Colagens e pinturas em papel: misto de irreverência e erudição compondo equações visuais que desfiam o bom senso da vida cotidiana
Max Ernst (Brühl, Alemanha, 2 de abril de 1891 - Paris, 31 de março de 1976), foi o mais inquieto dos surrealistas, entrou para a história da arte. Foi um artista de uma amostragem razoável, são obras em papel, desenhos, gravuras e colagens, e esculturas em bronze, que percorrem a produção do artista de 1909 a 1966.
Desde os primeiros trabalhos do artista, quando ele ainda despontava na vertente germânica do movimento dadaísta – aquele que propunha a morte da arte -, até obras da velhice, quando Ernst trocara o poder de fogo juvenil por uma obra amainada pelo caráter ilustrativo.
A grande, lendária e divertida O Elefante de Célèbe, de 1921, na qual ele funde um aspirador de pó com um paquiderme de história em quadrinhos, é o melhor do artista fazedor de imagens, criando composições sempre desconfortáveis para o olho do espectador nos movimentos artísticos para os quais ele contribuiu entrando para a História.
Figura de ponta do surrealismo, a vanguarda que no início do século XX propunha a renovação da arte através da recusa à lógica e à moral da burguesia, Ernst e outros expoentes do movimento, como René Magritte e Giorgio de Chirico, fizeram furor na Europa.
Ao contrário da vanguarda cubista, que almejava a revolução, os surrealistas, capitaneados pelo poeta francês André Breton considerava “o mais magnifico cérebro assombrado”, escandalizar consistia em montar equações visuais insolúveis para a dona de casa ou o burocrata.
Ao longo da vida, Ernst atirou em todas as frentes: foi soldado do Reich, tornou-se anarquista, fez poemas, pinturas, colagens – antecipando-se assim a arte pop – e até colaborou com cineastas como Luis Buñuel. Envolveu-se também com um poderoso time de mulheres, como a ricaça mecenas Peggy Guggenheim.
Ainda de calças curtas, na escola Ernst já demonstrava sua insatisfação com a disciplina e o método: “Odiei os deveres desde os tempos da escola. Por outro lado, sempre senti uma irresistível atração pelas coisas inúteis, pelos prazeres passageiros, por aqueles momentos que dão vertigem, pelos instantes de luxúria”, escreveu.
Mas, ao contrário do que possa parecer, foi por obra de seu talento, e não do acaso, que Ernst, que estudou psiquiatria e filosofia antes de optar pela arte, obteve resultados intrigantes, muito superiores, portanto, aos obtidos pela imensa maioria das crianças em suas aulas de ateliê.
Pilha de sapatos – Como se vê, a matéria-prima das colagens de Max Ernst provém dos fragmentos mais disparatados. Podem sair tanto da obra de gravadores renascentistas, como Albretch Durer, e pintores românticos, como Caspar David Friedrich (1774-1840), quanto de recortes de revistas e jornais.
Em A Man Ray, de 1935, uma colagem que homenageia o artista americano, Ernst reinventa a figura do artista como um personagem construído a partir de uma pilha de sapatos femininos colocado em frente da Estátua da Liberdade.
Essa busca ambivalente de inspiração, oscilando entre a irreverência modernista e sua erudição, faz de Ernst um nome particular em meio aos surrealistas e dadaístas. Menos sarcástico, por exemplo, que um Marcel Duchamp (1887-1968), o maior nome do movimento dadaísta, o trabalho de Ernst acaba desenvolvendo uma espécie de poética irracionalista, que de alguma maneira advoga a sobrevivência da arte e o reconhecimento à tradição.
A inquietude e o gosto pela experimentação são outras das marcas registradas de sua obra. Ainda no âmbito da colagem, Ernst inventou a técnica da frotagem, obtendo a imagem em negativo da madeira, de moedas e outros objetos sólidos ao esfregar um lápis sobre uma folha de papel colocada sobre esses elementos.
No ramo da pintura, toda a chamada escola expressionista abstrata, com o pintor Jackson Pollock (1912-1956) à frente, deve a ele a invenção do dripping, aquele efeito de respingo horizontal de tinta sobre a tela. Enquanto morava nos Estados Unidos, Ernst resolveu colocar tinta dentro de uma lata de conservas com um furo na parte de baixo, obtendo o efeito do respingo.
Já em se tratando de esculturas, a ironia de Ernst dá lugar a um misto de comentário e homenagem a grandes escultores. Suas peças menos importantes perdem a força justamente por se reportar em demasia à obra do suíço Alberto Giacometti (1901-1966), um de seus melhores amigos, e ao romeno Constantin Brancusi (1876-1957) – por sinal os dois maiores escultores do século XX.
Passagem para a América – Dono de uma vida agitada, Ernst, filho de um professor católico que ensinava rudimentos de arte a surdos-mudos, nasceu e cresceu num ambiente moralista e opressivo, numa vila perto de Colônia, interior da Alemanha.
Convocado pelo Exército, viu-se forçado a lutar na I Guerra a favor do Reich. Acabou sendo ferido duas vezes: pelo recuo de um canhão e pelo coice de uma mula. Depois de se recuperar, desencantado diante do clima derrotista do pós-guerra, aderiu ao movimento dadaísta, ainda na Alemanha.
Mas acabou seguindo para Paris, a capital do surrealismo em 1922. Produziu febrilmente até que a eclosão da II Guerra Mundial o impediu de trabalhar, depois de ser confundido com um nazista pelos franceses. Quem lhe salvou a pele, comprando sua passagem para a América, foi Peggy Guggenheim (1898-1979), que era obcecada sexualmente por ele.
Sempre perto de mulheres fortes e quase sempre belas, Ernst soube separar a vida da arte. Ao contrário de Picasso, os amores de Ernst soube separar a vida da arte. Ao contrário de Picasso, os amores de Ernst não renderam escândalos nem obras, numa prova de que a arte moderna pôde prescindir da crônica da vida privada.
(Fonte: Veja, 23 de julho de 1997 – ANO 30 – Nº 29 – Edição 1505 – ARTE/ Por Angela Pimenta – Pág: 110/111)