Francesco Petrarca (Arezzo, Toscana, 20 de julho de 1304 Arquà, 19 de julho de 1374), poeta sonetista do amor refinado e apolítico frequentador de cortes aristocráticas. Poeta toscano, uma figura eminentemente moderna. Amante platônico de uma jovem aristocrata, Laura, celebrou os tormentos e os êxtases de uma paixão que o tornaram um dos maiores líricos do ocidente, a par de Shakespeare, Ovídio e John Donne. E os 366 poemas que escreveu sobre ela, um libro per um anno, reunidos sob o nome geral de Canzoniere representam apenas uma faceta da atualidade desse toscano frequentador de cortes da nobreza e aristocrata que evitava cautelosamente o contato com o vulgo ignorante. Vivendo grande parte da sua vida itinerante no sul da França, na Provença onde conheceu a diáfana e loura Laura, foijustamente a grande tradição de poesia amorosa dos troubadours provençais da Idade Média que ele audazmente renovou. A amada transformou-se, da senhora de altas virtudes morais e incorpórea beleza, numa criatura humana, de feições definidas, desde o angélico seio até as flores que lhe caem no doce e côncavo regaço. A meio-termo entre o amor medieval, casto e imaterial, e a carnalidade pagã e livre de um Boccaccio no Decameron, também a vida de Petrarca oscilara entre dois filhos naturais que perfilhou e uma luta constante contra a baixesa da sensualidade, que aos 40 anos o tornou um asceta voluntário do sexo.
Opera aperta O modernismo de Petrarca, essa ruptura com o mundo hierarquizado da Renascença, não acontece apenas no tratamento poético. Profundo conhecedor dos textos latinos, Petrarca escrevia cartas aos mestres do passado, Cícero, Horácio, Virgílio, da mesma forma que anotava em latim, no seu diário, impressões corriqueiras do tipo Plantei hoje duas mudas de rosmaninho junto ao carvalho do portão de entrada. Mas, se preferia abandonar o convívio com sua época e dialogar com os mestres do passado de Roma antiga, foi o primeiro a instaurar a leitura como o contrário da aula rígida e que não comporta discussões do aluno. Antecipava-se, assim, à opera aperta passível de várias interpretações por parte do leitor ou espectador. E, baseado em Santo Tomás de Aquino, rompeu o imobilismo da Idade Média que só pressupunha a Revelação divina para o indivíduo. Exasperadamente individualista, Petrarca acreditava que o indivíduo possui um valor intelectual e ético independente da doutrina teologal e de qualquer dogmatismo a priori. “Eu leio não para me tornar mais eloquente ou mais arguto, mas para ser melhor”, ele afirmava. Esse tipo de leitura seria a semente de uma democratização do pensamento, característica típica do Humanismo renascentista italiano.
Em Petrarca estão também as raízes longínquas do Romantismo – no seu amor à natureza, no seu cosmopolitismo cultural e incipiente patriotismo nacionalista – e do barroco: a “vida é um breve sonho que pouco dura” é não apenas o seu lema como o seu tormento. Essa bifurcação do asceta, que ama a vida mas foge da multidão ávida de lucro e prazeres grosseiros, e do amante, que ama sua Laura com arrebato erótico mascarado na sublimação, o tornaria psicologicamente o primeiro neurótico, o primeiro reprimido entre o desejo e a proibição do tabu.
“Gran pietà” – Até uma auto-análise freudiana brotou de seus escritos – quando ele falava da “gran pietà” que sentia de si mesmo e do cultivo mórbido de seus sentimentos conflitantes. Ao contrário de Dante, que tinha um vivo sentimento político, de defesa dos direitos do povo, de valores locais, de fatos concretos, e que portanto preferia a ação, Petrarca, aristocrático, escolheu o isolamento para o cultivo do pensamento e da literatura. Paradoxalmente, sua ação poética foi democratizante: ao refinar o idioma toscano, do povo, dando-lhe uma flexibilidade e uma riqueza de nuanças insuperável até mesmo por Dante, ele afirmou uma “nacionalidade” cultural que só quinhentos anos mais tarde se com a união política da Itália.
Amante da paz, da cultura, da liberdade individual diante de déspotas incultos, Petrarca significou a ponte inédita e surpreendente entre o pensamento clássico, segundo o qual o homem é a medida de todas as coisas, e Rousseau, que proclamava a validez de um “contrato social” justo entre governados e governantes. E, ao impor-se em cortes europeias de poderes absolutos, ele afirmou muito menos um esnobismo do que a superioridade do homem culto aos meios meramente poderosos do momento.
(Fonte: Veja, 28 de agosto de 1974 Edição n° 312 LITERATURA – Cultura x poder / Por Leo Gilson Ribeiro Pág; 103/104)