O anti-Picasso
O intimismo refinado da pintura do francês Pierre Bonnard
Pierre Bonnard: grandeza por trás da timidez
Pierre Bonnard (Fontenay-aux-Roses, Seine, 3 de outubro de 1867 – Le Cannet, 23 de janeiro de 1947), pintor francês.
Filho de um funcionário público e de uma dona de casa, Pierre Eugène Frédéric Bonnard nasceu em Fontenay-aux-Roses, um subúrbio de Paris, em outubro de 1867, onde teve uma infância tranquila. Antes de completar 20 anos, já havia desistido de cursar direito para dedicar-se à pintura.
O momento de maior efervescência em sua vida aconteceria por volta de 1890, quando ele participou da estética dos nabis, ou “profetas” em hebraico, que defendiam a espiritualização da arte em reação ao artificialismo da vida moderna.
Passada a agitação juvenil, Bonnard se recolheria ao mundo dos pincéis. Com o tempo, sua obra foi adquirindo o tom de um lamento, até que ele abandonou os pincéis em 1946, um ano antes de morrer em função de complicações pulmonares.
Tímido, modesto e introspectivo, Bonnard fazia de tudo para passar a vida em branco. Certa vez, antes de embarcar num transatlântico, chegou a raspar seu frondoso bigode só para não chamar a atenção dos demais passageiros.
À fervilhante Paris modernista do começo do século 20, ele preferia a solidão espartana de sua casa de campo na Côte d”Azur, onde morava com a mulher e modelo favorita, Marthe.
Traduzida em pintura, no entanto, a existência de Bonnard, que fez da rotina doméstica o tema de sua obra, revela um mundo de rara exuberância na arte moderna.
No século 20, talvez apenas os quadros de Henri Matisse transmitam ao espectador igual sensação de plenitude, em suas paisagens, naturezas-mortas, as célebres imagens de Marthe nua numa banheira, além de seus próprios auto-retratos, produzidas entre os anos 10 e 40, durante sua maturidade e velhice.
Além de revelar a grandeza de Bonnard para as gerações mais jovens, as suas obras acabam com algumas visões cristalizadas sobre o artista, como a que o enquadra na categoria de mero seguidor do impressionismo.
Aproximar-se de suas pinturas é descobrir um mosaico infinito, pontuado por pinceladas das mais variadas formas, que vão de cuidadosos pontinhos a traços ritmados. A pintura de Bonnard retrata, assim, um mundo instável, onde tudo parece entrar e sair de foco, e onde também os motivos principais do pintor, como a mulher ou um jardim no verão, parecem sempre vistos de esguelha, e não espionados de maneira direta.
É justamente aí, ao reconhecer a fugacidade da vida e das sensações, que está a modernidade do pintor. Os detratores de Bonnard, inclusive Pablo Picasso (1881-1973), chamavam sua obra de um “pot-pourri de indecisão”. Isso porque em suas telas nenhuma superfície é solidamente definida. No mundo visto por Bonnard, todas as cores e formas se aglutinam e se dissolvem a um só tempo, como uma poeira furta-cor.
Aquilo que o feroz Pablo Picasso condenava em Bonnard como indecisão é justamente sua grandeza. Por trás da aparente desorganização de uma mesa posta para o chá da tarde, como na magnífica tela Grande Sala de Jantar sobre o Jardim (1934-1935), Bonnard está empenhado em transmitir ao espectador os processos de sua vida interior, o sentidomais profundo do tempo, da memória e da imaginação.
Uma das mais refinadas pinturas de Bonnard, Nu na Banheira e um Pequeno Cachorro (1941-1946), traz Marthe em primeiro plano. Acontece que ela morreu em 1942, e Bonnard hesitaria muito, até finalizar a obra. Numa passagem de seus diários, ele confessou: “Primeiro, olho para os objetos. Depois, tomo notas. Então vou para casa e, antes de começar a pintar, reflito, sonho.”
Essa distância cultivada desponta magnificamente nesse retrato póstumo de Marthe. Submerso numa água pintada em tons verde-azulados, o corpo da mulher parece mais estar sendo retratado numa urna funerária transparente do que numa banheira. Eis aí mais uma sutileza de Bonnard.
Bonnard não teve filhos. Legou ao mundo o reflexo soberbo de sua existência discreta.
(Fonte: Veja, 2 de setembro de 1998 – ANO 31 – N° 35 – Edição 1562 – ARTE – Pág; 152/153)
(Fonte: Veja, 22 de março de 1972 - Edição 185 - ARTE - Pág; 84)