O primeiro remédio indicado para pessoas que não tinham doença queriam apenas exercer o direito de escolher quando ter filhos
REPRODUÇÃO Você já pode evitar filhos, gera-los quando parece impossível e acompanhar a evolução do feto no útero
1954 – O biólogo americano Gregory Pincus (9 de abril de 1903 – 22 de agosto de 1967) desenvolve uma droga que impede a ovulação, evitando a gravidez. É a pílula anticoncepcional.
Prazer sem filhos
Até onde se pode comprovar, o homem é o único animal além do bonobo, uma espécie de chipanzé ater relações sexuais por ouro prazer, sem o objetivo da reprodução. Mas a pílula anticoncepcional, que tornou essa prática plenamente possível, só foi criada em 1954, pelo biólogo americano Gregory Pincus (1903-1967), num caso raro de descoberta científica patrocinada por um movimento social. Desde o início do século 20, a feminista americana Margareth Sanger (1883-1966) vinha defendendo o controle da natalidade como um pré-requisito para a conquista dos direitos da mulher. Em 1951, ela encomendou a Pincus uma pesquisa sobr4e um método eficaz de contracepção. A ideia deu certo. A pílula é uma combinação dos hormônios femininos estrógeno e progesterona, produzidos sinteticamente. A ingestão diária dos hormônios inibe a ovulação, pois engana o organismo. Ele recebe a informação falsa de que a mulher está grávida e, por isso, a ovulação não ocorre.
(Fonte: Super Interessante N° 145 Outubro 1999 FASCÍCULOS XX O século da Ciência – Pág; 13)
50 anos de liberdade
A pílula fez mais pelas mulheres e pelo direito
ao prazer que todos os movimentos sociais
“Todo mundo sabe o que a pílula é. Um objeto pequeno mas que pode ter um efeito mais devastador em nossa sociedade que a bomba atômica.” A frase da escritora americana Pearl S. Buck (Nobel de Literatura de 1938) foi proferida em 1968, no auge da contracultura e das liberdades sexuais. Correspondeu a uma profecia. Hoje, cinquenta anos depois do início da comercialização da primeira pílula a Enovid, aprovada pela Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos em 11 de maio de 1960 , 80 milhões de mulheres fazem uso dela em todo o mundo. No Brasil, 9 milhões de mulheres sexualmente ativas praticam a contracepção oral. Pode parecer pouca gente, as cifras não são proporcionalmente espetaculares, mas é inquestionável o poder transformador do comprimido.
Outras invenções da medicina o raio X, os antibióticos e a penicilina atingiram um número muito maior de pessoas e são possivelmente mais vitais. Mas, em termos de repercussão cultural, de costumes, a pílula é imbatível é ela quem determina, a rigor, as mudanças apontadas pela pesquisa Ibope Inteligência.
O químico Carl Djerassi, austríaco radicado nos Estados Unidos, um dos responsáveis pela primeira síntese de um contraceptivo oral, em 1951, gênese da grande descoberta. “Ao separar o coito da concepção, a pílula deflagrou um dos mais monumentais movimentos dos tempos recentes, o gradual divórcio entre sexo e reprodução”, diz Djerassi. Aos olhos atuais, soa natural mas, no início dos anos 1960, e durante muito tempo depois, foi uma apostasia. “A pílula representou um golpe fatal em 5 000 anos de patriarcado”, diz a psicóloga e sexóloga Regina Navarro Lins. De acordo com a estudiosa, durante milênios o homem exerceu total domínio sobre o corpo da mulher baseado no medo ancestral de que seu filho fosse de outro. “Era ele que decidia quando e quantos filhos um casal teria. Cabia à mulher apenas o papel de procriar.”
Em seu lançamento, a pílula foi apresentada como um remédio para “aliviar as dores e as tensões da menstruação”. Sete anos depois, mais de 12 milhões de mulheres em todo o mundo já a consumiam. As primeiras pílulas continham doses cavalares de hormônio. Os efeitos colaterais variavam desde dor de cabeça até problemas sérios como trombose e acidentes vasculares. Algumas mulheres chegaram a morrer em decorrência de seu uso, o que obrigou os fabricantes a buscar novas composições. Todo o risco, no entanto, compensava a liberdade oferecida pela pequena bomba atômica.
Métodos contraceptivos são tão antigos quanto a humanidade. O coitus interruptus é citado até na Bíblia. O preservativo é uma criação atribuída aos egípcios antigos. Mas, até o momento em que o biólogo americano Gregory Pincus liderou um grupo de pesquisa que pela primeira vez testou quimicamente a supressão da ovulação feminina, em 1956, na sequência dos estudos da equipe de Djerassi, nenhum método tinha sido tão eficaz na prevenção. E fundamental: pela primeira vez a escolha engravidar ou não tinha ficado nas mãos da mulher. Dessa possibilidade nasceu um novo mundo feminino: a decisão de quando procriar, a opção de retardar a maternidade em nome dos estudos e da carreira.
