ALERTA PIONEIRO PARA CATÁSTROFE ECOLÓGICA
A bióloga americana ficou conhecida por revolucionar o movimento conservacionista (corrente ideológica que defende a proteção dos recursos naturais do planeta) em todo o mundo e publicou estudos importantíssimos sobre o uso de pesticidas
Rachel Carson (Springdale, Pensilvânia, 27 de maio de 1907 – Silver Spring, Maryland, 14 de abril de 1964), bióloga marinha, escreveu em 1962, Primavera Silenciosa, primeiro e profético livro em defesa da ecologia. Carson previu que, a se manter o ritmo de destruição dos recursos naturais, logo estaríamos vivendo num mundo “sem canto de pássaros”. Ao que indicou, a ecologista pioneira estava certa. Já se pode notar por toda parte sinais de que o mundo atingiu seu limite de tolerância com o descaso e a magnitude das agressões da era industrial ao meio ambiente – e começa a contra-atacar.
São golpes precisos e assustadores. A Europa, o continente que abrigou há 10 000 anos os primeiros humanos domesticadores de animais e cultivadores da terra, está numa crise inédita. Dos centros de pesquisa climática mais respeitados de diversos países, vem outra péssima notícia. A temperatura da Terra está subindo rapidamente. A alteração no termômetro é pequena, mas seus efeitos potenciais são apocalípticos: degelo da calota polar, seguido do aumento de volume dos oceanos e da inundação das cidades litorâneas.
(Fonte: VEJA, 18 de abril, 2001 – Ano 34 – N.º15 – Edição 1696 – Carta ao Leitor – Pág.09)
Agrotóxicos: ‘estamos todos participando de uma experiência química global’
Em seu livro “Primavera Silenciosa”, de 1962, a bióloga americana Rachel Carson alertou contra o uso indiscriminado de agrotóxicos.
“O ser humano é parte da natureza, e sua guerra contra a natureza é inevitavelmente uma guerra contra si mesmo.”
A citação é de Rachel Carson, a bióloga e conservacionista americana que causou comoção em seu país ao publicar seu famoso livro Primavera Silenciosa em 1962. O trabalho começa com um convite: imagine uma cidade em que os pássaros sumiram, vítimas do uso excessivo de compostos químicos como agrotóxicos.
Carson não era contra a aplicação seletiva de agrotóxicos e inseticidas, mas era contra seu uso indiscriminado, comum em uma época marcada por uma fé cega no poder da ciência.
A obra teve tanta repercussão que foi uma das catalisadoras do movimento ambientalista nos EUA. Carson não só escrevia com precisão científica como também comunicava com beleza poética o que chamava de “tecido intrincado da vida”, no qual tudo está interligado e do qual todos fazemos parte.
Sessenta anos depois da publicação de Primavera Silenciosa, quão preocupante é a atual proliferação de compostos químicos? E qual seria a mensagem de um livro como o de Carson hoje?
A BBC News Mundo (serviço de notícias em espanhol da BBC) conversou com Joan Grimalt, professor de Química Ambiental do Conselho Superior de Pesquisa Científica da Espanha e integrante do Painel Intergovernamental de Poluição Química (IPCP). O IPCP é um grupo de cientistas que reivindica a criação de um organismo internacional para monitorar agrotóxicos.
Seis décadas depois, quais são os riscos da proliferação desses químicos? E qual é o legado de Carson?
BBC: Rachel Carson alertou sobre “a contaminação do ar, da terra e do mar com materiais perigosos e até letais”. Esta mensagem é relevante na atualidade?
Joan Grimalt: Sim, com certeza. É verdade que o uso em alguns lugares não é mais permitido. Mas, em geral, o uso de compostos químicos aumentou e o despejo desses compostos no meio ambiente também aumentou.
Existem atualmente cerca de 350 mil compostos fabricados pela indústria. Na época de Carson, eu diria que esse número não passava de 30 mil.
