Em sua obra, italiano descreveu os campos de concentração como sistema de opressão em que as vítimas eram levadas a se transformar em algozes
Primo Levi (Turim, 31 de julho de 1919 – Turim, na Itália, 11 de abril de 1987), escritor judeu-italiano, que esteve em Auschwitz. Era o prisioneiro 174517. Ali, assistiu a toda forma de brutalidade. Ainda assim, sua obra reflete uma crença luminosa na razão.
Os principais livros de Levi, como “A Trégua” e “A Tabela Periódica”, são de cunho autobiográfico. Relatam suas experiências no campo de concentração e na Europa do imediato pós-guerra.
Menos conhecido é o fato de que ele deixou ficções, entre as quais o romance “Se Não Agora, Quando?” Publicado na Itália em 1982, o livro fala de um grupo de guerrilheiros judeus que percorre a fronteira russa emboscando os alemães.
Levi também foi guerrilheiro antes de ser aprisionado. Um homem que sucumbiu à tristeza e se matou na velhice, mas um escritor cujo legado é, definitivamente, o mais sólido monumento ao otimismo.
Primo Levi fazia parte da geração de jovens judeus do norte italiano que viviam secularmente, de maneira perfeitamente integrada na sociedade local. No entanto, a partir dos anos 30, confrontaram-se com sua própria judeidade, em face à publicação das leis antissemitas — inspiradas nas suas congêneres da Alemanha nazista — e às posteriores perseguições e deportações. Levi foi um dos últimos judeus de Turim a poder se inscrever na faculdade. A partir de 1938, com a publicação das Leis Raciais, o ingresso aos cursos superiores seria proibido aos cidadãos judeus.
Apesar de enfrentarem episódios de preconceito no cotidiano, antes da ascensão fascista, Primo Levi, e os judeus italianos de modo geral, podiam usufruir plenamente da modernidade judaica cosmopolita e de uma normalidade social gradualmente conquistada a partir de meados do século XVIII. Levi chegou a declarar que teria se tornado judeu em Auschwitz e que a consciência sobre sua diferença teria-lhe sido imposta naquela terrível circunstância.
De certa maneira e a seu modo, ele se liga à família cultural do “judeu não judeu”, que reverbera no personagem Bloom de James Joyce, inspirado em seu amigo Italo Svevo (Ettore Schmitz), mas que remonta a figuras mais remotas, como Spinoza, conforme sustenta Isaac Deutscher em The non-jewish jew: and other essays , que inclui reflexões sobre Rosa Luxemburgo, Karl Marx e Heinrich Heine.
Levi não foi o primeiro italiano a testemunhar sobre a chocante experiência dos campos de concentração. Antes dele, em 1945, Bruno Vasari publicava o seu Mauthausen bivacco della morte . Porém, Levi criou efetivamente uma escrita documental singular, extremamente límpida, precisa e ao mesmo tempo pessoal em sua entonação, cadência e pungência descritiva.
Se fosse possível estabelecer um paralelo com algum autor brasileiro, esse seria Graciliano Ramos, que, em seu Memórias do cárcere , também se dedica a investigar o funcionamento perverso dos sistemas de opressão a partir da concretude de gestos e situações vividas, sem negligenciar as faces contraditórias e de difícil legibilidade.
Uma das passagens mais marcantes da obra de Primo Levi é a descrição da “zona cinzenta” que caracterizava o espaço dos campos de concentração nazistas, ou Lager, como são denominados geralmente na Itália. O tema esboçado já em seu primeiro livro, É isto um homem?(Rocco, 1987), é retomado no terceiro volume da trilogia de Auschwitz, Os afogados e os sobreviventes (Paz e Terra, 2016), publicado na Itália em 1986, um ano antes do suicídio de Levi.
Ao contrário do que se poderia esperar, recorda Levi, nas relações entre internos dos campos a solidariedade e a cumplicidade eram escassas. Os recém-chegados ao campo deparavam-se imediatamente com a hostilidade de outros prisioneiros, que assumiam frequentemente o papel de algozes daqueles que se encontravam em situação semelhante a sua. Tudo isso regido por um complexo esquema de colaboração, que coagia as próprias vítimas a se tornarem carrascos. A tal situação, Levi se referia como a “zona cinzenta” em que culpa e inocência, bem e mal se fundiam impedindo toda tentativa de explicação ou racionalização do espaço do campo.
Não obstante a singularidade do Holocausto, que o autor não deixa de reconhecer, trata-se aqui não apenas de um impressionante relato histórico, mas da descrição aguda de experiências estruturais e estruturantes da humanidade moderna em seus aspectos mais grotescos e inconfessáveis. Não por acaso o filósofo Giorgio Agamben veio a tomar a descrição dos Lager da obra de Levi como base de seu entendimento do paradigma político contemporâneo. Vale apontar que tal descrição do espaço do campo em termos de uma “zona cinzenta” não sinaliza de modo algum a tentativa por parte do autor de relativização da culpa nazista ou de reparti-la entre vítimas e agressores.
Mais que um argumento moral, o ponto fundamental do relato de Levi, com a aspiração à objetividade científica que caracterizava sua escrita, consiste na revelação de um sistema cuja eficácia reside precisamente na imbricação da condição de algoz com a de vítima, dissolvendo assim gestos de solidariedade que viessem a surgir entre os prisioneiros. A atualidade dessa descrição parece hoje assombrosa.
(Fonte: Veja, 24 de fevereiro de 1999 – ANO 32 – N° 8 – Edição 1586 – LIVROS/ Por Carlos Graieb – Pág; 134)
(Fonte: https://epoca.globo.com – PRIMO LEVI, 100 ANOS | A ZONA CINZENTA / Por Laura Erber e Pedro Erber – 01/08/2019)
Laura Erber é escritora, editora e crítica literária. É professora do departamento de teoria do teatro da UNIRIO e diretora da Zazie Edições, onde coordena a coleção Pequena Biblioteca de Ensaios. (www.zazie.com.br)
Pedro Erber é filósofo, professor do departamento de Romance Studies da Universidade de Cornell e autor de Breaching the frame: the rise of contemporary art in Brazil and Japan (University of California Press, 2015).