Prudente: “A liberdade é o ar de que precisamos”.
Prudente de Moraes, neto (1904-1977), deputado, jurista e neto de Prudente de Moraes primeiro presidente civil da República; filho de Prudente de Moraes Filho. A figura: terno, gravata, suspensórios, chapéu, bengala, cigarros baratos de fumo forte e uma pasta nas mãos. O político: família conservadora, anarquista na juventude, conspirador na meia-idade, liberal na maturidade. As horas livres: boêmia, poesia ocasional, turfe, futebol, samba; vizinho, em menino, de Olavo Bilac, Prudente de Moraes, neto, trouxe desde então o gosto pela política, pelos cavalos, pelas leis e pela poesia. A boêmia, o samba e o futebol vieram depois. Tanta diversidade de interesses ele, candidamente, explicaria em 1974, ao completar 70 anos: Sou uma pessoa que apenas presta atenção à vida.
Paixão temporã Nascido no Rio de Janeiro em 1904 e órfão de mãe aos 2 meses de idade, Prudente foi criado pelo avô materno, o general Luís Mendes de Moraes, que costumava levá-lo ao Jockey Club para ver as corridas. Fascinado com o volume de informações que os freqüentadores do prado tiravam dos programas, Prudente tratou de decifrá-los. E foi assim que aprendeu a ler.
A proximidade de Bilac um circunspecto senhor de pince-nez, meu vizinho de parede e meia já lhe havia desenvolvido a paixão pela poesia antes mesmo de chegar ao Colégio Pedro II. Mas ali é que ele iria conhecer duas pessoas que mudariam sua vida: o colega e poeta Celso Kelly, que o aproximou dos modernistas, e o professor José Oiticica, que aos domingos utilizava salas de aula para explicar aos alunos os vinte pontos básicos do anarquismo, ao qual Prudente acabaria de aderir. E, a partir de então, quase nada de importante aconteceria no país do Movimento Modernista à Revolução de 1964 sem sua participação.
Modernista, fundou a revista Esthetica, que duraria apenas três números, e passou a fazer crítica literária para diversos jornais. Boêmio, tornou-se amigo de sambistas, como Sinhô, Donga, Pixinguinha, Ismael Silva, e torcedor do esquálido Madureira Futebol Clube – ao descobrir que o time era financiado por um bicheiro. Ativista político, conspirou contra Washington Luís, Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart. Ao jornalismo como profissão chegou em 1944, já aos 40 anos de idade. Foi uma paixão temporã e definitiva: em poucos meses Prudente ascenderia de comentarista de turfe a diretor de redação da Folha Carioca e, sucessivamente, do Diário Carioca e da sucursal carioca de O Estado de S. Paulo, cargo que ocupou de 1957 a 1967, além de articulista político sob o pseudônimo de Pedro Dantas.
Dias difíceis – Mas o liberal que ele nunca deixaria de ser surgiria com maior vigor a partir de setembro de 1975, quando assumiu a presidência da ABI, para cumprir oito meses de mandato, na vaga decorrente do falecimento de Líbero Oswaldo de Miranda – cargo para o qual se reelegeria em abril de 1976, para um mandato de dois anos. Já na posse Prudente resumiria em poucas frases o programa de sua gestão: “A única ideia que nos anima é a da defesa da liberdade. A liberdade é o nosso clima, o ar de que precisamos para viver e o pressuposto do lídimo exercício da nossa profissão. Defendemos a liberdade em geral, a liberdade de imprensa em particular”.
Em nenhum momento, durante os dois anos seguintes, Prudente deixaria de defender os propósitos fixados naquele discurso. Sua primeira providência como presidente da ABI, pouco depois da posse, foi redigir um ofício ao ministro da Justiça, Armando Falcão, protestando contra a censura aos jornais Tribuna da Imprensa, O Pasquim, Opinião, Movimento e à revista Veja – que seria liberada dos censores em junho de 1976. Logo em seguida, reclamaria do então comandante do II Exército, general Ednardo d’Ávila Mello, igualmente por escrito, a libertação de jornalistas presos em São Paulo.