BBC: Em seu livro, Carson falou especialmente de um composto, o DDT.
Grimalt:O DDT foi importante. Mas o problema é que muitos compostos foram criados. Outro problema é a sua ampla utilização, que é o que gerou mais problemas ainda.
O DDT já era conhecido desde o final do século 19. Mas na década de 1940 havia um médico, Paul Müller, que propôs usar o DDT para eliminar os mosquitos do gênero Anopheles (mosquito-prego) que transmitem a malária.
E isso levou à disseminação do DDT em todo o mundo. Deve-se lembrar que isso rendeu o Prêmio Nobel de Medicina a Paul Müller, porque esse composto eliminou o mosquito Anopheles em praticamente todos os lugares, exceto nas zonas tropicais, e a incidência de malária caiu drasticamente.
E também é preciso dizer que desde 2005 a Organização Mundial da Saúde recomenda o uso do DDT para combater o mosquito Anopheles em lugares onde a malária ainda é endêmica.
Às vezes o que acontece é que uma coisa não é branca nem preta; depende do uso que se dá a ela.
BBC: Quais foram impactos negativos do DDT?
Grimalt: Concretamente, um primeiro efeito foi que nas aves expostas ao DDT, as cascas dos ovos ficaram muito mais finas e, por isso, durante a incubação, muitas ninhadas foram perdidas porque os ovos não aguentavam o peso dos adultos que os chocavam. Isso resultou no desaparecimento de muitos pássaros.
O DDT quase extinguiu a águia-americana, por exemplo, a águia símbolo dos Estados Unidos, e muitas outras espécies.
Além disso, se observou que em humanos o DDT também causava problemas. Há imagens onde você pode ver soldados dos Estados Unidos de cuecas sendo pulverizados com DDT (para matar pulgas e piolhos), porque se acreditava que o DDT não os afetava. Não sabemos como esses soldados estão agora. O DDT é neurotóxico e dentro das células dos organismos, incluindo os humanos, as células que mais se reproduzem são as células nervosas, por isso o dano causado ao sistema neurológico é mais permanente.
BBC: Você poderia nos dar alguns exemplos de compostos que são usados hoje e são especialmente preocupantes para você? Fala-se muito sobre os produtos químicos “forever chemicals” ou compostos “eternos” (fluorosurfactantes).
Grimalt:Ao falar de compostos ou contaminantes químicos, devemos diferenciar aqueles que possuem importantes propriedades de estabilidade química. Estes seriam o que se chama de produtos químicos eternos, que são compostos persistentes.
A persistência existe por causa de dois fatores. Primeiro, porque quimicamente as moléculas são muito estáveis. No meio ambiente não há muitas reações que conseguem degradá-las, e a atividade dos organismos, sejam eles bactérias ou organismos superiores, as degrada muito pouco.
A outra propriedade que esses compostos costumam apresentar é serem hidrofóbicos, o que significa que se dissolvem mais em matéria orgânica do que em água. Por isso eles tendem a se acumular em organismos vivos, o que é chamado de bioacumulação. Toda vez que hum corpo bebe ou come algo que os contém, ele os acumula e não os excreta, porque nosso sistema de excreção mais normal é a urina, e eles não são solúveis na urina.
Além disso, na medida em que vamos subindo na cadeia alimentar, os organismos superiores se acumulam cada vez mais porque comem coisas que também continham esses compostos. Isso é o que é chamado de biomagnificação. Mamíferos marinhos, por exemplo, focas, baleias, acumulam mais [compostos]do que peixes. E os peixes que são predadores de outros peixes acumulam mais do que peixes que comem algas e zooplâncton.
BBC: Você pode nos dar um exemplo desses compostos persistentes?
Grimalt: Isso está no DDT. Todos nós carregamos DDT e seus metabólitos em nosso sangue.
