Genética: Os primeiros agricultores chegaram à Península Ibérica pelo mar
A agricultura chegou à Península Ibérica pelo mar. Esta bonita ideia não é nova mas agora foi geneticamente comprovada, mais precisamente com as linhagens maternas de populações atuais que guardam as marcas da entrada do Neolítico pelo Mediterrâneo desde o Médio Oriente. Já existiam estudos arqueológicos que apontavam para esta rota, mas, agora, uma equipa de investigadores de Portugal e do Reino Unido apresenta as provas genéticas que faltavam para encerrar este capítulo da pré-história.
“Conciliar provas do genoma antigo e contemporâneo: uma das principais fontes do Neolítico Europeu na Europa Mediterrânica” é o título do estudo, publicado esta semana na revista Proceedings of the Royal Society B, que analisou o ADN mitocondrial (material genético herdado por via materna) de populações atuais para esclarecer uma história com cerca de oito mil anos. Os investigadores usaram diversas bases de dados genéticas para procurar as marcas da chegada de populações do Médio Oriente à Península Ibérica, durante o Neolítico. E encontraram.
As marcas permanecem nos nossos genes e parecem comprovar que o movimento migratório veio pelo Mediterrâneo, com um pequeno grupo de antepassados do Médio Oriente que chegou primeiro à Península Itálica, misturou-se com os autóctones, e só depois se dirigiu pela costa, para Oeste. Aí, já na Península Ibéria, este grupo voltou a misturar-se com as populações locais e iniciou-se o processo que substituiu a cultura dominante de caçadores- recolectores pela revolução da agricultura e domesticação de animais. Apesar do mesmo ponto de partida, o Médio Oriente, este grupo é diferente do que se deslocou por terra para o resto da Europa. E é diferente em várias coisas: desde os meios (marítimos) usados para “invadir” o território até à rapidez da expansão.
A agricultura surgiu no Médio Oriente há cerca de dez mil anos e passados seis mil anos já se encontrava enraizada em quase toda a Europa continental. Hoje sabe-se que, mais do que apenas as ideias e técnicas usadas, o que veio do Médio Oriente foram pessoas com essa cultura. Imigrantes que se instalaram primeiro no Sul da Europa, que se misturaram com as populações existentes e que depois viram os seus descendentes partir para o interior do continente – levando a revolução da agricultura consigo.
A chegada ao continente europeu terá acontecido há cerca de 8000 a 7500 anos, na denominada no período Neolítico, e alterou de forma evidente a demografia do território, permitindo que as populações se fixassem e crescessem. “Há uma forte evidência de que, na Europa Central, as avenidas para a disseminação da nova cultura foram os grandes rios, como o Danúbio, por onde populações migraram, substituindo as que aí habitavam, deixando fortes marcas genéticas nas populações atuais”, refere o comunicado sobre o estudo da equipa liderada por investigadores do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S), da Universidade do Porto, e da Universidade de Huddersfield, no Reino Unido. Mas, nota o comunicado, “há um percurso alternativo para a chegada à Península Ibérica: o Mar Mediterrâneo”. Até aqui nada de novo, tendo em conta que existem já vários estudos de arqueólogos que defendem esta hipótese de acesso marítimo. Mas ainda não existiam provas genéticas dessa viagem ancestral.
Luísa Pereira explica ao PÚBLICO que este trabalho prova que, “no período Neolítico, um reduzido contingente veio do Médio Oriente para a Península Itálica e que aí se misturou com as linhagens daquela zona”. “Foram principalmente estes descendentes (já uma mistura) que migraram depois para a Península Ibérica”, acrescenta. Quanto ao calendário deste momento, os investigadores conseguiram datar a viagem até à Península Itálica como tendo ocorrido há 8000 anos e a “travessia” até à Ibéria há 7500 anos. “Foi muito, muito rápido”, constata Luísa Pereira.