Eram dias difíceis esses do final de 1975 – e a atuação de Prudente de Moraes, neto, seria especialmente marcante quando morreu o jornalista Wladimir Herzog nas dependências do DOI-CODI de São Paulo, em outubro daquele ano. A ABI foi a primeira entidade a se solidarizar com o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo. E ao mesmo tempo Prudente enviava comunicação ao comandante do II Exército, onde ponderava que “o inquérito para apurar a morte de Herzog não produzirá o efeito que todos desejamos se não for acompanhado pelo Ministério Público da Justiça Militar, com acesso da imprensa às diligências”.
Sem retórica A verdade é que os elogios vertidos à memória de Prudente e à sua luta pela liberdade de imprensa, no final da semana passada, nada tinham de retórico – nem lembravam o “costume caridoso de falar bem das pessoas que morrem”, como apontou Carlos Drummond de Andrade à beira de seu túmulo. Batalhadores como ele marcaram a consciência do país nesses últimos anos – e à sua serena pregação de 27 meses à frente da ABI se deve, com certeza, uma boa parcela do clima de liberdade que toda a grande imprensa do Brasil desfruta hoje. Ao governo Ernesto Geisel, sem dúvida, cabe o mérito da supressão da censura, bem como a ele se devem as atuais garantias de livre expressão. Mas, ao longo de todo o processo, pairou a presença dos que, como Prudente, nunca deixaram morrer a ideia de uma imprensa livre. Feitas as contas, foi com Prudente de Moraes à frente da ABI que o Brasil viveu em 1977, pela primeira vez, desde a edição do AI-5, em 1968, um ano inteiro sem que esse importante setor da imprensa escrita sofresse qualquer tipo de restrições. Os frutos de seu clamor pela liberdade de expressão poderiam ser aferidos também pela simples constatação de que, igualmente nos últimos nove anos, pela primeira vez temas como o da sucessão presidencial são discutidos pública e abertamente por significativa parte da imprensa. Mesmo episódios como os da exoneração do ministro Sylvio Frota sentiram o peso da liberdade de expressão em que vivem as mais importantes publicações brasileiras. A expectativa de delicada crise no poder, em parte, esvaziou-se por si próprias a partir do momento que a dura ordem do dia de Frota foi liberada para publicação – algo inimaginável há quatro anos.
A pregação conduzida a nível nacional por Prudente chegaria àquele que há poucos meses era sem dúvida o mais vigiado e policiado meio de comunicação, a televisão – cuidadosamente liberada para tratar de alguns temas da realidade nacional que, da mesma forma, seriam terminantemente vetados à massa de telespectadores que a assistem. A julgar pelo que discretamente vêm anunciando fontes bem próximas do poder, Prudente de Moraes terá morrido muito pouco tempo antes de ver realizado o sonho pelo qual deu seus últimos anos de vida: a suspensão total da censura à imprensa no Brasil, coroamento de um processo no qual a pregação libertária, tal como a entendia Prudente, foi tão importante quanto o discernimento do governo e seu destemor em conviver com a livre expressão.
Às 2 horas da manhã do dia 21 de dezembro de 1977, uma neoplasia pulmonar matava Prudente de Moraes, neto, no Rio de Janeiro. O sentimento generalizado de que não só a imprensa, mas a causa da liberdade, perdera um batalhador naquela madrugada envolveria, horas depois, os 600 amigos e admiradores que levariam seu corpo na tarde da mesma quarta-feira ao Cemitério do Caju. Durante as horas em que seu corpo foi velado no hall da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), que ele presidia desde setembro de 1975, esteve a seu lado uma densa, emocionada legião de antigos companheiros de luta – jornalistas, intelectuais, advogados, artistas, políticos, empresários e militares.
(Fonte: Veja, 28 de dezembro, 1977 Edição n.° 486 Memória – Pág; 26/27)