O marechal Cordeiro Farias fez um curso de cinco décadas em combates e conspirações
Oswaldo Cordeiro Farias (1901-1981), marechal que passou a vida envolvido em revoltas e revoluções ou conspirando nos intervalos entre uma e outra. Foi interventor federal (governador) do Rio Grande do Sul, no período de 4 de março de 1938 a 4 de setembro de 1943, e governador eleito de Pernambuco. Esteve presente em todos os acontecimentos políticos do Brasil a partir de 1922 até 1966, quando se retira da vida pública. Marchou com a Coluna Prestes entre 1924 e 1927, participou da Revolução de 1930, apoiou o Estado Novo sete anos mais tarde, depôs Getúlio Vargas em 1945, aderiu às articulações que levaram Vargas ao suicídio em 1954, opôs-se à posse de João Goulart em 1961 e, em 1964, pensou ter consumado o sonho de Buendía que, depois de ter combatido em 100 guerras civis, imaginou uma revolução que acabasse com todas as revoluções. Como o coronel Aureliano Buendía, do romance Cem Anos de Solidão, o marechal passou sua vida em combates e conspirações.
Essa réplica brasileira do personagem criado pelo escritor colombiano Gabriel García Márquez sabia que o movimento de 1964 acabara pelo menos com as revoluções e conspirações em que se havia tornado um especialista. Buendía morreu perplexo com as mudanças sofridas por seu país desde que, num dia remoto de sua infância, ficaria deslumbrado ao ver o gelo pela primeira vez. Cordeiro, que conheceu a geladeira como utensílio doméstico quando já era adulto, soube acompanhar a curta distância as transformações ocorridas no Brasil desde que, à frente de um dos quatro destacamentos da Coluna Prestes , se espantou com a visão do interior miserável. Esse gaúcho de Jaguarão, nascido no dia 16 de agosto de 1901, não morreu perplexo. Sua alma apenas traía, segundo amigos íntimos, algum desencanto com a última das revoluções que ajudou a fazer.
APRENDIZADO SIMULTÂNEO O movimento de 1964 transformou o figurino de militar encarnado pelo marechal num espécime tão anacrônico quanto o coronel Buendía das últimas páginas de Cem Anos de Solidão, Promovido a general, durante a campanha da FEB, aos 41 anos – o mais jovem na história da República -, Cordeiro passou trinta anos no posto. Mudanças determinadas por Castello Branco no Estatuto dos Militares limitaram em doze anos a permanência na ativa de um general. Hoje, nenhum oficial fica com as quatro estrelas nos ombros mais de quatro anos.
Da mesma forma, o Estatuto agora impede que oficiais revezem a farda e o terno com a desenvoltura que transformou largos períodos da vida de Cordeiro num movimento vaivém entre a caserna e cargos civis. Interventor no Rio Grande do Sul durante o Estado Novo, comandou pouco depois a artilharia da FEB. Nos anos 50, saltou da tropa para o governo de Pernambuco eleito pelo voto popular. Nesse aprendizado simultâneo das manhas da política e da tática dos quartéis, compôs a mais perfeita figura de “anfíbio” da geração dos tenentes. No ataque, mostrava a mesma ousadia de Juarez Távora e Luís Carlos Prestes , seus companheiros dos tempos da Coluna. Mas também tinha o jogo de cintura que sempre faltou a Juarez e, sobretudo, a Prestes.
Esse jogo de cintura ajudou-o a superar alguns dos incidentes que marcaram os últimos dezesseis anos de sua vida, Cordeiro parou de levar as mãos ao coldre como na juventude, mas recusou-se a vestir o pijama: trocou, apenas, pronunciamentos que Buendía talvez subscrevesse por combates silenciosos nos corredores do poder. Em 1966, por exemplo, alertou Castello Branco de que a ascensão de Costa e Silva à Presidência seria desastrosa para o Brasil. Não quero ter parte nisso, disse. O Costa vai desgraçar a política deste país. Ministro do Interior, Cordeiro preferia ser demitido a tolerar em silêncio a vitória do ministro da Guerra. Castello atendeu ao pedido e o marechal foi para o desterro da vida empresarial.
