“Bukharin tinha muito de medíocre, esperava ser o cérebro de Stálin”
Bukharin: destruído pela ditadura e reabilitado pela perestroika
Lênin: via em Bukharin seu herdeiro intelectual
Nikolai Ivanovich Bukharin (Moscou, 9 de outubro de 1888 – Moscou, 15 de março de 1938), revolucionário e intelectual bolchevique, foi um dos mais íntimos assessores de Lênin também condenado à morte pelos processos de Moscou.
É classificado na categoria de uma personalidade medíocre que, mesmo tendo lucidez para enxergar a catástrofe do terror stalinista, alimentava o sonho de subir na vida na condição de “cérebro de Josef Stalin.”
Acusado de terrorismo, sabotagem e conspiração, o líder bolchevique Bukharin acabou executado em março de 1938, aos 50 anos, como “inimigo do povo” soviético. O ditador soviético Josef Stalin (1879-1953) usou seu poder para trucidar os opositores. Mas a história tomou partido de suas vítimas, e preservou seus nomes.
Foi reabilitado meio século depois de sua morte, durante a perestroika (ou “degelo”), promovida por Mikhail Gorbachev. Bukharin é o autor de “Materialismo Histórico”, obra canônica do marxismo. Quando foi morto, escrevia um romance autobiográfico, que durante muito tempo se julgou perdido.
Só em 1992 os manuscritos foram encontrados – ironia – entre os papéis do arquivo de Stalin. O fragmentado relato do “garoto de ouro da Revolução Russa” chama-se “O Romance do Cárcere”. Bukharin só teve tempo de escrever 22 capítulos e não pôde contar os principais episódios de sua vida. Foi silenciado em sua cela, onde registrou a última frase do livro uma hora antes de um carrasco interromper a redação.
Se tivesse vivido um pouco mais, teria contado como Stalin o perseguiu e mandou sua mulher para um campo de detenção, condenando seu filho a um orfanato. Talvez pudesse ainda relatar as atrocidades que testemunhou na prisão de Lubyanca, onde esteve de fevereiro de 1937 a março de 1938. Mas nesse caso é quase certo que seu livro não teria chegado até nós.
É difícil imaginar o que fez Stalin conservar a obra – se para atender a uma humilhante súplica de Bukharin expressa em carta, ou simplesmente porque não viu no livro nenhuma crítica à sua estreita visão do mundo. Nas páginas que ficaram, Bukharin mostra como vivia uma família burguesa russa no fim do século XIX, obrigada a trocar Moscou pela província quando o status do patriarca cai vertiginosamente.
Ele conta como Kolia Petrov (seu alter ego no romance) aprendeu a ler aos 4 anos e desenvolveu um fascínio por borboletas e uma absoluta lealdade aos amigos, entre eles um jovem judeu da Bessarábia, Levka – belo personagem que é uma espécie de Huckleberry Finn russo. O livro termina de forma abrupta, quando Kolia tem 15 anos. Pode-se ler nas entrelinhas, contudo, um vigoroso manifesto contra o emergente totalitarismo europeu, que coloca no mesmo saco a ditadura de Stalin e a de Hitler.
Bukharin anteviu os perigos do monopólio estatal dos meios de produção. Foi também um pioneiro na questão ecológica. Graças a ele, o Partido Comunista incorporou a ideia de preservar florestas e rios num decreto assinado quando a União Soviética engatinhava. Até nisso discordava de Stalin. Enquanto o ditador defendia a industrialização do país a qualquer preço, Bukharin recomendava um avanço gradual, prevendo que o programa stalinista só sairia do papel com muito sangue e à força da “exploração militar e feudal” da massa. O líder revolucionário Vladimir Lenin (1870-1924) considerava Bukharin seu legítimo herdeiro intelectual.
Alertou-o sobre a desmedida ambição política de Stalin, mas Bukharin ignorou o aviso. Quando decidiu criticar Stalin no Pravda, em 1929, era tarde demais. A vingança não tardou. Ele foi afastado dos cargos de influência até terminar seus dias na prisão.
É possível desvendar a personalidade política de Bukharin por meio de seu romance – quando se descobre que sua rejeição ao radicalismo e às injustiças era hereditária. O pai, um professor obrigado a assumir a função de coletor de impostos na destituída Bessarábia, promoveu a integração dos filhos com os judeus pobres da região e, mesmo avesso ao clero da Igreja Ortodoxa, sempre pregou a tolerância. Como o pai de Bukharin não aceitava suborno, seus superiores desconfiaram que recebia propina e não dividia com eles. Foi despedido, voltou com sua família para Moscou e viveu em condições miseráveis com os filhos, que tiveram boas lições práticas de solidariedade.
Lenin chamava Bukharin de “coração de cera”, porque ele se comovia facilmente com o drama alheio. A Rússia deu ao mundo emocionantes autobiografias, gênero em que parece imbatível. Na companhia de Tolstoi e Gorki, a de Bukharin não faz feio. Uma das obras mais conhecidas de Dostoievski, “Recordações da Casa dos Mortos”, também nasceu de uma experiência na prisão. A diferença é que le foi salvo no último minuto por um ato de misericórdia do czar. Bukharin não teve a mesma sorte.
Bukharin escreveu três livros teóricos na prisão, além da autobiografia. Os títulos algo esotéricos desses ensaios – “Arabescos Filosóficos” é um deles – certamente tentaram confundir a direção do presídio de Lubyanka. “O Romance do Cárcere” escapa dessa linguagem cifrada.
Nele, o ex-editor do jornal Pravda e mais respeitado teórico do Partido Comunista russo adota a estratégia inversa. Segue a simplicidade do inglês Charles Dickens, homenageia o espírito aventureiro do americano Mark Twain e imita o estilo do russo Ivan Turguêniev, todos eles importantes ficcionistas do século XIX, para falar de ciência política e marxismo. Por vezes, Bukharin interrompe o relato da infância de Kolia na Bessarábia para formular teses sociológicas. Uma delas traz críticas corrosivas (e indiretas, claro) ao regime de Stalin. Ao escrever sobre burocratas czaristas que emperram a revolução, Bukharin parece estar falando dos stalinistas que transformaram a ex-União Soviética num feudo burocrático.
(Fonte: Veja, 9 de dezembro de 1987 Edição 1005 LIVROS/ Por Paulo Moreira Leite Pág; 137)
(Fonte: Veja, 5 de novembro de 2003 – ANO 36 – N° 44 – Edição 1827 – LIVROS/ Por Antonio Gonçalves Filho – “O Romance do Cárcere”, de Stephen F. Cohen – Pág: 130)