Mas um composto que me preocupa muito é o mercúrio. Alguns tipos de carvão têm um certo nível de mercúrio e quando grandes quantidades desse carvão são queimadas, isso solta o mercúrio na atmosfera. A partir daí, isso passa para a água e também vai se acumulando em organismos.
Outra fonte de mercúrio é o fato de que em reservas tropicais, tanto na América quanto na África, há pessoas que se dedicam a procurar ouro, e são pessoas muito pobres com técnicas muito primitivas. Uma delas é amalgamar ouro com mercúrio.
BBC: Você pode nos lembrar de quão tóxico é o mercúrio?
Grimalt: Ele é neurotóxico nessas concentrações de que estamos falando, porque afeta tudo — o fígado, os rins. Também leva a deformidades nas crianças quando as mães grávidas são expostas.
Infelizmente, na Baía de Minamata, no Japão, isso foi perfeitamente documentado, porque havia uma indústria que despejava derivados de mercúrio no rio, e esses derivados entravam na cadeia alimentar e nos peixes que os habitantes locais comiam, e isso foi um desastre.
BBC: Quais outras substâncias o preocupam? Muito se fala sobre os microplásticos, que em estudos recentes foram detectados até na placenta humana.
Grimalt:Os microplásticos também são importantes, mas ainda não sabemos quais efeitos eles têm. Mas cuidado, o plástico é uma invenção da humanidade que provou ser muito útil.
O plástico é inerte e a priori não tem nenhum efeito negativo. Se isso acontecesse, estaríamos acabados, porque embalamos comida em plástico e colocamos remédios em nossas veias com tubos de plástico e nada acontece.
Isso não significa dizer que estamos usando de forma correta o plástico.
É preciso investigar quais são os efeitos dos microplásticos na saúde. Mas não é preciso esperar pesquisas para tratar adequadamente os resíduos e as águas urbanas. Já podemos retirar muito plástico do meio ambiente. Por outro lado, com o mercúrio, quando você já o descartou, não existe mais remédio.
BBC: Antes da entrevista, você me disse que “estamos todos participando de uma experiência química global”. Por quê?
Grimalt: Digo isso porque estamos jogando muitos compostos no meio ambiente e alguns deles não voltam para nós. Mas a maioria deles sim, e colocamos tudo isso dentro do nosso corpo.
Em outras palavras, pensar que podemos ter uma saúde perfeita quando estamos cercados por água poluída, ar poluído e solo ou alimentos contaminados é uma bobagem.
BBC: E existem possíveis interações desses compostos entre si que ainda são desconhecidas?
Grimalt: Estamos falando de 350 mil compostos. Ainda há muitas coisas para entendermos.
Os compostos persistentes, uma vez ingeridos, como eu disse, permanecem dentro do corpo e começam a fazer efeito. E no caso daqueles que não são persistentes e o corpo os elimina principalmente na urina, se depois que os eliminamos voltamos a comer algo com eles, então estamos sendo sempre expostos.
BBC: Você pode nos dar um exemplo desses compostos não persistentesaos quais podemos estar sendo permanentemente expostos?
Grimalt: Por exemplo, os pesticidas que são usados na agricultura em pequenas doses e que voltamos a comer. Ou os bisfenóis que são aditivos plásticos. Existem muitos tipos de plástico que possuem muitos aditivos para modificar as propriedades do polímero ou dar cor. Se esses microplásticos são ingeridos, todos os compostos vão para dentro de nosso corpo.
Se olharmos para os resíduos plásticos em uma praia que não foi limpa, há plásticos de todas as cores e isso já revela que são plásticos diferentes com propriedades diferentes.
BBC: E quem regula todos esses 350 mil compostos? Existe uma organização internacional?
Grimalt:No nível internacional não existe nada. É por isso que nós do mundo científico, os membros do Painel Intergovernamental de Poluição Química, publicamos uma carta na revista Science solicitando um painel internacional para monitorar e aconselhar sobre compostos e resíduos químicos para reduzir a exposição a esses compostos.
