Monika Ertl, a bela mulher que vingou Che Guevara

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Monika Ertl, a bela mulher que vingou Che Guevara

 

Na fria madrugada de domingo, 13 de maio, um telefonema inesquecível de uma amiga trouxe a notícia dilacerante para Beatrix Ertl:

— Já soube?

— O que?

— Mataram sua irmã!

Passaram-se 37 anos desde aquela síncope. E Beatrix já consumiu mais da metade da vida na casa de Kupini, bairro popular de La Paz, à espera de uma outra notícia: a localização do corpo de Monika, morta aos 32 anos de idade em uma emboscada da polícia política boliviana.

— No governo dizem que fizeram um enterro cristão, mas não podem contar onde está o corpo porque isso é proibido — ela diz em entrevista por telefone, numa voz que mistura tons de raiva, frustração e lamento. — Eles não entregam nem o atestado de óbito.

Restam-lhe lembranças e uma caixa tricotada em quadrados verde, branco e vermelho onde guarda fotografias da irmã, a bela combatente do Exército de Libertação Nacional (ELN) que vingou Che Guevara.

Em abril de 1971, Monika percorreu quase 20 mil quilômetros entre a Cordilheira dos Andes e o litoral da Alemanha para matar Roberto Quintanilla Pereira. Agente da polícia boliviana premiado com o consulado de Hamburgo, ele foi o responsável pelo ultraje final a Che.

Quatro anos antes, Quintanilla encontrara o guerrilheiro assassinado pelo Exército num barracão, no meio da selva boliviana. Mandou amputar as mãos do prisioneiro abatido para entregá-las à CIA (Agência Central de Inteligência, dos Estados Unidos). A captura de Che em 1967 foi uma das maiores vitórias do serviço secreto norte-americano durante a Guerra Fria — com discreta mas efetiva colaboração do regime militar brasileiro. Símbolo vivo da antiga revolução cubana, Che se tornou emblema moderno de rebeldia.

Pelo gatilho suave de um Colt Cobra calibre 38, Monika deslizou três balas e realizou, em Hamburgo, uma fantasia dominante na esquerda latino-americana, então obstinada em negar o fracasso da luta armada. Era a época em que John Lennon lançava “Power to the people”, os Estados Unidos atolavam na Guerra do Vietnã, a tortura e a matança imperavam em quartéis bolivianos, argentinos e brasileiros.

Pouco conhecida, a história de Monika Ertl é um thriller que começa na Alemanha nazista, atravessa a Guerra Fria, emerge nos romances de mulher emancipada na luta armada e termina em corpo desaparecido na sangrenta rotina de golpes bolivianos. Virou livro pelas mãos do jornalista Jürgen Schreiber — “La mujer que vengó al Che Guevara”, recém-lançado na Alemanha e Argentina, ainda sem previsão para o Brasil. Está em documentário do cineasta Christian Baudissin (“Wanted”, 1988). E é tema de dois longa-metragens em produção. 

Ela nasceu na Munique de 1937, quando o nazismo se consolidava como ideologia apocalíptica do antissemitismo, fermentada pela sociedade mais moderna e tecnicamente avançada da Europa. Monika teve berço próspero no Reich, erguido na euforia germânica com os Jogos Olímpicos de 1936. O pai, Hans, era cameraman de Helene “Leni” Riefenstahl, a arquiteta da cinematografia do nazismo (é dela o filme de propaganda sobre o Congresso Nazista de Nuremberg em 1934, em que Hitler aparece como produtor-executivo.) A mãe, Aurelia, filha de hoteleiro, poliglota, secretariava a diretoria do Comitê Olímpico. Sobravam dinheiro e mordomias — os nazistas apostaram alto nos Jogos porque desejavam mostrar ao mundo uma Alemanha ressuscitada como potência europeia, depois da humilhante derrota na Primeira Guerra.

Na vida real a relação do casal era complexa porque estava no vértice de um triângulo amoroso: Hans jamais escondeu a paixão por Leni — nem mesmo das filhas, conta Beatrix Ertl, a mais nova das três.

Durante a guerra, Ertl trabalhou para Hitler como fotógrafo do Ministério de Propaganda e, em seguida, para o general Erwin Rommel, a Raposa do Deserto. No pós-guerra, levou a família para Bolívia.

Monika era uma debutante nos salões da colônia alemã em La Paz, quando o jovem Che Guevara partiu de Buenos Aires na garupa da “Poderosa”, velha Norton 500 pilotada pelo amigo Alberto Granado. Seis anos mais tarde, enquanto Che descia a Sierra Maestra com Fidel Castro para “cumprir a vontade das massas” em Havana, Monika tentava fugir do pai dominação paterna casando-se com o engenheiro Johan Harrjese, sob o olhar interessado de homens da colônia, como o próspero imigrante Klaus Altmann. Ele devia a Ertl a boa recepção na chegada à Bolívia, assim como o seu primeiro emprego numa fazenda em Santa Cruz.

