e amigos”, além de “cega e desesperada”. Maura também reclamava de abandono. Miriam Lage, viúva do filho de Maura e uma das detentoras dos direitos sobre a obra dela, nega.

— Ao contrário do que ela e as pessoas diziam, ele a visitava, sim — afirma. — Hoje há interesse da família na reedição dos livros.

Não há previsão, porém, para que os títulos de Maura voltem às estantes. Segundo Miriam, a família está aberta a propostas, desde que a obra seja tratada com a “nobreza que merece”.

Trecho do livro “Hospício é Deus”

“Nós, mulheres despojadas, sem ontem nem amanhã, tão livres que nos despimos quando queremos. Ou rasgamos os vestidos (o que dá ainda um certo prazer). Ou mordemos. Ou cantamos, alto e reto, quando tudo parece tragado, perdido. (…) Nós, mulheres soltas, que rimos doidas por trás das grades — em excesso de liberdade. (…)

Não dão ao louco nem o direito de ser louco. Por que ninguém castiga o tuberculoso, quando é vítima de uma hemoptise e vomita sangue? Por que os ‘castigos’ aplicados ao doente mental quando ele se mostra sem razão? (…)

Durvalina tem um olho roxo. Está toda contundida. Não sei como alguém não toma providências para que as doentes não sejam de tal maneira brutalizadas. Ainda mais que Durvalina se acha completamente inconsciente. Hoje fui ao quarto-forte vê-la. (…) O professor Lopes Rodrigues, diretor-geral do Serviço Nacional de Doenças Mentais, proferiu, aqui, um discurso, na porta (nas portas, porque são três) do quarto-forte, dizendo mais ou menos isto: ‘Este quarto é apenas simbólico, pois na moderna psiquiatria não o usamos’. Por que então estes quartos nunca estão vagos?”

A escritora, que morreu esquecida em 1993.

(Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura -12184270 – CULTURA/ Por Maurício Meireles – 14 de abr de 2014)

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