Átila Rohrsetzer pode ser o primeiro brasileiro condenado por crime da ditadura na operação Condor
Os agentes da Polícia Federal já sabiam que o montonero ítalo-argentino Lorenzo Ismael Viñas Gigli, à época com 25 anos, estava no ônibus vindo de Santa Fé naquela noite de 26 de junho de 1980, na fronteira entre Paso de Los Libres e Uruguaiana. De acordo com o relato do motorista à esposa dele, os agentes foram direto até sua poltrona, a de número 11, reservada com um nome falso dias antes, e o retiraram do veículo sem perguntas. Perseguido pela ditadura militar da Argentina e pai de uma menina recém-nascida 20 dias antes, desapareceu na Operação Condor quando tentava viabilizar uma fuga para a Itália com a família a partir do Brasil. Mais de 40 anos depois, esse crime com vítima argentina e algozes brasileiros deve ser julgado definitivamente na justiça italiana até o final do mês.
O julgamento entra para a história como o primeiro a levar para o banco dos réus e talvez o primeiro a condenar um agente da ditadura brasileira por crimes praticados pelo regime militar. Átila Rohrsetzer, hoje com 89 anos, vive uma aposentadoria tranquila no litoral de Santa Catarina, no sul do país. Ele é acusado na Itália pela participação no sequestro, tortura, assassinato e ocultação do cadáver de Gigli e pode ser condenado à prisão perpétua. Na época, Rohrsetzer era diretor da Divisão Central de Informações do Rio Grande do Sul (DCI), que atuava em parceria com as áreas de segurança e informações do III Exército, e com o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, o temido DOI-CODI, cérebro da tortura da ditadura militar.
Na prática, era o “homem de ligação” entre o governo central em Brasília e o aparato repressivo no Rio Grande do Sul quando o ítalo-argentino foi preso e pouco depois entregue clandestinamente para agentes da ditadura argentina. Viñas Gigli foi mais uma vítima da Operação Condor, um pacto iniciado no final dos anos 1960 entre as ditaduras de Brasil, Chile, Argentina, Uruguai, Bolívia e Paraguai para troca e assassinato de prisioneiros políticos e intercâmbio de informações, apoio logístico, intelectual e material para a instalação de centros de tortura que deixou um rastro de milhares de vítimas no continente sul-americano. Ao ser citado pelo governo italiano por meio de carta rogatória enviada ao Superior Tribunal de Justiça em 2011, Rohrsetzer afirmou que não se submete a jurisdição italiana por entender que as acusações são absurdas. O EL PAÍS tentou localizá-lo sem sucesso.
Operação Condor e voo da morte
A última testemunha a ver Viñas Gigli com vida, Silvia Noemi Tolchinsky, depôs em 2018 no processo italiano, iniciado em 2016. Segundo seu relato, ela e Gigli estiveram presos no centro clandestino de detenção do Campo de Mayo, do Exército argentino, localizado na região metropolitana de Buenos Aires. Gigli carregava uma foto da filha e lhe disse que estava preso havia mais de 90 dias. Foi agrilhoado, torturado e pouco depois desapareceu do cativeiro sem deixar registros, provavelmente em um voo da morte sobre o Rio da Prata. Comuns como forma de assassinato no regime militar argentino e em ações da Operação Condor, esses voos de avião e helicóptero levavam prisioneiros que eram arremessados vivos, mortos ou feridos em alto mar.
O processo contra Átila é o desdobramento de um julgamento maior envolvendo casos da Operação Condor. O processo principal, aceito pela Justiça italiana em 2007, investigou os crimes cometidos por agentes de ditaduras do Cone Sul contra cidadãos ítalo latino-americanos entre 1973 e 1980 a partir de denúncias de parentes de vítimas. Foram denunciadas 146 pessoas — incluindo quatro brasileiros — das quais 33 tornaram-se réus. Oito ex-presidentes e militares sul-americanos foram condenados à prisão perpétua por assassinato. Em um processo derivado deste, quatro brasileiros foram acusados do assassinato de Gigli no âmbito da operação transnacional clandestina: João Osvaldo Leivas Job, secretário de Segurança do Rio Grande do Sul na época, Carlos Alberto Ponzi, que chefiava a Agência do Serviço Nacional de Informações (SNI) em Porto Alegre, Marco Aurélio da Silva Reis, delegado de polícia que ocupava o cargo de diretor do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), e Rohrsetzer. Todos integravam o aparato repressivo brasileiro. Como Job, Ponzi e Silva Reis morreram durante o andamento do processo, Rohrsetzer tornou-se o único réu.
Ele é citado três vezes no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, criada no governo da ex-presidente Dilma Rousseff para investigar crimes cometidos por agentes do Estado durante a ditadura. A Comissão relaciona Átila Rohrsetzer a crimes cometidos contra pelo menos oito pessoas, entre elas dois cidadãos ítalo-argentinos: Horacio Domingo Campiglia Pedamonti e Viñas Gigli. Militar do Rio Grande do Sul, o brasileiro foi apontado como integrante do comando de uma série de aparelhos da estrutura repressiva da ditadura militar brasileira ao longo da carreira.