BBC: A regulação dos milhares de compostos é feita por cada país?
Grimalt: No nível europeu, existem leis diferentes, como por exemplo o REACH [Registration, Evaluation, Authorisation and Restriction of Chemicals, uma lei da Comunidade Europeia de 2006], mas isso é apenas na Europa. Nos EUA, existe a Agência de Proteção Ambiental (EPA), que também é um órgão de referência em toda essa questão. Mas em muitos outros países, nada é feito. Não existe nada.
Além disso, outra coisa que eu pessoalmente acho uma vergonha é que muitos países desenvolvidos enviam resíduos para países subdesenvolvidos. Já se pode imaginar que o que acontece é que esses resíduos são despejados no meio ambiente ou tratados de forma totalmente inadequada.
Além disso, parte desses resíduos e dos compostos que contidos neles retornarão ao meio ambiente, serão distribuídos por todo o planeta e, portanto, também é do interesse de todos que esse tipo de coisa não aconteça.
BBC: Existem produtos que são proibidos em alguns países europeus, mas são vendidos na América Latina, como os pesticidas chamados neonicotinoides.
Grimalt: O que se tem feito muito é imitar as plantas, que, por não conseguirem se mexer, travam uma guerra química contra os insetos.
O tabaco produz nicotina não para os humanos fumarem, mas para matar insetos, para se defenderem. A nicotina foi tomada e suas moléculas modificadas para produzir derivados de nicotina ainda mais fortes para matar insetos. Com os neonicotinoides, existe a questão de saber se eles estão matando, por exemplo, abelhas.
BBC: Com essa enorme quantidade de compostos no meio ambiente, o que nós consumidores podemos fazer?
Grimalt: No nível do consumidor, certamente podemos fazer coisas. Uma delas é tentar minimizar o uso de plásticos, por exemplo, ir ao mercado com uma cesta ou embrulhar produtos em papel.
Os consumidores também podem reciclar ao máximo, o que facilita a gestão dos resíduos de forma menos poluente.
BBC: E para tentar proteger a saúde?
Grimalt: Nesse caso, é mais difícil de se dizer. Obviamente existem produtos ecológicos ou orgânicos que foram cultivados sem agrotóxicos. Isso também é positivo, mas sinceramente ainda acho que isso precisa ser mais estudado.
BBC: Por quê?
Grimalt: Para verificar se realmente existe um benefício para o consumidor. Se meu vizinho está usando agrotóxicos, não sei até que ponto meus produtos estão contaminados ou não. É importante deixar claro que isso é positivo. Não quero dizer que não é bom. Mas deveria ser mais estudado.
BBC: Voltando agora ao livro de Rachel Carson. Ela alertou que pássaros e outras espécies corriam risco. Mas agora temos a crise do clima e da biodiversidade, com um milhão de espécies em perigo de extinção, segundo a ONU. Qual seria a mensagem de um livro como Primavera Silenciosa hoje?
Grimalt: Primavera Silenciosa foi um sucesso em parte porque os pesticidas que poderiam afetar mais as aves foram alterados. O DDT foi proibido em muitos países e onde ele ainda é usado para combater o mosquito Anopheles, isso é feito para proteger as pessoas. Ele não pode mais ser usado na agricultura.
Agora estamos discutindo outras coisas preocupantes, sobre uma grande diminuição da população de insetos em muitos lugares. E muitos desses insetos são polinizadores. Eles são necessários para as plantações, para que as plantas se reproduzam. O fato de haver muito menos insetos é preocupante. Eu diria que devemos passar da preocupação com os pássaros para a preocupação com os insetos, especialmente aqueles que vão de flor em flor — os voadores. E isso tem muito a ver com o uso de agrotóxicos.
