PRIMEIRA VIA FÉRREA TURÍSTICA DO BRASIL E A PRIMEIRA A SER ELETRIFICADA
O Corcovado foi originalmente batizado em 1502, pelo navegador florentino Américo Vespúccio (1454-1512), como Pináculo da Tentação, uma alegoria do Novo Testamento: o lugar onde o demônio conduziu Cristo, tentando-o com os pecados do mundo. O nome não pegou (os portugueses preferiam associá-lo ao seu formato, de corcunda), mas seu significado não foi esquecido pelo Vaticano. Já em 1859, o padre francês Pierre Marie Bos, em viagem ao Brasil, ao avistar o morro teve a visão de que aquele seria um lugar excelente para uma estátua de Cristo, chegando a procurar a princesa Isabel, notória carola, para conseguir fundos e erguer o monumento. Não teve sucesso, porém.
Um pico de 704 metros, localizado na estrutura frontal da Serra da Carioca, o Corcovado teve sua formação nos primitivos processos geológicos, contemporâneos da gênese das rochas cristalinas, das fraturas que partiram a crosta terrestre: o morro é um bloco residual entre essas fraturas. A iniciativa da abertura de um caminho terrestre foi de Dom Pedro I, que, ciente do petencial estratégico militar da montanha, dirigiu pessoalmente os trabalhos para abrir uma picada até o cimo, onde instalou um semáforo que, por meio de bandeiras, podia alertar sobre eventuais ataques à capital. Mas o imperador não desdenhava o lazer e, em 1823, mandou construir um belvedere coberto de sapé.
O filho manteve as manias do pai: em 1873, Pedro II reformou o belvedere, que passou a ser chamado, pela sua forma, de Chapéu do Sol. Em 1882, o imperador concedeu autorização aos engenheiros Francisco Pereira Passos e João Teixeira Soares para construir uma estrada de ferro que usava o então moderno sistema de cremalheira. Inaugurada em 1884, foi à primeira via férrea turística do País e a primeira a ser eletrificada. No despacho que abriu a concessão, o conselheiro Manuel Alves do Araújo escreveu: Estrada de ferro para o Corcovado? Engraçado! Deferido. Estava lançada a base para a construção do Redentor.
Se a Pedro II não importava a posição da Igreja, a República, em seu começo, tratou de separar o Estado da instituição. Roma, porém, insistiu numa Igreja unida oficialmente ao Estado. Em 1916, o arcebispo de Recife e Olinda, o futuro cardeal dom Sebastião Leme, publicou uma carta pastoral em que argumentava ser o Brasil uma nação católica e que a Igreja precisava tirar proveito disso e marcar presença mais intensa na sociedade, Mas apenas no pontificado de Pio 11 (1922-1939) é que o clero nacional começou a se movimentar. Não foi sem razão que, em inícios dos anos 1920, ressurgiu a idéia do padre francês de construir um monumento cristão em cima de alguma montanha, nos moldes das grandes maravilhas do mundo clássico. Já em 1894, houve quem sugerisse uma imensa estátua de Colombo no Pão de Açúcar, idéia substituída, em 1912, por uma enorme imagem de Cristo.
No início, houve dúvida se o Pão de Açúcar não seria um lugar melhor para o Cristo. Em 1921, discutia-se também a possibilidade de colocar o monumento no Corcovado ou no Morro de Santo Antônio. No ano seguinte, um abaixo-assinado com 22 mil assinaturas selou o futuro do Corcovado, cedido pelo presidente Epitácio Pessoa à Arquidiocese do Rio. Ele também prometeu colaboração do
Estado na melhoria dos acessos e uma série de subsídios. A tese do cardeal Leme funcionava a todo vapor, reunindo Igreja, Estado e sociedade num triângulo ainda não-oficial, como desejava a Santa Sé, mas igualmente poderoso e benéfico para os interesses do Vaticano no Brasil.
