Realizado no Brasil o primeiro transplante de fígado intervivos do mundo
Às 7h30 da manhã de 9 de dezembro de 1988, a equipe do cirurgião Silvano Raia, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, costurou o abdômen da garota paranaense Débora Regina Moraes, de 4 anos, concluindo o 24.° transplante de fígado realizado no país.
O cirurgião Silvano Raia – a maior autoridade do país neste tipo de transplante, que ele transformou numa intervenção rotineira – estava dando um passo ainda mais arriscado, daqueles que de tempos em tempos empurram para a frente as fronteiras da ciência. Pela primeira vez na história da medicina, realizava-se um transplante de fígado intervivos – em que um doador vivo e em pleno gozo de sua saúde cede um pedaço de seu fígado para salvar a vida de alguém que necessita de um transplante.
A doadora na histórica operação foi a mãe de Débora Regina, a secretária Jane Trevisan Moraes, de 23 anos, que mora na cidade de Corbélia, no Paraná. Quase uma terça parte do fígado de Jane foi retirada – mais especificamente a parte esquerda do órgão -, e este fragmento foi acoplado a veias e artérias do abdômen da filha, que perdera o fígado por causa de uma cirrose congênita, ao cabo de uma cirurgia que durou mais de 22 horas.
A operação foi uma das mais demoradas da carreira da equipe de Raia. Começara às 9 horas da manhã 9 de dezembro, no Centro Cirúrgico do Instituto do Coração, em São Paulo, para só terminar na manhã do dia seguinte. O caráter pioneiro do transplante não se restringiu à doação.
Para a secção da porção esquerda do fígado de Jane – uma operação delicadíssima -, não foi necessário transfusões de sangue. Graças a uma técnica inovadora desenvolvida pelos cirurgiões Sérgio Mies e José Roberto Néry, da equipe de Raia, a secção de ramos da veia porta, da artéria hepática e da via biliar – vasos que irrigam o fígado – provocou uma perda mínima de sangue.
A equipe de anestesistas era chefiada pelo reputado anestesiologista Ruy Vaz Gomide do Amaral, professor titular de sua especialidade na Faculdade de Medicina da USP, que participou das cirurgias mais complicadas realizadas pelos médicos do Hospital das Clínicas.
Era a 24.° vez que a equipe de Raia realizava um transplante de fígado em seres humanos. Raia fez um transplante desse gênero pela primeira vez em agosto de 1985, quando a cearense Maria Regina Mascarenhas recebeu o fígado do operário Josafá da Silva, que morrera num acidente de trabalho.
À frente do departamento de Cirurgia Experimental da Faculdade de Medicina, Raia é a maior autoridade em cirurgia do país – a quem coube exorcizar o Instituto do Coração da nódoa deixada pelo médico Henrique Walter Pinotti, comandante do atendimento ao presidente Tancredo Neves, transformado numa lenta agonia de 27 dias.
O que levou Raia a tentar o transplante inédito no mundo foi a escassez crônica de doadores de órgãos. Dos 24 transplantados realizados por Raia desde 1985, apenas três foram feitos em crianças – 50% dos doentes adultos morrem na fila de espera por um órgão. Esse índice aumenta para 70% quando se trata de crianças.
O transplante de fígado intervivos não tem precedentes no mundo. Raia, contudo, aproveitou a experiência de seu colega francês Henry Bismuth, do Hospital Paul Brouse, em Paris, que em maio de 1987 realizou um transplante de fígado que guarda algumas semelhanças com o de Raia. O doador do órgão, morto num acidente de automóvel, teve seu fígado dividido ao meio e implantado em duas mulheres.
A forma de dividir o fígado era similar à do transplante intervivos – o doador, contudo, estava morto. Os resultados do cirurgião francês não foram alentadores. Ambas as receptoras das frações de fígado acabaram morrendo semanas depois da cirurgia, vítimas de infecções abdominais.
(Fonte: Veja, 14 de dezembro de 1988 - ANO 21 – Nº 50 – Edição 1058 - MEDICINA - Pág: 104)