HIERARQUIA SUBVERTIDA Ele pareceu desconcertado, também, com a escolha de Emílio Medici. Passei cinquenta anos no Exército e nem cheguei a conhecer esse rapaz, comentaria depois ao gravar suas memórias. Cordeiro não tardou a conhecer ao menos o estilo do governo Medici. Em novembro de 1972, quando o marechal pretendia desencadear articulações para uma sucessão liberal de Medici, a censura proibiu que a imprensa divulgasse entrevista “cujo teor coloque em análise governos revolucionários de forma crítica, ou exaltação aos governos referidos, nos moldes de trechos da entrevista do marechal Cordeiro de Farias publicada pelo Jornal do Brasil e O Estado de S. Paulo”.
Antes que o processo de abertura comandado pelo amigo Ernesto Geisel se transformasse em sua última vitória, Cordeiro protagonizou uma amarga amostra da subversão na hierarquia militar operada pela guerra aos grupos da esquerda radical. Ao tentar visitar, em 1973, a filha de um amigo pernambucano presa na Polícia do Exército, foi barrado por um capitão. Recorreu ao general Orlando Geisel, ministro do Exército, que correu ao local para demitir pessoalmente o autor da desfeita. Ironicamente, Cordeiro morreu convencido de que o governo do presidente João Figueiredo não desejou apurar a agressão sofrida em setembro passado por sua neta Florence, que teve a casa invadida por dois desconhecidos e foi duramente espancada. O marechal achava que a agressão, na verdade provocada por questões particulares, teria ocorrido por motivos políticos.
Nas asas da abertura política, o último dos generais da FEB exercitou com o ânimo do tenente seu talento para conversas a meia voz – e com interlocutores tão diversos e às vezes incompatíveis que o velório no Monumento aos Pracinhas resultaram numa rara manifestação de ecumenismo. Ao morrer no dia 17 de fevereiro de 1981, aos 79 anos, de distúrbios cardíacos, em seu escritório de executivo no Rio de Janeiro, Cordeiro de Farias deixou além de afilhados, como o pintor Iberê Camargo, que deve ao marechal a mais rápida absolvição da história judiciária brasileira, e de Syleno Ribeiro, que ganhou um quarto na casa do padrinho ao perder o posto de secretário geral do Ministério da Justiça, despediram-se de Cordeiro homens de pensamentos e rumos tão diversos que, num dado momento, seu esquife esteve no centro de um simbólico altar da conciliação.
PORTAS ABERTAS A centímetros de distância, ali estavam o ministro Golbery do Couto e Silva e o senador Tancredo Neves, o médico Guilherme Romano e o senador Amaral Peixoto, o ex-ministro Armando Falcão e o deputado Getúlio Dias, desbocado ponta-de-lança do PDT gaúcho. Dias comprovou pessoalmente, no começo dos anos 70, que todas as correntes ideológicas poderiam convergir sem sobressaltos para a porta da casa de Cordeiro. Eu estava com várias prisões e processos nas costas e me lembrei de Cordeiro. Fui bater em sua porta e ele me recebeu muito bem, conversou muito comigo. Estou aqui em homenagem a isso.
O grande ausente talvez tenha sido Luís Carlos Prestes, pivô, em 1974, de um dos raros desentendimentos entre Cordeiro e o deputado Thales Ramalho, amigo íntimo do marechal. Irritado com declarações de Prestes feitas no exílio, que atribuíam à influência do PCB a vitória da oposição nas eleições daquele ano, Thales chamou de gagá o líder comunista. Nunca mais faça isso, avisou Cordeiro. “Não se diz uma coisa dessas de alguém com a biografia de Prestes.” O velho comandante da Coluna recusou-se a comentar a morte do antigo companheiro.
Se pessoas como Prestes voltaram ao Brasil, devem-no, em parte, a homens como Cordeiro. Em 1971, quando se temia que o governo decidisse incorporar a essência repressiva do AI-5 à Constituição, ele dizia: “Não vão tentar e, se tentarem, não conseguem”. E conspirava. Fazia tudo sempre com suavidade e discrição, exibindo a distância entre a educação política e a vocação militar. Cordeiro, o conspirador de fala mansa, derrubou mais governos falando que atirando. Até porque seu mais ilustre adversário, do outro lado da trincheira, foi Lampião, que a serviço do governo combatia a Coluna Prestes no interior do nordeste. Cordeiro contava que trocaram alguns tiros. Mas Lampião, mais interessado em atirar em policiais, deixou a revolução seguir seu caminho.
(Fonte: Veja, 25 de fevereiro, 1981 Edição n.° 651 Memória Pág; 20/21 e 22)