Klaus se naturalizara com o sobrenome judeu Altmann, tomado de um rabino famoso na sua cidade natal, Trier, para esconder a verdadeira identidade: Klaus Barbie, capitão das Waffen-SS (ficha de inscrição 272284), condecorado com a Cruz de Ferro de Primeira Classe.

Barbie entrou para a História como o “Carniceiro de Lyon”. Verdugo, mandou à câmara de gás 44 crianças (entre 3 e 14 anos) refugiadas no Lar dos Órfãos Judeus de Izieu, vilarejo periférico. Sádico, mergulhava prisioneiros em banheiras, alternando água gelada com escaldante, amputava e espancava até à morte.

As relações de Barbie com militares bolivianos garantiram-lhe proteção, ascensão social e negócios lucrativos no mercado de armas e em pirâmides financeiras. Pouco antes de morrer, em 2000 aos 92 anos, Ertl contou à revista “Stern” e ao jornalista Jürgen Schreiber, autor do livro sobre Monika, que Barbie trabalhava como consultor para organizar a polícia secreta da Bolívia “seguindo o modelo das SS”. 

O velho nazista organizou novos grupos paramilitares

Entre as décadas de 60 e 80, Barbie se tornou o elo entre expoentes civis e militares das ditaduras sul-americanas e terroristas da ultradireita italiana e alemã, comenta o historiador Julio Tomás Molina Céspedes, de Cochabamba. Ele contratou, entre outros, Stefano Delle Chiaie, Pierluigi Pagliai e Joaquim Fiebelkorn — responsáveis por massacres na Itália (80 mortos na explosão de uma estação de trem em Bolonha) e por assassinatos em Washington, Roma, Buenos Aires e La Paz. É farta a documentação sobre seu ativismo, observa o historiador Carlos Soria-Galvarro, de La Paz.

— Ele ajudou a criar, por exemplo, a milícia Noivos da Morte, em Santa Cruz — acrescenta Céspedes.

A guerra de Barbie prosseguia e o casamento de Monika Ertl ruía, quando Che Guevara chegou à selva boliviana.

Che simplesmente desaparecera desde o fracasso da guerrilha no Congo. Em outubro de 1967, vindo de Madri, passou por São Paulo como Adolfo Mena Gonzáles, uruguaio. No bolso levava uma credencial da Organização dos Estados Americanos “para estudos” sobre “o campo boliviano”.

 Semanas depois, John Tildon, chefe da estação da CIA em La Paz, informou ao governo argentino sobre a possível presença de Che na América do Sul — relataram o ex-chanceler Nicanor Costa Mendes e o ex-chefe da Secretaria de Inteligência Marcelo Levingston à jornalista Maria Seoane, do “Clarín”, em 1987. Tildon pediu cópia das impressões digitais de Che. Ao responder, no dia 15 de novembro, o major Alberto Valín registrou que não havia encontrado fichas datiloscópicas. Mais tarde elas foram localizadas em um arquivo do Exército em Córdoba. Foi ali que Che se apresentara para o serviço militar, em 1944, e dispensado por causa da asma.

A empreitada de Che na Bolívia era patrocinada por Fidel Castro, que também dera dinheiro a Leonel Brizola para organizar algo semelhante no Brasil. Mas a guerrilha na Serra do Caparaó (MG) esboroou-se em uma semana, sem um só tiro, sem ter feito nenhum contato com os habitantes da região — registra Elio Gaspari em “As ilusões armadas” (editora Companhia das Letras). Na Bolívia, Che se viu isolado. Em visita a Havana, no final de 1966, o premiê soviético Alexei Kosygin disse a Fidel que Moscou não o apoiava. O PC boliviano fez eco e bateu em retirada.

Sem conhecer o terreno, com escasso armamento e comida, Che e seus 51 guerrilheiros — quase todos inexperientes — ficaram encurralados na selva, entre o Exército e a Cordilheira dos Andes. Com a altitude, o líder do recém-fundado Exército de Libertação Nacional (ELN) tinha constantes crises de asma.

A guerrilha de Che (na foto ao lado) durou seis meses. Doente e ferido, foi capturado no fim da tarde da terça-feira, 8 de outubro de 1967, por um grupo de soldados de retaguarda comandados pelo capitão boliviano Gary Prado Salmón. Washington recebeu a informação no mesmo dia, por rádio, diretamente do local da prisão. No dia seguinte, Che foi executado por ordem do governo.