No rasto das linhagens
Mas, afinal, como se segue um rasto genético? “Conseguimos distinguir as linhagens que vieram do Médio Oriente (e que eram neolíticas) das que estavam cá”, explica Luísa Pereira, que também é autora do livro A História Humana Preservada nos Genes (editora Gradiva). Para simplificar, imagine que os investigadores procuram a presença e posição de uma sequência específica de letras no ADN mitocondrial de determinadas populações. “As linhagens diferem em si nas bases [“letras”] de ADN, que servem como marcadores daquela linhagem, um grupo de indivíduos que tem um ancestral comum. Sabemos que aquela linhagem tem de ter uma determinada letra, numa determinada posição”, diz a investigadora. “Estudamos só estes dois grupos de linhagens, J e T, porque sabíamos que eram as que estavam principalmente envolvidas no Neolítico. Conseguimos distinguir subgrupos destas que são mais recentes ou mais ancestrais.”
Numa primeira abordagem, os investigadores estudaram o que já tinha sido publicado sobre um pequeno fragmento de ADN que tinha sido sequenciado em populações atuais, abrangendo uma base de dados de mais de dez mil indivíduos. Depois foram analisadas ainda 203 sequências completas de ADN mitocondrial (que reúne um total de 16.569 pares de bases, as letras com que se escreve o ADN) que permite tirar o máximo da informação. “É o conhecido padrão destas bases e as suas posições que nos permite definir e distinguir as linhagens.” As amostras analisadas pertencem a populações atuais de vários países do Mediterrâneo e do Médio Oriente, uma coleção extensa disponibilizada pelo investigador Martin Richards, que também coordenou este estudo.
O trabalho junta a genética com matemática e estatística, exigindo que se façam cálculos e estimativas. Luísa Pereira nota ainda que o percurso desta migração do Médio Oriente para a Península Ibérica também se comprova a partir do relógio molecular, uma ferramenta usada pelos cientistas que se apoia na análise de mutações ocorridas no ADN (neste caso, do mitocondrial), a ritmos que são conhecidos, e que permite reconstituir o passado da espécie humana no espaço e no tempo.
As marcas genéticas que herdamos denunciam o percurso dessas populações ancestrais. Mostram quem, como e quando foi feita a viagem. Luísa Pereira sublinha ainda que, apesar de se confirmar esta chegada de um contingente vindo do Médio Oriente, o número de fundadores era reduzido, gradualmente diluindo-se nas populações autóctones.
O conhecido arqueólogo português João Zilhão (da Universidade de Barcelona), com quem Luísa Pereira já colaborou noutros trabalhos, já tinha defendido este modelo de expansão que sublinha a importância do Mediterrâneo para a entrada do Neolítico na Península Ibérica. “Ele próprio já demonstrou, com base em achados de cerâmica, que a Península Itálica terá servido de interposto. Chegou o conhecimento e algumas pessoas”, refere a investigadora.
O artigo mais recente de João Zilhão sobre este tema foi publicado este ano na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences e também é sobre a expansão do Neolítico pelo Mediterrâneo. Neste caso, o arqueólogo fala sobretudo da velocidade dos acontecimentos, calculando que a conquista da agricultura desde o Noroeste de Itália até ao Centro de Portugal tenha ocorrido a um ritmo médio de 8,7 quilômetros por ano, ou seja, oito vezes mais rápido do que no resto da Europa, onde chegou progressivamente por terra, demorando, em média, um ano para percorrer um quilômetro.
Neste trabalho, realizado no âmbito do doutoramento de Joana Pereira, a primeira autora do artigo científico, foram analisadas algumas amostras de populações do Norte de África mas não houve nada, para já, que permitisse tirar alguma conclusão sólida. No entanto, a espreitadela parece ter revelado algumas pistas importantes, já que Luísa Pereira admite que se pode seguir um olhar mais atento ao possível intercâmbio que terá existido neste período entre estes dois territórios. Será que o Neolítico foi independente entre as duas costas do Mediterrâneo? Houve intercâmbios? E, se houve, a viagem do conhecimento e gente fez-se de lá para cá ou no sentido inverso? Luísa Pereira acredita que o movimento tenha sido da Ibéria para o Norte de África. Só falta encontrar as provas genéticas.
(Fonte: https://www.publico.pt/2017/03/23/ciencia/noticia – CIÊNCIA/ Por ANDREA CUNHA FREITAS – 23 de Março de 2017)