Raymond Roussel e o multiculturalismo
Raymond Roussel (Paris, 20 de janeiro de 1877 – Palermo, 14 de julho de 1933), influenciador de movimentos como o surrealismo e o “nouveau roman”, deixou uma pouco lida obra de ficção, excêntrica como ele próprio e pautada por métodos formais de origem poética.
São tempos magnéticos para o nome, algo obscuro, de Raymond Roussel. Diversos acontecimentos dedicados à vida e à obra do poeta, escritor e dramaturgo francês, nascido em Paris em janeiro de 1877 e suicidado em um hotel da Sicília em 1933, procuram ampliar seu público reduzido -porém riquíssimo.
Marcel Proust o via como “um prodigioso conjunto de ferramentas poéticas”. Entre os surrealistas, uma tríade notória assim o definiu: “o maior magnetizador dos tempos modernos” (André Breton); aquele que “nos mostra tudo o que não foi; apenas essa realidade nos importa” (Paul Éluard); “a estátua perfeita do gênio” (Louis Aragon). Por fim, resumindo, disse o escritor Jean Ferry: “Depois dele, vem toda a literatura moderna”.
A influência de Roussel sobre movimentos artísticos do século 20 foi resumida, em 2012, na exposição “Locus Solus – Impressões de Raymond Roussel”, montada em conjunto pela Fundação Serralves, de Portugal, e pelo museu espanhol Reina Sofía (passando também pela Biblioteca Nacional francesa), com grande afluência de espectadores.
“Locus Solus” (1914) é também o título do principal romance de Roussel. O livro protagoniza o mais recente e mais interessante – capítulo dessa nova vaga de “rousselmania”.
O ensaio “Como Escrevi Alguns de Meus Livros”, considerado seu testamento literário (e de fato deixado com seu advogado, com orientações restritas para sua publicação póstuma), além do conto “Entre os Negros” (que em 1910 daria origem ao volume “Impressions dAfrique”) e do capítulo inicial do estudo “Da Angústia ao Êxtase”, do psiquiatra Pierre Janet, precursor da psicanálise, mestre de Jung e médico de Roussel.
Balizando a dimensão dessa tardança, lembre-se que a primeira tradução ao espanhol de Roussel foi feita na Argentina num longínquo 1973, a cargo de Estela Canto, famosa namorada de Borges.
Publicado pelas Ediciones de La Flor, o romance “Impresiones de África” saiu na Argentina dez anos após a primeira edição comercial do livro por Pauvert -em momento posterior à recuperação do escritor impulsionada por ensaios de Michel Foucault e Gilles Deleuze surgidos em 1963.
Por esse período, os experimentalistas do “nouveau roman” (novo romance) adotavam, em sua ficção, técnicas descritivas de Roussel. Também as analisavam em ensaios -há exemplos de trabalhos explicitamente devocionais assinados por Alain-Robbe Grillet, Michel Butor e Jean Ricardou.
Suas invenções literárias, que partiam de regras formais baseadas em trocadilhos, também foram renovadas e ampliadas por autores reunidos em torno a Raymond Queneau no OuLiPo (sigla francesa para “Oficina de Literatura Potencial”), como Georges Perec, Italo Calvino e Harry Matthews.
A influência de Roussel sobre Julio Cortázar tampouco é desprezível, a ponto de a mencionada edição argentina trazer na contracapa uma sugestão que fazia lembrar “O Jogo da Amarelinha” e suas instruções de leitura.
Evitando afugentar o leitor, a apresentação da obra traduzida por Estela Canto dizia que a leitura podia “começar pelo 10º capítulo –o autor não previu assim, porém é um método possível– e retomar seu começo ao concluir a obra, para presenciar o feérico desfile dos insólitos festejos em Ponukelé”. Antecipador das vanguardas sem querer sê-lo, Roussel se via como um clássico e certamente não simpatizaria com a ideia.
Filho de um investidor na bolsa de valores e de uma mãe de origem burguesa cuja excentricidade parecer ter herdado –em suas viagens, a precavida Marguerite Moreau-Chaslon levava seu caixão, para o caso de qualquer eventualidade–, Roussel passou a infância no boulevard Malesherbes, a poucas casas de seu contemporâneo (igualmente genial, neurótico e homossexual) Marcel Proust.
Com o incremento da riqueza paterna, mais tarde a família se mudou para um hotel particular na rue de Chaillot (atual rue Quentin-Buchart) da capital francesa. A essa altura, sob influência materna, Roussel começou a estudar piano e a escrever poesia.
EXCITAÇÃO
Ainda na juventude, Raymond Roussel sofreu a síncope que ditaria os rumos de sua vida, quando aos 19 anos mergulhou em um profundo estado de excitação ao escrever o romance em versos “La Doublure” (o forro).