Viñas Gigli foi estudante de Ciências Sociais em Buenos Aires, na Argentina, onde ingressou no movimento estudantil em 1969. Em 1970, aderiu à Juventude Universitária Peronista (JUP). Em 1974, recém-casado com Claudia Olga Ramona Allegrini, esteve preso por nove meses no Presídio Villa Devoto, na capital argentina. Depois de libertado, mudou-se com a mulher, exilado para o México e, em seguida, para o Brasil. Voltou do exílio à Argentina em 1979 atendendo a chamados dos Montoneros, organização de esquerda na qual militava. Em maio do ano seguinte, nasceu a única filha do casal e eles afastaram-se da militância. Segundo a denúncia na justiça italiana, diante das perseguições políticas, que acirravam-se, o casal decidiu mudar-se para a Itália. Viñas iria na frente, e os dois se encontrariam no Rio de Janeiro para embarcarem rumo ao país europeu. Não deu tempo, e ele foi capturado antes.
“Quando o Lorenzo desapareceu me dividi em duas”, afirma Claudia Allegrini, viúva do desaparecido hoje com 62 anos, em entrevista a Mar Centenera, em Buenos Aires. “Criei minha filha e o busquei”, diz. Levou 14 anos para que ela tivesse notícias do que aconteceu com o marido. Ele teria ficado quatro dias em poder da ditadura brasileira, período no qual foi interrogado e torturado, e depois entregue clandestinamente aos colegas argentinos de carro na fronteira. Em 1994, ela leu pela primeira vez o relato Tolchinsky, a última pessoa a vê-lo com vida a falar sobre o assunto. “Só consegui ler uma vez o relato. Ela escutou os gritos dele enquanto o torturavam. Viu ele acorrentado pelos punhos e tornozelos, estava todo gangrenado”, afirma Claudia. Na Argentina, ela viu Justiça ser feita sobre o caso (leia mais na entrevista exclusiva).
O desaparecimento de seu marido é um dos que levou à condenação de diversos militares por crimes praticados durante a ditadura argentina. Até hoje, 1.013 militares foram condenados no país vizinho por crimes cometidos durante a ditadura, de acordo com informações oficiais. Sem esperança de ver Justiça ser feita no Brasil, Claudia espera pela sentença na Itália. “É uma vergonha, estou indignada. Pela demora já morreram três, só resta vivo o Átila Rohsetzer”, diz. O julgamento começou em 2001 e Cláudia depôs em 2016.
Testemunha brasileira
No início de 2021, em janeiro, o jornalista brasileiro Marcelo Godoy depôs remotamente como testemunha no processo. Em 2007, ele publicou no jornal “O Estado de S. Paulo”, onde trabalha até hoje, documentos e uma entrevista com o general-de-divisão da reserva Agnaldo Del Nero Augusto, onde o militar admitia a participação do Brasil na Operação Condor e o envolvimento do governo militar na prisão de Gigli. “O Átila fazia parte da cadeia hierárquica, da estrutura da repressão política daquele tempo, sendo que o órgão que ele comandava coordenava a repressão no Rio Grande do Sul”, afirma o jornalista. “Se ele não sabia, deveria saber”. Para Godoy, é ponto pacífico no Direito Internacional a prerrogativa da Itália em realizar o julgamento. “A Itália tem o direito de julgar os autores do assassinato de seus concidadãos que não tenham sido julgados em seus países. Ela não tem nenhuma obrigação de seguir a Lei da Anistia nem de reconhecê-la.”
A cientista política e escritora Glenda Mezzaroba, que coordenou o grupo de trabalho “Ditadura e Gênero” na Comissão Nacional da Verdade, concorda e vai além. “É um argumento comum dos defensores do regime militar invocar a Lei da Anistia para justificar a falta de investigação, julgamento e punição agentes da ditadura”, afirma. “Esse argumento é falso, a lei não isenta eles dos crimes cometidos, e mesmo que fosse válido, o crime em questão foi cometido em 1980, ou seja, depois da Lei da Anistia que é de 1979 e trata de anistiar crimes políticos cometidos até aquela data.”
Há um valor imensurável, ainda, sobre o caso de Átila. “Esse caso pode significar a primeira condenação de um brasileiro por crimes praticados durante o regime militar em última instância, o valor disso é imenso”, afirma Lucas Paolo Vilalta, coordenador de Memória, Verdade e Justiça do Instituto Vladimir Herzog. Apesar disso, como o réu não se apresentou para ser julgado e o Brasil dificilmente extraditaria um cidadão próprio por causa de um crime praticado aqui mesmo, o resultado é simbólico. Mas isso não diminui seu valor, diz o pesquisador. “É um marco de fim da impunidade dos agentes da ditadura por crimes praticados naquele período. Apesar de o Estado brasileiro ter reconhecido crimes e diversas pessoas tenham sido indenizadas na esfera cível, nunca houve uma condenação criminal”, diz. “É um legado de impunidade que precisa ser interrompido, por que é o que autoriza, por exemplo, hoje desde o presidente da República ficar fazendo apologia ao regime militar até a alguns setores das PMs acharem que têm licença para matar.”