Casar e ter filhos também se tornou uma opção, e não mais uma obrigação. Com a pílula, o tamanho das famílias reduziu-se drasticamente. Tome-se o caso do Brasil: na década de 60, a mulher tinha em média 6,28 filhos. Em 2010, o número caiu para 1,76. Ao mesmo tempo, a população feminina ocupada, que nos anos 70 representava 20,8% do total, em 2010 saltou para 42,4%.
As estatísticas sociais, na cola de uma inovação científica, distribuída no Brasil a partir de 1961 (a primeira foi a Anovlar), parecem confirmar um raciocínio de Sigmund Freud, em um de seus textos de 1898: “Teoricamente, um dos grandes trunfos da humanidade seria a elevação da procriação a um ato voluntário e deliberado”. A pílula, ao permitir essa dupla condição, entrou em cena como um dos mais vigorosos personagens do que se convencionou chamar de revolução sexual veio junto com os sutiãs queimados, o rebolado de Elvis, o livre-pensar da geração beatnik, a prosa e a poesia de Dylan e dos Beatles. Para Regina, os movimentos comportamentais dos anos 60 só prosperaram por causa da combinação química, oferecida em farmácias, do estrogênio e do progestogênio. “Como uma mulher poderia reclamar seus direitos se não tinha nem o controle sobre o próprio corpo?”, indaga Regina. “A pílula é, sim, o grande marco da mudança das mentalidades do século XX.”
Deu-se também, a bordo dela, uma descoberta até então socialmente rechaçada, a do prazer feminino. “A permissão para o orgasmo estava dada”, diz a antropóloga Mirian Goldenberg. “Antes, o prazer sexual só era permitido aos homens e às mulheres de má índole. Há quem acredite que, mesmo com a pílula e com toda a mudança de comportamento desencadeada por ela, a mulher está longe de um orgasmo 100% livre de preconceitos e preocupações. “O sexo ainda é muito mental para a mulher, ela precisa estar completamente relaxada e se sentir segura para conseguir ter orgasmo”, raciocina o psicanalista Alberto Goldin. “Ela só vai ter o mesmo prazer obtido pelo homem quando inventarem o Viagra feminino.”
Para Mirian Goldenberg, apesar de todas as mudanças dos últimos cinquenta anos, a mulher ainda faz de tudo para agradar ao homem até fingir orgasmos para deixar o parceiro mais feliz. “Uma vez perguntei a um grupo de mulheres o que mais invejavam nos homens. Elas responderam: liberdade. Se a pílula tivesse trazido essa liberdade toda, elas não teriam respondido assim.”
A família que criou a droga
A união da militância feminina com a filantropia tirou o comprimido dos laboratórios
Por trás de todo homem há uma grande mulher, ensina o batido chavão. No caso do biólogo americano Gregory Pincus, conhecido como “o pai da pílula”, havia duas. Se não fosse pelo trabalho da feminista americana Margaret Sanger e pelo empenho e dinheiro da milionária Katharine McCormick, herdeira de uma fortuna ligada à mecanização na agricultura, talvez a invenção demorasse um pouco mais para sair dos laboratórios.
Margaret e Katharine já eram duas senhoras idosas quando a Enovid foi lançada. Viveram o suficiente para ver o sonho realizado. A motivação de Margaret começou em casa. Ela não se conformava com o fato de sua mãe ter engravidado dezoito vezes ao longo da vida. Em 1916, abriu a primeira clínica de controle de natalidade dos Estados Unidos, para aconselhar as mulheres a se prevenir. Chegou a ser presa por causa do seu trabalho pró-planejamento familiar.
Quando a dupla conheceu Pincus, ele já era considerado um cientista genial por suas pesquisas sobre fertilização in vitro e sobre hormônios, mas um tanto desacreditado pela indústria farmacêutica por gastar mais dinheiro do que deveria em suas pesquisas. A união da mente brilhante de Pincus com a fortuna de Katharine só foi possível graças ao árduo trabalho de Margaret.
Para completar a história, faltava ainda um personagem: John Rock. O ginecologista e obstetra era o número que fechava essa equação. Como biólogo, Pincus não poderia fazer testes em humanos; a legislação proibia. Com Rock, ele pôde testar sua invenção nas mulheres. Ironicamente, e para desespero de Margaret, Rock era um católico fervoroso. Só que era um católico que via na pílula um instrumento que apenas ampliava o período não fértil da mulher, conforme tentou argumentar com sua igreja várias vezes. Rock foi o único do quarteto que viu o êxito daquela criação em conjunto. Morreu em 1984, aos 94 anos.
(Fonte: http://veja.abril.com.br/especiais/mulher/50-anos-liberdade- Sexo e saúde – 50 anos de liberdade/ Por Débora Rubin – EDIÇÃO ESPECIAL MULHER – MAIO DE 2010)