Pioneira da poesia erótica
“Gilka foi a primeira mulher nua da poesia brasileira”, escreveu Carlos Drummond de Andrade, na sua coluna do dia 18 de dezembro de 1980, no “Jornal do Brasil”, dedicada à memória da poeta, que havia morrido naquela semana. “As mulheres que gozam hoje de plena liberdade literária para cantar as expansões do instinto e as propriedades eróticas do corpo deviam ser gratas a essa antecessora, viúva pobre que ganhava a vida com esforço e gostava de estar ‘toda nua, completamente exposta à volúpia do vento’”.
Àquela altura, Gilka (1893-1980) não estava tão esquecida como hoje — a autora tem sua obra esgotada desde 1993. Uma das únicas mulheres representantes do Simbolismo e pioneira da poesia erótica no Brasil, a escritora teve sua história resgatada por uma jovem paulistana de 21 anos, que acaba de lançar o livro “Gilka Machado, poesia completa” reunindo o material dos seis livros da autora antes mesmo de terminar a faculdade.
No ano anterior à morte, Gilka tinha sido agraciada com o Prêmio Machado de Assis pela Academia Brasileira de Letras, era comentada por Nelson Rodrigues e ganhou um obituário espontâneo de Drummond, comovido com sua morte aos 87 anos.
Mas sua trajetória literária não foi fácil. Nas “notas autobiográficas” que acompanham a edição, é a própria Gilka quem conta que no primeiro concurso de poesia que ganhou, aos 14 anos, no jornal “A Imprensa”, foi logo taxada por críticos literários de “matrona imoral” pelo conteúdo dos versos (ele ganhara não só o primeiro lugar, como o segundo e o terceiro, graças aos pseudônimos que usou).
O primeiro livro, “Cristais partidos”, foi publicado aos 22 anos. Já estava casada desde os 17 com o também poeta Rodolpho Machado, que morreu precocemente. Viúva pobre, com dois filhos para criar, foi diarista na Central do Brasil e complementava a renda fazendo pensão. Foi quando, em 1933, ganhou um concurso da revista “O Malho”, que deu a ela o título de “maior poetisa do Brasil”. Com suas poesias eróticas, Gilka deixou para trás nomes como Pagu e Cecília Meireles. O escritor Mário de Andrade comentou positivamente o livro “Mulher nua”, lançado por ela em 1922 —Gilka lançaria ainda outros três volumes de inéditos, explorando temas além do erotismo, escrevendo até sobre jogadores de futebol (“Há milhões de pensamentos impulsionando vossos movimentos/Que obra de arte ou de ciência/ de sentimento ou de imaginação/ teve a penetração dos gols de Leônidas/ que, transpondo balizas e antipatias,/ souberam se insinuar no coração do mundo!”).
Desgostosa, abandonou a poesia a partir de 1938, só lançando muito esporadicamente algumas coletâneas depois (“Amei tantos a todos e a tudo que não sobrou amor para mim mesmo”, escreveu certa vez). A última, em 1968, tem o irônico nome de “Velha poesia”. “É às vésperas do Estado Novo de Getúlio que Gilka escreve, justo no momento em que são discutidos, no Brasil, a situação da mulher, seu papel cívico e seus direitos políticos”, frisa a professora da Universidade Federal de Sergipe Maria Lucia Dal Farra, que assina o prefácio da edição, lembrando que em 1910 Gilka integra as iniciativas para fundar o Partido Republicano Feminino.
A história do livro é tão instigante quanto a da autora. Ainda estudante do Ensino Médio, aos 18 anos, Jamyle Hassan Rkain herdou de um tia uma biblioteca de livros de poesia, pela qual tomou contato com os versos eróticos de Hilda Hilst. Pesquisando sobre a autora, chegou ao nome de Gilka Machado e enamorou-se completamente dos seus versos. Mas as informações que encontrava sobre ela eram poucas, e os livros estavam esgotados. Fundou uma página em homenagem a Gilka no Facebook, através da qual conheceu seu neto, o artista plástico Amauri Menezes, guardião de seu acervo aos 74 anos.
— Este livro é um projeto do Amauri, nasceu do desejo dele. É uma pena que ele não esteja vivo para ver o livro pronto — lamenta Jamyle, que acatou o pedido da família para que levasse a edição adiante.
Jamyle levou as edições originais para São Paulo, onde vive e cursa Jornalismo, e planejou a edição, que, além do prefácio de Maria Lúcia Dal Farra, tem notas críticas de Heloísa Buarque de Hollanda e Constância Lima Duarte. Bateu à porta de algumas editoras grandes, mas quem se interessou pelo projeto foi a editora Demônio Negro.
— Ela fez versos belíssimos, e num momento em que ninguém mais queria saber de influências simbolistas, só modernistas, deu a cara a tapa — comenta Jamyle. — Além disso, a história de Gilka é uma história de resistência política. Ela fundou um partido político, lutou pelo voto feminino escrevendo colunas de jornais e revistas. Nós estamos numa fase em que precisamos ter figuras de referência como ela. Gosto muito de uma história dela de quando estava prestes a lançar o primeiro livro, “Cristais partidos”. Olavo Bilac se ofereceu para escrever o prefácio. Gilka recusou, dizendo: “Eu quero aparecer sem defesa nenhuma, sem escudo, e, com um prefácio seu, todo mundo já está me achando ótima” — conta Jamyle, citando a história relatada na última entrevista dada pela escritora em vida, em 1979.
A jovem agora está levantando crônicas da autora para um próximo volume só com sua produção para periódicos.
— Outras pessoas tiveram interesse em republicar a obra de Gilka, mas Amauri prezava muito a excelência. Apesar de muito nova, a Jamyle demonstrou total conhecimento da obra, que é vanguardista até hoje — elogia Tânia Rezinthis, viúva do neto da poeta.
(Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/livros – CULTURA – LIVROS/ POR MARIANA FILGUEIRAS – 27/02/2017)
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