No ano seguinte, 1923, o engenheiro carioca Heitor da Silva Costa (1873-1947) foi escolhido, por concurso público, para erguer a estátua. O seu projeto inicial previa um Cristo carregando a cruz e um globo terrestre, mas Silva Costa logo percebeu que uma forma cruciforme seria bem mais legível à distância. O artista plástico Carlos Oswald fez uma série de esboços em vários ângulos e insolações possíveis. Com esse material, o engenheiro partiu para a França para que a estrutura fosse calculada pelo escritório de Victor Caquot, especializado em estruturas de grande porte, como o Cristo, que teria doze pavimentos internos e solidez capaz de suportar um tufão de até 250 km/h. Faltava apenas o molde.
Silva Costa entrou em contacto com o escultor francês Paul Landowski que esculpiu o rosto do Cristo (usando de extremo cuidado para não haver distorção na ampliação) e usou as mãos da também artista, a brasileira Margarida Lopes de Almeida, como modelo para as da estátua.
Landowski fez maquetes de 50cm, 1m e 4m. Enquanto isso, no Brasil, uma campanha reuniu, junto à população, o montante de 2.500 contos de réis para realizar a obra. Moldagem em Niterói, fôrmas em gesso e concreto foram levadas a Niterói, onde foram confeccionadas as partes em concreto armado, que subiriam ao Corcovado em etapas, transportadas pelo trem elétrico. A montagem levou de 1926 a 1931: primeiro fez-se uma estrutura de concreto armado, colocando-se sobre ela as partes com a forma da imagem. O Cristo foi montado, assim, da cabeça para os pés. Apenas a cabeça era composta de mais de 50 pedaços distintos. Sobre a escultura, colocou-se, para manter o conjunto em pé diante do forte vento, uma malha metálica que foi coberta com pedaços triangulares de pedra sabão, uma homenagem aos profetas do Aleijadinho, bem como um material resistente às intempéries, capaz de suportar bem variações de temperatura. Além disso, era uma precaução: a visão dos bolcheviques, derretendo imagens metálicas do czar e dos santos para aproveitar o metal, havia deixado marcas na cabeça da elite brasileira, laica ou não.
Entre os encarregados da obra estava um judeu, Heitor Levy, que, reza a lenda, admirado pela estátua, converteu-se ao catolicismo e colocou um papel com a sua árvore genealógica numa garrafa que misturou com a massa de concreto do coração da imagem. Em 1931, menos emotivo, o cardeal Leme criou a Ordem Arquidiocesana do Cristo Redentor para administrar o monumento e sua inauguração.
A obra surgia no momento ideal: embora a Revolução de 1930 tivesse atrasado sua festa de apresentação, o movimento, que depusera as estruturas da República Velha, atendia às preces da Igreja, que viu a chance de ouro de reunir novamente clero e Estado, apesar do ateísmo de Vargas.
Em 12 de outubro daquele ano, Vargas e a Igreja subiram juntos o Corcovado e, ao descerem, o catolicismo foi reentronizado como a religião oficial do País. Apesar da ousadia do cardeal, Getúlio entendeu bem o recado do Vaticano, claro no discurso do cardeal Leme: Que esta sagrada imagem seja o símbolo do vosso domínio, do Vosso amparo, da Vossa bênção que paira sobre o Brasil e os brasileiros. A Igreja e o poder laico novamente estavam juntos. Vargas, sábio, viu que era bom.
Menos feliz foi a idéia de se unir tecnologia e religião no evento. O cientista italiano Marconi Guglielmo foi convidado a inaugurar a iluminação do monumento, por meio de um sinal elétrico transmitido de seu iate, na baia de Nápoles, que seria retransmitido até chegar ao Rio de Janeiro. A coisa não funcionou e, sem que ninguém percebesse, um major, o futuro escritor Gustavo Corção, acionou, lá do Corcovado, as luzes em nome do progresso.
Para a Igreja, no entanto, tudo foi uma maravilha. Até hoje a instituição detém os direitos sobre a imagem do Cristo e foram vários os casos em que se vetou seu uso, como no carnaval de 1989, em que a Beija-Flor tentou entrar no Sambódromo usando uma imagem do Cristo cercada por lixo no enredo Ratos e Urubus. Vetado, Joãozinho Trinta cobriu o Cristo de plástico preto e escreveu: Mesmo proibido, olhai por nós.
(Fonte: Revista Indústria Brasileira Ano 7 N.º 77 Julho 2007 HISTÓRIA Por Carlos Haag Pág; 44/45/46/47/48/49)