O caso do escritor inspiraria ao psiquiatra Pierre Janet o seu já citado estudo da megalomania. No ensaio, o médico descreve as consequências do mal sofrido pelo paciente, hipoteticamente denominado Martial –o nome é retirado do protagonista de “Locus Solus”, Martial Canterel, “alter ego” de Roussel.
Martial é um homem de 45 anos, de “existência bem singular”. Ele vive “muito isolado, de uma maneira que parece consideravelmente triste, mas que é suficiente para o preencher de alegria, pois trabalha quase constantemente”.
O psiquiatra frisa a regularidade que Martial se impõe, “com grande esforço e muitas vezes com grande cansaço, para edificar grandes obras literárias”.
“Essas obras literárias, cujo valor não me cabe estudar, não tiveram até aqui nenhum êxito, não são lidas por ninguém, se deixamos de lado alguns iniciados que se interessam por elas, são consideradas insignificantes”, observa Janet, que classifica como “curiosa” a atitude do autor diante de sua produção: ele “não só continua seu trabalho com uma incansável perseverança como também mantém uma convicção absoluta e inquebrantável sobre seu incomensurável valor artístico”.
Os traços dessa convicção “anormal” notada por Janet e hoje evidentemente associados à megalomania são descritos em minúcia pelo médico. Martial, diz o psiquiatra, “atribui a suas obras uma importância desmesurada, nunca se abatendo pelo insucesso flagrante, não admitindo um instante que esse insucesso seja justificado por algumas imperfeições, não aceitando nunca a menor crítica nem o menor conselho, tem uma confiança absoluta no destino que lhe foi reservado”.
O paciente, no discurso loquaz reproduzido pelo médico, via em si uma “glória em potência como num obus formidável que ainda não explodiu”, glória que abarcaria todas as suas obras e faria com que sua vida fosse estudada em detalhe (“irão investigar todos os atos da minha infância e admirarão a maneira como brincava”).
Sem rodeios, Martial se via como um “predestinado” e profetizava que sua fama seria maior que a de Victor Hugo ou Napoleão: “Nenhum autor foi nem pode ser superior a mim”. “Como disse o poeta: e eis que se sente uma queimadura na testa… A estrela que se carrega na testa resplandecente. Sim, senti uma vez que tinha uma estrela na testa e não esquecerei nunca!”
ÊXTASE
A recepção zero da publicação de “La Doublure” (1897) –autosubsidiada, como seriam todos os seus livros, e impressa por Lemerre, editor ligado aos parnasianos–, causou em Roussel um ataque de nervos. Tomado pelo êxtase enquanto escrevia o livro, ele fantasiava que multidões acorreriam às livrarias e que a crítica de imediato se renderia a seu gênio. Nada disso aconteceu, e o jovem autor precisou de três anos para se reequilibrar e voltar a produzir.
Após a crise, Roussel mudou-se para uma imensa vila em Neuilly, lugar semelhante aos domínios do inventor Canterel em “Locus Solus”. Ali, o escritor se manteria em incessante trabalho literário; foi em Neuilly que ele desenvolveu o “procedimento”, nome do método de composição que criou para seus textos em prosa, principalmente “Impressions dAfrique” e o próprio “Locus Solus”.
Esse procedimento desenvolvido por Roussel mantinha parentesco com a rima. Era, portanto, uma concepção poética e se baseava em sons e em jogos de palavras. O escritor partia de duas frases iguais exceto por duas letras, uma na abertura e outra ao final, e criava a narrativa entre as duas.
Fernando Scheibe, tradutor de “Locus Solus”, explica o procedimento tomando por exemplo a expressão “vou-me já”, que, aponta, pode ser lida como “vou mijar”. “Aí se constrói toda uma intriga que permite que sua história comece com alguém dizendo que vai embora e termine com alguém dizendo que vai urinar.” Em “Como Escrevi Alguns de Meus Livros”, Roussel assim resume a estratégia: “Com as duas frases encontradas, tratava-se de escrever um conto que pudesse começar pela primeira e terminar pela segunda”. A coisa se complica, porém, quando se descobre que ele procurava utilizar apenas palavras de duplo sentido -no livro inteiro.
O escritor e crítico Michel Leiris –que ainda na infância conheceu o autor, pois seu pai era advogado da família Roussel, e que se tornaria o maior propagador de sua obra– fez descrições da personalidade do escritor que se assemelham à de um paciente afetado por transtorno obsessivo-compulsivo.
Se o transtorno ainda não fora identificado nos anos 1920, parece lícito notar, em retrospecto, seus traços não só no autor mas também em seu método.
O tradutor Scheibe concorda, mas sublinha: “O essencial a observar é sua capacidade de abrir um espaço em que a literatura fica nua. O procedimento a preserva da psicologia. A partir de uma equação de fatos gerada na e pela linguagem, trata-se de inventar uma resolução. Entramos, como se faz com Mallarmé, no labirinto da linguagem ao infinito”.
