Nara Leão, cantora de talento excepcional e uma mulher bela. Com seu jeito de carioca da gema, Nara nasceu em Vitória, no Espírito Santo. Desde menina morou no Rio de Janeiro e com 10 anos já estava envolvida com música, aprendendo violão com o futuro compositor Roberto Menescal. Moça, Nara participou do grupo que se reunia no apartamento de seus pais em Copacabana para ouvir, tocar e criar a bossa nova. Virou então musa do movimento, mas por pouquíssimo tempo. Em 1964, Nara entrou com tudo na barca da canção de protesto como estrela do célebre show Opinião. Em 1966, estava em outra, interpretando A Banda e lançando Chico Buarque. Dois anos depois, uma nova guinada, dessa vez em direção à Tropicália. Em 1973, aproximou-se de músicos nordestinos e organizou o primeiro show de Fagner. Em 1978, gravou um disco inteiro com músicas de Roberto e Erasmo Carlos. Nara também esteve na raiz das carreiras de Sidney Miller, Paulinho da Viola e Jards Macalé. De quebra, fez um disco só com músicas para crianças – bem antes que Xuxa olhasse os baixinhos somente como consumidores de seus discos atrozes.
MAQUINAÇÕES – A carreira de Nara, com esses rodopios todos, pode dar a impressão de que ela foi oportunista, entrando em todas as modas para conseguir sucesso e se encher de dinheiro. Tremendo engano, por três motivos. Primeiro, porque, Nara não seguiu, e sim participou da criação de movimentos e modas da MPB. Em segundo lugar, porque a busca dos píncaros do estrelato e do sucesso de vendagem jamais fez parte das cogitações de Nara Leão. Ela foi uma das raras cantoras brasileiras a não se deixar moer pelas maquinações do mercado, tanto que interrompeu sua carreira por longos períodos. Por fim, Nara estava para além das modas porque o seu canto era intensamente pessoal.
Com a mesma voz de menina mansa, que soava íntima ao ouvinte, Nara cantou de tudo, mas sempre foi a mesma.
“Nara fazia tudo a sério”, lembra Danusa Leão, irmã da cantora. Por “a sério” não se entenda sisudez, e sim aplicação, tenacidade. Na vida pessoal, que protegeu ciosamente, Nara cultivou a mesma gravidade. Casou com o cineasta Carlos Diegues, ficaram juntos por onze anos e tiveram dois filhos, Isabel e Francisco. Os filhos nasceram em Paris, onde o casal se refugiou na virada dos anos 60, quando o ambiente político no Brasil ficou intolerável. De volta ao Brasil, abandonou a carreira, parou de cantar para se dedicar a criar Isabel e Chiquinho. “Foi só quando eles ficaram maiorzinhos, e entraram naquela fase de subir nas coisas, que achei melhor fazer outra coisa”, explicou depois.
Aos 33 anos, fez vestibular, foi aprovada e virou aluna de Psicologia na PUC carioca. Como de hábito, levou o estudo a sério: não faltava às aulas, tirava 10 na maioria das matérias e só não completou o curso, parando no último ano, porque a doença não deixou.
IRMÃS – Parou para viver em Paris, parou para ter os filhos, parou para estudar Psicologia. “Não estou querendo ficar milionária nem ser a pessoa mais famosa do mundo, mas não sei por que cargas-d’água eu paro de cantar, vou fazer outras coisas e, quando volto, ainda tenho público”, disse.
Em junho de 1979, Nara teve uma vertigem no banheiro de seu apartamento, perdeu a consciência, caiu e machucou-se. Depois de exames inconclusivos e diagnósticos conflitantes, descobriu-se que ela tinha um tumor no cérebro. Foi tratada com cortisona, engordou vários quilos, e de vez em quando padecia de perda de memória, tonturas e mal-estar. Se antes já tratava a saúde, esmerou-se ainda mais. Andava no calçadão do Leme, não bebia e virou vegetariana: “Mesa farta, feijão, verdura, ternura e paz”, como ela cantou.
Nara não entregou os pontos. Fez turnês no Brasil e no Japão. No início do ano, estava numa boa fase. Namorava o oceanógrafo da Marinha Marco Antonio Bompet, terminou a gravação de seu derradeiro disco e fez shows. Não gostava que lhe perguntassem do tumor, não se queixava da doença, disfarçava.
O Brasil perdeu dia 5 de junho de 1989, uma artista excepcional, uma mulher bela como o barquinho a deslizar no macio azul do mar. Aos 47 anos, a cantora Nara Leão morreu na clara manhã carioca, vítima de complicações respiratórias provocadas por um tumor cerebral que se manifestou pela primeira vez há dez anos. Com a morte de Nara o canto suave se cala, a audácia estética cessa e se esvanece a inquietude existencial. Não mais os joelhos míticos, nunca mais o cabelo de corte chanel, para sempre perdido o sorriso meigo.
Mas o que fica de Nara é muito mais. Fica algo como o que o poeta inglês W. H. Auden escreveu sobre outro poeta, o irlandês W.B. Yeats: o canto da mulher morta se modifica nas vísceras dos vivos.
Fica de Nara uma obra translúcida em 23 LPs que mapeiam a MPB inteira, fica um punhado de interpretações geniais, fica uma arte singela que acalenta e modifica quem ela se aproxima. As coisas estão no mundo, só que é preciso aprender. As coisas estão nos discos de Nara.
Com a morte da atriz Dina Sfat, em março, de câncer, ficou abatida. Recuperou a graça pouco depois, ensaiava uma versão de Aquarela do Brasil em inglês, mas, na sexta-feira dia 19 de maio, passou mal e foi internada na Clínica São José. Danusa tentou outros caminhos, mas já não havia o que fazer. O tumor tinha mais de 4 centímetros, era inoperável, rádio e quimioterapia não faziam efeito.
Nos últimos tempos, Nara vinha recorrendo a um paranormal, um certo “doutor Odilon”, de Petrópolis, Depois de negociar, Odilon prometeu não só atendê-la como também salvá-la da morte. Fazia questão, no entanto, de examiná-la fora do hospital. A família concordou, e a atriz Marieta Severo cedeu sua casa para que, transportada em ambulância, Nara pudesse ser atendida por Odilon. O paranormal cancelou a “consulta” no último momento. Na segunda-feira, dia 5 de junho, Nara entrou em coma. Com Danusa ao lado, morreu na manhã de quarta-feira, dia 7 de junho de 1989. Foi desfeita e dor a dupla das irmãs que, tão diferentes, se tornaram emblemas de um Rio e de um país que não há mais: a Danusa extrovertida, festeira e noctívaga e a Nara encabulada, encasulada e matutina dos anos 60. Só depois do enterro, Danusa encontrou numa bolsa de Nara um documento em que a cantora autorizava a doação de seus olhos quando morresse. Nara vai, a tardinha cai.
(Fonte: Veja, 14 de junho, 1989 – Edição 1083 – DATAS – Pág; 111/112)