Procópio, comediante
“O Vendedor de Gargalhadas” (1975): uma deliciosa sem-vergonhice
Ele reinou nos palcos durante seis décadas e quase 500 personagens. Não era só um grande ator.
Era o mito nacional há mais de trinta anos.
João Álvaro de Jesus Quental Ferreira (1898-1979), um grande ator, um mito nacional. Em uma fração de segundo, ele era capaz de modelar cada músculo do rosto como o mais minucioso dos escultores, até obter exatamente a expressão desejada. Geralmente, nem isso era preciso. Bastava um simples revirar dos olhos para Procópio Ferreira comunicar qualquer emoção: susto, raiva, medo, alegria e principalmente malandragem, mas uma malandragem encantadora, uma forma toda especial de sem-vergonhice que tornava o espectador seu cúmplice irresistível.
Era com a voz, porém, que Procópio Ferreira , mantinha fascinadas as platéias teatrais. Mesmo prejudicado por uma renite bronquite, resultado dos cigarros que nunca conseguiu largar, a voz de Procópio era um instrumento prodigioso: ele brincava com as palavras, extraía delas tantas e tão inesperadas sonoridades que tornavam seu desempenho um jogo delicioso. Procópio era um comediante no sentido mais amplo da palavra, de acordo com a definição do monstro sagrado do teatro francês Louis Jouvet: O ator representa bem alguns papeis. Mas o comediante, esse é capaz de repersentar qualquer papel.
SEMPRE NO CENTRO No entanto, o senhor João Álvaro de Jesus Quental Ferreira, nascido em 8 de julho de 1898, no Rio de Janeiro, não parecia destinado ao palco. O futuro Procópio Ferreira foi expulso de casa quando seu pai, um próspero home de negócios português, ficou furioso ao ver que o filho trocava as aulas de Direito pelas de um curso de teatro. E a estréia do ator (ainda como João Ferreira) tampouco indicaria sua alentadíssima carreira de sucessos nacionais, de 422 peças e uma coleção de prêmios e honrarias que poucos atores em todo o mundo podem ostentar.
Foi em 22 de março de 1917, no Teatro Carlos Gomes, interpretando o minúsculo papel de um criado na comédia francesa Amigo, Mulher e Marido: o estreante João Ferreira estava tão nervoso que entrou em cena pela porta errada. Mas daí em diante ele não errou mais. No mesmo ano, surgiu a primeira boa oportunidade, em A Cabana do Pai Tomás, quando passou a usar o nome que o celebrizou. O primeiro grande êxito veio dois anos depois, ainda num papel secundário, na comédia A Juriti, e em 1920, enfim, com “Onde Canta o Sabiá”, de Gastão Tojeiro, Procópio ganhava as honras de protagonista.
Era uma época em que o teatro imperava como meio de entretenimento popular, tanto que as companhias costumavam fazer duas sessões todas as noites. As companhias giravam sempre em torno de um grande astro, sobrando aos outros atores a função de meros comparsas. Assim, em 1924, quando Procópio formou seu próprio elenco, era natural que escolhesse para o repertório somente peças em que o papel central fosse adequado sob medida aos seus talentos.
Quando isso não acontecia, porém, não se acanhava nem um pouco em adaptar o texto para suas conveniências. A comédia francesa “Nina”, de André Roussin, por exemplo, transformou-se em “O Marido de Nina”. O novo protagonista, claro, passou a ser interpretado por Procópio. Os espetáculos – de acordo, aliás, com a praxe da época – obedeciam a uma rígida hierarquia e os comparsas só podiam se sentar depois do ator principal.
ENCONTRO MÁGICO – – Teatro de equipe? Nem pensar. Mesmo anos depois, quando o Teatro Brasileiro de Comédia desenvolvia formas mais modernas de encenação, Procópio justificava sua visão de teatro: “Para haver teatro de equipe é necessário que todos estejam no mesmo nível. Não teria sentido uma Sarah Bernhardt, um Jean-Louis Barrault cederem seus papeis de protagonista para artistas de menor brilho”.
Com o sucesso de sua companhia, Procópio começou a manter sob contrato uma série de novos autores nacionais, pagando-lhes um salário fixo para que o abastecessem de peças. Assim surgiu “Deus lhe Pague”, de Joracy Camargo, estreada em 1932, o maior êxito de sua carreira e um dos maiores do teatro mundial. Com ela, apresentada até 1968, Procópio alcançou a cifra quase inacreditável de 3 621 representações. Em sua companhia estrearam também grandes nomes do teatro, como Rodolfo Mayer e a filha Bibi, do casamento com a atriz Aida Isquierdo. Teve mais três casamentos, uma infinidade de casos amorosos e pelo menos cinco outros filhos, dos quais o mais conhecido, depois de Bibi, é o ator Renato Restier.
Se o mendigo-filósofo do dramalhão “Deus lhe Pague” constituiu seu maior sucesso popular, o Harpagão de “O Avarento”, de Molière (estreado em 1943 e remontado em 1969) representou sem dúvida o encontro mágico de um ator extraordinário com uma personagem antológica. Ao assistir à peça no Rio de Janeiro, Louis Jouvet ficou tão arrebatado que chegou a convidar Procópio para levar seu Harpagão a Paris.
UM HOMEM DE PALAVRA – A partir do final da década de 40, porém, foi ficando difícil a Procópio manter seu espaço no teatro brasileiro. Por mais que as novas gerações o venerassem, o diálogo entre Procópio e elas tornava-se penoso e o ator começou a viver na posição não muito confortável de mito aposentado. Desde então, além de interpretar o musical americano “Como Vencer na Vida Sem Fazer Força”, Procópio pouco fez de novo no teatro. Nos anos 60, tornou-se uma figura habitual em novelas de TV e, por fim, ironicamente, o último prêmio de interpretação dado a esse mito do teatro foi por um de seus raros trabalhos em cinema, o Air France de 1972, pelo desempenho em “Em Família”.
No teatro, mesmo, Procópio limitava-se a remontar antigos êxitos, com elencos cada vez menores, até se apresentar sozinho, como em “O Vendedor de Gargalhadas” ou “Como Fazer Rir”, coletâneas de textos de humor. Mas fazia questão de dizer que só deixaria de representar quando a natureza dissesse “Basta”. Cumpriu a promessa: embora comemorasse seus sessenta anos de teatro num hospital, semanas depois já excursionava pelo interior de São Paulo com “Como Fazer Rir”.
Autor de vários livros sobre sua arte, Procópio gostava de dizer que o teatro consiste “numa dízima periódica de ‘por que'”, E explicava: “Abre o pano e o público pergunta ‘por que?’. Uma personagem entra em cena e o público pergunta ‘por que?'”. Em sua longa carreira, Procópio encenou muitas peças insignificantes. Interpretou personagens que não teriam a menor razão de ser se confiados a outros atores. Mas, quando ele entrava em cena, nenhum espectador – nem mesmo o mais implicante dos críticos – pensava em perguntar o “porque” de sua presença. Procópio estava no palco porque aquele era o seu lugar. Procópio morreu em 18 de junho de 1979, aos 80 anos, de colapso cardíaco, no Rio de Janeiro.
(Fonte: Veja, 27 de junho, 1979 Edição n.° 564 Teatro – Pág; 80/81)