“Locus Solus” relata a visita de alguns convidados à vila de Martial Canterel, que promove um passeio para exibir suas invenções, descritas em detalhes no romance.
Para outro de seus admiradores, o escritor catalão Enrique Vila-Matas, “não é fundamental conhecer o procedimento” para apreciar Roussel. Ele recorda que Salvador Dalí amava voltar às obras do excêntrico francês. “Um dia, em uma entrevista em Cadaqués, Dalí me contou que, em algumas noites, pedia a seu secretário que lesse fragmentos de “Impressions dAfrique” e que, ao chegar ao episódio do anão Filipo, que salpica de saliva os presentes, ele arregalava os olhos e literalmente corria de prazer.” A reação de seu empregado, conclui Vila-Matas, permitiu ao artista ver a “genialidade absoluta do estranho Roussel”.
IMAGINÁRIO
Roussel só tinha olhos para seu imaginário pessoal, o que se manifestava nas suas atitudes. Conta-se que, em 1920, ao saber que ele empreenderia uma longa viagem à Índia, uma amiga pediu que lhe trouxesse o suvenir mais raro que encontrasse. Roussel voltou trazendo um radiador.
Outra anedota diz que, depois de atravessar o Atlântico para conhecer a África, vislumbrou o continente da escotilha do navio e, satisfeito, pediu ao capitão que desse meia-volta. O episódio, se não é verdadeiro, ilustra bem uma característica sobre a qual o próprio Roussel escreveu.
“Viajei muito. Principalmente em 1920-21 dei a volta ao mundo pelas Índias, Austrália, Nova Zelândia, os arquipélagos do Pacifico, a China, o Japão e a América. (Durante esta viagem fiz uma longa parada no Taiti, onde encontrei ainda algumas personagens do admirável livro de Pierre Loti)”, recorda o escritor. “Eu já conhecia os principais países da Europa, o Egito e todo o norte da África, e mais tarde visitei Constantinopla, a Ásia Menor e a Pérsia. Ora, de todas viagens, nunca tirei nada para meus livros. Pareceu-me que a coisa merecia ser assinalada por mostrar claramente que em mim a imaginação é tudo”, conclui.
ACEITAÇÃO
Admirador dos folhetins de Loti e Júlio Verne -assim como seu sucessor Georges Perec, outro adepto de “procedimentos” literários-, Roussel ansiava pela aceitação do público. Não à toa pagou consideráveis somas de dinheiro a Lemerre, editor de obras populares, além de adaptar seus romances ao teatro com idêntica finalidade. Essas dispendiosas adaptações, entre outras gastanças, levaram-no à bancarrota.
As encenações de “Impressions dAfrique” e de “Locus Solus” foram rejeitadas, quando não ridicularizadas pela audiência. Insatisfeito, Roussel produziu, em 1925, “LÉtoile au Front” (a estrela na testa) e, dois anos mais tarde, “La Poussière de Soleils” (a poeira de sóis) -dois textos escritos para teatro, que serviram ao menos para que angariasse a adesão dos jovens surrealistas.
André Breton, Robert Desnos, Louis Aragon e Michel Leiris promoveram selvagens batalhas na plateia, em defesa daquele que elegeram como “o presidente da república dos sonhos”. Raymond Roussel, porém, não lhes deu muita pelota: ironicamente, não entendia seus livros.
Depois de fracassar no teatro, retomou a poesia na qual havia iniciado sua carreira literária. Escreveu “Nouvelles Impressions dAfrique” (novas impressões da África, 1932), obra-prima em verso analisada por Leiris “como uma transposição da técnica de múltiplos episódios de suas histórias ao patamar da poesia”.
Na opinião de outro rousseliano dos dias atuais, o norte-americano John Ashbery, Raymond Roussel “é o único poeta francês moderno cujos experimentos com a linguagem podem ser comparados aos de Stéphane Mallarmé”.
Enquanto seu ídolo Júlio Verne encontrou na ciência a redenção de uma obra inicialmente débil, Raymond Roussel parecia ter como musa os esforços por matar o tempo e, com ele, seu horror ao vazio. Criou, assim, uma obra literária friamente inumana meio século antes que ela pudesse ser compreendida –ou mesmo lida.
(Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2013/09 – ILUSTRÍSSIMA / Procedimentos contra o vazio/ Por JOCA REINERS TERRON – 22/09/2013)
(Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais – FOLHA DE S.PAULO / +MAIS! / por Leyla Perrone-Moisés – São Paulo, 25 de novembro de 2001)
Leyla Perrone-Moisés é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autora de, entre outros, “Inútil Poesia” (Companhia das Letras).
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