BBC: É o que você estava falando sobre as abelhas…
Grimalt: As abelhas e todos. Lembro que quando pegava meu carro há vinte anos aqui na Catalunha ficava com a janela do carro cheia de insetos mortos. Hoje em dia há bem menos. Isso é uma observação pessoal. Mas se você ler artigos publicados em revistas científicas onde o nível de insetos em muitas áreas florestais foi monitorado, verá que houve uma queda.
BBC: Antes de terminar, eu queria perguntar sobre a figura de Carson. Ela escreveu seu livro quando lutava contra um câncer que tirou sua vida dois anos depois. Para você, pessoalmente, o que significa a figura de Carson?
– Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-63255592
Rachel Carson, ciência e coragem
‘Primavera silenciosa’, uma das obras mais importantes do século 20, publicado (1962), o livro fez o primeiro alerta mundial sobre os efeitos nocivos do uso de agrotóxicos e questionou os rumos da relação entre o homem e a natureza.
Quando decidiu pesquisar a fundo a questão dos agrotóxicos, a bióloga marinha Rachel Carson já era uma escritora conhecida nos Estados Unidos, graças ao sucesso de seus três livros sobre os oceanos: Sob o mar-vento (1941), O mar que nos cerca (1951) e Beira-mar (1955). A trilogia permitiu que ela deixasse um emprego público na Secretaria de Pesca Federal para se dedicar totalmente à escrita, sua grande paixão.
Mas Carson já se interessava pelo tema dos pesticidas desde 1945, quando biólogos norte-americanos começaram a estudar os efeitos do dicloro-difenil-tricloroetano (o inseticida DDT) no ambiente.
Após a Segunda Guerra Mundial, o DDT começou a ser usado no combate aos insetos que atacavam as culturas agrícolas
O DDT foi sintetizado em 1874, na Alemanha, mas suas propriedades inseticidas só foram descobertas em 1939 pelo químico suíço Paul Hermann Müller (1899-1965). Como o composto foi empregado inicialmente, com sucesso, no combate a insetos (piolhos, mosquitos e outros) transmissores de doenças (tifo, malária, febre amarela e outras), a descoberta foi apontada como um feito revolucionário e deu a Müller, em 1948, o prêmio Nobel de Medicina.
Após a Segunda Guerra Mundial, o DDT começou a ser usado no combate aos insetos que atacavam as culturas agrícolas, mas em pouco mais de uma década começaram a ser noticiados episódios de contaminação da água e do solo e de morte de animais.
Quatro anos de estudo
Em 1958, Carson recebeu carta de uma amiga, a jornalista Olga Huckins (1900-1968), contando sobre pássaros mortos em seu quintal, devido a pulverizações aéreas de DDT. Essa foi a ‘gota d’água’ para a decisão de escrever Primavera silenciosa (leia resenha do livro publicada na CH 275). À medida que investigava e obtinha informações sobre os pesticidas, Carson percebia a gravidade do problema e, ao mesmo tempo, a urgência de denunciá-lo ao mundo.
Ela sabia que o tema era polêmico e poderia provocar reação negativa dos fabricantes de pesticidas. Para precaver-se das acusações, pesquisou muito. Entrou em contato com cientistas de diferentes países, formando uma rede de colaboradores.
O estudo sobre os pesticidas consumiu muita energia e, em meio à sua elaboração, a escritora descobriu que estava com câncer. O trabalho no livro chegou a ser suspenso durante o tratamento com radioterapia, mas depois de quatro anos de muita dedicação, a primeira versão de Primavera silenciosa foi publicada, em fascículos, em junho de 1962, na revista New Yorker. Em setembro do mesmo ano, foi lançado o livro.
Em suas páginas, Carson denunciou vários efeitos negativos do uso do DDT em plantações e em campanhas de prevenção de doenças. As aplicações não matavam apenas as pragas (insetos, ervas daninhas, fungos etc.) às quais se dirigia, mas também muitas outras espécies, inclusive predadores naturais dessas pragas. Esse pesticida, mostrou ela, atinge todo o ecossistema – solo, águas, fauna e flora – e entra na cadeia alimentar, chegando aos humanos.
