Raoul Dufy, desenhista, gravador, desenvolveu amplamente também no campo da tapeçaria e da cerâmica.

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Raoul Dufy (Le Havre, 3 de junho de 1877 – Forcalquier, 23 de março de 1953), desenhista, gravador, desenvolveu amplamente também no campo da tapeçaria, da cerâmica pintada, da estampagem de tecidos – cumpre, não obstante, o seu papel ilustrativo e didático, permitindo uma visão sintética da evolução do artista. Se a grande reviravolta promovida pelos mestres modernos da primeira hora foi mostrar que a cópia servil da natureza não era a finalidade da pintura, Dufy, cuja arte sempre se alimentou da natureza e de aspectos às vezes anedóticos da vida, deve ser visto como um legítimo herdeiro daqueles mestres.

Não se ignora que a ruptura com a tradição acadêmica abriu caminho para um processo que conduziria, através da autonomia da linguagem pictórica, ao abstracionismo. O cubismo – para alguns um beco sem saída – foi para outros a encruzilhada em que o caminho se dividiu: dele surgiram tendências tão díspares como o neoplasticismo de Mondrian e o dadaísmo de Shuwitters. Dufy esteve nessa encruzilhada, também. Mas, cumprindo o prazo obrigatório, voltou à espontaneidade e à euforia de seu temperamento mediterrâneo. Ele iria demonstrar, ao longo de sua carreira, que a linguagem da pintura, para ser autônoma, não tem que obrigatoriamente negar-se à representação do mundo objetivo.

Dufy está longe de ser um pintor grave ou dramático. E a ausência, em sua obra, desses traços que marcam preponderantemente a pintura do século 20 levou muita gente a considerá-lo um artista superficial e meramente decorativo. Trata-se de uma incompreensão que logo se desfez porque desconhecia o que há de precisamente fundamental na linguagem de Dufy. Ele próprio, que não era chegado a teorias, deu uma resposta indireta aos que confundiam sua arte com os motivos e temas que ela versava: “Compram-se os motivos. O resto dou de quebra”. O resto era a pintura mesma. Porque, de fato, as cenas de concerto, as corridas de cavalo, as regatas, não são mais que pretextos para o artista exercer sua capacidade de transfiguração do real: a alquimia que transformava árvores, gente, cavalos, barcos, águas e parques em pintura. E essa transformação se faz regida – como não podia deixar de ser – pelo temperamento alegre e vivaz do homem Dufy. Mas nem só a tragédia tem profundidade: a alegria também.

Raoul Dufy é, por formação e temperamento, um fauve e, durante toda a vida, manteve-se fiel ao deslumbramento com que, num dia do ano de 1905, em face de uma tela de Matisse, aprendeu o milagre da pintura. No entanto, esse enquadramento no fauvismo não é suficiente para explicá-lo já que, partindo dele, Dufy elaborou um estilo de indiscutível originalidade. Nele, as cores vivas e selvagens ganham luminosidade e refinamento ao mesmo tempo que, sobre elas, o traço ágil do desenhista transforma os seres e as coisas em signos e notações de escritura nova. Ainda que não use palavras, Dufy, pintando-os, menos que pintá-los “escreve-os”.

Uma só mão – Essa relação entre o desenho (que de tão ágil beira o grafismo) e a cor (que aspira a converter-se em matéria sonora) revela o núcleo da pintura dufiniana: o conflito entre os dois polos do tempo – a velocidade e a duração – e entre os dois polos de sua personalidade – o virtuosismo e a emoção. A habilidade tende a dificultar o aprofundamento da expressão e é para neutralizá-la que Dufy (depois de um dia ter amarrado a mão direita para pintar apenas com a esquerda, inábil) termina por separar, em seus quadros, desenho e cor, e a conter o desenho o mais próximo possível de sua origem: o esboço, a garatuja. Mas é através dessa contradição e da superação dela que Dufy – num período de crise da pintura – se mantém um criador fecundo e comunicativo.

Escritura nova – A mostra de Dufy, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em maio de 1978, reuniu cinquenta pinturas, cinco desenhos e cinco gravuras, é uma seleção feita entre as obras do artista pertencentes ao Museu de Arte Moderna da cidade de Paris. Tratou-se de uma amostra reduzida em face da vasta produção dufiniana, permitindo uma visão sintética da evolução do artista. Sem falar que, alguns dos quadros expostos – como “30 Anos ou A Vida Cor-de-rosa”, “O Modelo” ou “O Domingo, Música no Campo” estão entre as inúmeras obras-primas criadas pelo mestre de Perpignan. Sem trair a descoberta fundamental dos mestres modernos: a arte do pintor consiste em converter o que se sente e o que se vê no código autônomo específico das formas, das cores e das linhas.

(Fonte: Veja, 3 de maio de 1978 – Edição n° 504 – ARTE/ Por Ferreira Gullar – Pág; 109)

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