Na Casa Branca, dois dias depois, o assessor presidencial Walt Rostow escreveu um memorando ao presidente Lyndon Johnson: “Temos 99% de certeza que ‘Che’ Guevara está morto”. Faltava a prova definitiva — as impressões digitais.

John Tilton, da base da CIA em La Paz, telefonou para a sede em Langley, na Virgínia. O agente Tom Polgar atendeu. A conversa foi reconstituída pelo jornalista Tim Weiner, autor de “Legado de cinzas” (editora Record):

“Você pode enviar as digitais?”— quis saber Polgar.

Tilton respondeu: “Posso enviar os dedos.”

Roberto Quintanilha havia mandado os legistas amputar as mãos de Che (o corpo, enterrado clandestinamente, só foi encontrado 30 anos depois — e a ausência das mãos foi uma das evidências de identificação).

O líder do ELN estava morto há 134 dias quando seu sucessor, Guido “Inti” Peredo, e mais três sobreviventes chegaram ao Chile, pela selva. Encontraram refúgio e um sorridente Salvador Allende, então senador.

A essa altura, Monika Ertl deixara de ser a “señora Harrjese”.

— Ela teve um casamento muito triste — argumenta a irmã Beatrix.

Bela e solteira, aos 31 anos transbordava em desejos por uma revolução.

Começou a encontrá-la em Hamburgo, onde as paredes da universidade resumiam o espírito da época: “A alegria da destruição é uma alegria criadora”, recorda Jürgen Schreiber, autor da biografia de Monika, que vivia por lá. Viajava-se para treino na Síria. Nos intervalos, combatia-se no front da revolução sexual. Monika frequentava “trincheiras” onde se liam “O Capital”, o “Livro de Mao” e o “Kamasutra” ilustrado — não necessariamente nessa ordem.

Numa terça-feira, 1 de julho de 1968, Gary Prado Salmón, o oficial boliviano que comandou a prisão de Che Guevara, entrou em um ônibus na rua Barata Ribeiro, em Copacabana. Estava com Edward von Westernhagen, major do Exército da Alemanha Ocidental, colega de curso na Escola do Exército, na Praia Vermelha. O boliviano desceu perto da rua Santa Clara. Westernhagen seguiu para o Jardim Botânico.

O alemão desceu do ônibus e seguiu pela rua Araucária. Foi golpeado por trás, na cabeça. Caído, recebeu dez balas de uma automática 7.65. A última foi na nuca, para confirmar. Gary Prado atualmente vive em Santa Cruz. Lembra que, mais tarde, esperava o alemão e notou o seu atraso.  Haviam assassinado um inocente.

Nessa época, Monika Ertl voltara a La Paz. Trabalhava em um orfanato quando conheceu Oswaldo “Chato” Peredo, irmão mais novo de Inti — o sucessor de Che no comando do ELN.

— Bela mulher, valente e inteligente, era fácil se apaixonar — recorda Chato. — Ela pediu para se incorporar à luta e, por segurança, lhe dei um nome que despistaria do seu perfil: “Imilla” (garota em quéchua).

Em setembro de 1969, Inti foi localizado pelo agente Roberto Quintanilla (na foto ao lado), com ajuda de Klaus Barbie. Prendeu-o já bastante ferido, o torturou até à morte e posou para fotografias ao lado do cadáver. No exílio em Santiago, Chato decidiu “castigar torturadores e traidores”. Na sequência, infiéis foram “justiçados” e Quintanilha, então cônsul em Hamburgo, escolhido como alvo prioritário.

O ELN gastou um ano na logística do crime. Chato obteve a cooperação de Giangiacomo Feltrinelli, milionário e terrorista italiano, que fora preso na área da guerrilha em 1967 — depois ele editou os “Diários” de Che, que recebeu de Fidel Castro. Feltrinelli abriu as portas do terrorismo italiano (GAP) e alemão (Baader-Meinhof) para o combalido ELN boliviano, que mantinha fortes laços com o serviço secreto cubano.

— Feltrinelli nos ajudou em tudo: veículos, armas, casas de segurança, dinheiro, gente de apoio (um chofer e dois vigias europeus). Pagamos apenas a passagem de Imilla — revela Chato.


Monika viajou normalmente. Na manhã de 1 de abril de 1971, entrou no consulado em Hamburgo e, com três balas, vingou Che e Inti. Na confusão da fuga deixou cair a peruca, os óculos escuros e o Colt 38. A arma logo foi rastreada até Feltrinelli. Ele morreu numa explosão meses depois.

Monika foi cercada em La Paz e assassinada, em 1973, numa emboscada que alguns atribuem a Klaus Barbie. Em La Paz, Beatrix, irmã de Monika, segue tricotando à espera de uma nova notícia.

(Fonte: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2010/06/12 -299227 – CULTURA – José Casado – 12/06/2010)

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