DECISÃO INÉDITA E PIONEIRA DO DIREITO PENAL NO BRASIL
Juristas gaúchos divergem sobre sentença para “crime sem corpo”
Júri condenou réu por homicídio sem que cadáver fosse localizado
Uma decisão pioneira baseada em um indício científico pode criar uma jurisprudência que altera um princípio básico do Direito Penal no Brasil: o de que para haver a comprovação de uma morte deve haver um corpo. A sentença é contestada por juristas gaúchos, que divergem sobre o tema.
A decisão inédita ocorreu em Brasília, na terça-feira, quando o ex-policial civil José Pedro da Silva, 43 anos, foi condenado a 17 anos de reclusão por matar a amante, uma jovem de 16 anos cujo corpo jamais foi localizado.
O desaparecimento da estudante Michele de Oliveira Barbosa ocorreu em 1998. Conforme o inquérito que serviu de base à acusação, testemunhas teriam visto Michele entrando no carro do réu antes de sumir. Casado, o réu mantinha um caso amoroso com a jovem, que anunciara a amigos estar grávida.
A acusação sustentou a tese de que o ex-policial matara Michele para impedir que sua mulher fosse alertada da gravidez. Ao longo das investigações, a polícia supôs que o corpo da estudante tivesse sido queimado – Silva teria sido flagrado com cheiro de combustível no dia do desaparecimento.
O indício mais contundente do crime, entretanto, foi um exame de DNA com 72% de precisão. Peritos concluíram que as marcas de sangue e mechas de cabelo encontradas no automóvel de Silva eram, provavelmente, da vítima. A soma dos depoimentos de testemunhas, de álibis frágeis do réu e do exame resultaram em duas condenações: 15 anos em regime fechado por homicídio qualificado – crime hediondo -, somados a dois anos em regime semi-aberto por ocultação de cadáver.
– A condenação por exame de DNA é um precedente perigoso. Não há necropsia ou provas de que a morte ocorreu. A jovem pode ter sido ferida e deixado marcas de sangue. Pode estar viva. Nesse caso, o réu até poderia responder por seqüestro, por exemplo, mas não por homicídio – entende o criminalista gaúcho Amadeu Weinmann.
Ex-procurador discorda de advogados
Nereu Lima, ex-presidente da seccional gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasil (OABRS), também contesta a decisão. Lima lembra que a Justiça concede prazos de até 20 anos para a prescrição de um crime.
– Se havia uma relação amorosa entre o réu e a vítima, a identificação do sangue não leva a crer que haja a morte ou que o autor seja o ex-policial. Homicídio é um crime que deixa vestígios – sustenta.
As opiniões de Weinmann e Lima, porém, não revelam unanimidade. José Antônio Paganella Boschi, ex-procurador de Justiça, desembargador aposentado e professor de Processo Penal na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica (PUCRS), sustenta, baseado nos artigos 167 e 564 do Código de Processo Penal, que não há empecilhos jurídicos para que se leve a julgamento o acusado de um crime, mesmo sem a materialidade do homicídio:
– A legislação prevê a nulidade de um julgamento se não há auto de exame de corpo de delito, a partir da identificação do corpo. Mas caso haja outras provas que possam suprir essa falta, como testemunhas ou exames técnicos, é possível julgar.
A decisão inédita
É a primeira vez na história do país que um réu é condenado por homicídio com base em um exame de DNA sem que tenha sido encontrado o corpo da vítima. A condenação no Tribunal do Júri de Brasília é reversível.
Ainda na terça-feira, o advogado de defesa do réu, Edmílson Menezes, anunciou que recorrerá da sentença pedindo a anulação do julgamento. Apesar da condenação, o ex-policial ganhou o direito de recorrer da sentença em liberdade.
Em apenas um caso célebre no Brasil – a morte de Maria Denise Lafetá Saraiva, ocorrida em 1988, em Uberlândia (MG) – também houve condenação sem localização de corpo. À época, não foi feito exame de DNA.
(Fonte: Jornal Zero Hora POLÍCIA 13 de novembro de 2003)