Segundo Carson, a “ecologia do solo” é gravemente afetada, pois o DDT mata organismos responsáveis pela drenagem do solo – como as minhocas, que melhoram a penetração da água – e pela fixação de nitrogênio.
A autora alertou também para a contaminação das águas de superfície (córregos, rios e lagoas) e subterrâneas (aquíferos), e ainda da água dos mares. Ela fala de “rios de morte”, em que, após pulverizações de pesticidas, toda a vida era eliminada. Quando os peixes não morriam, ficavam cegos ou contaminados, podendo até causar câncer em quem os ingerisse.
Além dos animais aquáticos, Carson constatou que os pesticidas ameaçavam ‘aguietas’ (filhotes de águia), papos-roxos, andorinhas, melros e outros pássaros de duas formas: as aplicações de pesticidas causavam sua morte ou prejudicavam sua reprodução, já que o veneno agia nas células reprodutoras dessas espécies. Essa era a ‘primavera silenciosa’ que ela queria evitar: uma estação sem pássaros.
Questão ainda atual
Usando uma linguagem que mesclava pesquisa rigorosa com habilidade literária, para aproximar o conhecimento científico do público leigo, Primavera silenciosa teve impacto instantâneo, ficou mais de dois anos nas listas dos livros mais vendidos e logo repercutiu mundialmente.
Enquanto a população enviava inúmeras cartas de apoio a Carson, os fabricantes de pesticidas se uniram para desacreditar a autora e seus colaboradores. Cientistas comprometidos com a produção de agrotóxicos publicaram artigos questionando a legitimidade do livro porque a autora não tinha doutorado (era mestre em zoobotânica), e outros a atacaram com argumentos preconceituosos, chamando-a de “freira da natureza”, “solteirona”, “feiticeira”, insinuando que deveria se calar apenas pelo fato de ser uma mulher.
Apesar desse fogo cruzado – as difamações e o avanço do câncer –, Rachel Carson depôs no Senado dos Estados Unidos e participou de debates e de programas na televisão, divulgando os perigos dos agrotóxicos para a saúde humana e para o ambiente. Infelizmente, a doença venceu e a bióloga morreu em 1964, sem ver os resultados de suas palavras ao longo das décadas seguintes.
O DDT foi banido de vários países, a começar por Hungria (1968), Noruega e Suécia (1970) e Alemanha e Estados Unidos (1972). Hoje, a Convenção de Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persistentes, assinada por cerca de 180 países, restringe o uso do composto a casos especiais de controle de vetores de doenças. No Brasil, a fabricação, importação, exportação, manutenção em estoque, comercialização e uso do DDT só foram proibidos em 2009.
Já havia pessoas preocupadas com a devastação da natureza bem antes de Primavera silenciosa, mas o movimento ecologista de caráter político certamente foi impulsionado pela publicação do livro. Ao criticar o uso dos agrotóxicos, Carson tratava um tema fundamental, a relação do homem com a natureza.
Para Carson, a humanidade estava em guerra com a natureza. Trilhando um caminho equivocado, começava a sofrer um tipo de risco introduzido pelo próprio ser humano. Em nome do progresso científico, os agrotóxicos eram anunciados como a maneira mais moderna de se erradicar pragas na agricultura e, com isso, resolver o problema da fome no mundo. Essa ‘promessa’, no entanto, não foi cumprida: os insetos se tornaram resistentes aos venenos e ainda há muita gente passando fome.
(Fonte: http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/2012/296 – CIÊNCIA HOJE/ Por: Elenita Malta Pereira – Publicado em 04/10/2012)
Elenita Malta Pereira
Programa de Pós-graduação em História
Universidade Federal do Rio Grande do Sul