Richard Seaver (1926-2009), tradutor e editor americano
“A Hora Terna do Crepúsculo — Paris nos Anos 1950, Nova York nos Anos 1960: Memórias da Era de Ouro da Publicação de Livros” (Biblioteca Azul, 574 páginas, tradução de Cid Knipel), de Richard Seaver (1926-2009), é um desses livros encantadores que são publicados no Brasil e ganham algum espaço na imprensa e, às vezes, são esquecidos. Seaver foi editor de livros da Grove Press, da Viking, da Holt, da Rinehart and Winstton e da Arcade Press.
Publicou D. H. Lawrence (“O Amante de Lady Chatterley”) e Henry Miller (“Trópico de Câncer”) quando eram considerados malditos e, mesmo, proibidos nos Estados Unidos. Fez traduções e escreveu ficção. Desta despediu-se, aparentemente, ao descobrir sua grande paixão literária, o irlandês Samuel Beckett. Era um grande homem que se contentava em viver nas sombras, editando prosa de qualidade de autores como Becket, Lawrence, Miller, Harold Pinter, Octavio Paz, John Berger, Andreï Makine, Ismail Kadaré, William Burroughs, Jean Genet, Marguerite Duras, André Breton. O livro de memórias é elogiado por James Salter — autor da apresentação, na qual conta que Seaver traduziu mais de 50 livros do francês para o inglês —, John Ashberry, Edmund White, Peter Matthiessen e John Irving.
Seaver era apaixonado pela literatura de James Joyce, sobre a qual escreveu uma tese. Porém, ao descobrir Beckett, em 1951, apaixonou-se por sua literatura. Beckett tornou-se sua obsessão literária, por certo. A amigos, disse: “… ele é tão extraordinário quanto Joyce. Totalmente diferente, mas extraordinário”.
Beckett escrevia muito bem, havia conseguido distinguir-se de Joyce, mas não era reconhecido na Inglaterra e na França, o que intrigava Seaver. O que há de mais interessante é a sensibilidade do jovem americano na sua busca pela literatura de Beckett e para ajudá-lo a se firmar. “Tudo que eu sabia era que tive a grande sorte de topar com — ‘descobrir’ era pretensioso demais — um gênio; o termo não é muito forte. O que mais impressionava era o humor impassível, a falta de confiança em si mesmo e a autodepreciação dispostos em um leito rochoso de erudição, finíssima luz desgastada.
Ao mesmo tempo, de um livro para o outro Beckett ia livrando-se do supérfluo: o que às vezes reluzia, mas atravancava, em ‘Murphy’ praticamente desaparecia em ‘Molloy’ e ‘Malone’. O movimento parecia inexoravelmente direcionado para o minimalismo, talvez em última instância rumo ao silêncio. Mas uma coisa, para mim, era certa: quaisquer influências que pudessem ter afetado ou maculado a voz antiga tinham desaparecido, descartadas ou totalmente integradas. De ‘Molloy’ em diante, Beckett tinha seu próprio juízo.” Ressalte-se que, quando Seaver “descobre” Beckett, não havia uma fortuna crítica considerável para sustentar que se tratava de um escritor poderoso, embora, é claro, fosse reconhecido como dono de um talento literário formidável.
Não era fácil encontrar livros de Beckett em Paris, no início da década de 1950, por isso Seaver saiu à caça nas livrarias. Numa livraria, onde antes funcionara um bordel, encontrou “Molloy” e “Malone” e pôs-se a ler sofregamente. Sente-se quase o mesmo prazer de Seaver ao se ler como ele devorava a prosa complexa, sempre a exigir releitura, de Beckett. O prazer da leitura está muito bem descrito nas memórias.
Ao chegar em casa, Seaver abriu “Molloy”, mesmerizado. Ele tinha 25 anos. “Antes do anoitecer terminei o livro. Não vou dizer que entendi tudo que li, mas se existe essa coisa de choque da descoberta, uma iluminação, experimentei isso naquele dia. Fiquei, muito literalmente, arrebatado. A simplicidade absoluta, a beleza, sim, e o terror das palavras me abalaram como poucas coisas antes. E a visão que o cara tinha do mundo, seu retrato dolorosamente honesto, sua postura anti-ilusionista, derrubando o que ele havia cuidadosamente forjado, estipulando o fato e depois o questionando quase antes de a tinta secar… E o humor; meu Deus, o humor… Página após página, de repente me vi rindo alto. Se eu não era bem Molloy, sabia que certamente um dia eu seria. Ou tal era minha acalentada esperança: no meio da extrema confusão e desespero, ter um momento de verdade e luz.”
Seduzido, dois dias depois, Seaver releu “Molloy”. “A segunda leitura foi até mais estimulante que a primeira, mais gratificante também, pois surgiram vislumbres adicionais de compreensão. No dia seguinte passei para ‘Malone’. Inteiramente à altura do primeiro. Dois trabalhos sensacionais. Milagres. Como um drogado, eu tinha que conseguir mais”.
No dia seguinte, Seaver voltou à livraria e perguntou a um funcionário se a Minuit havia publicado algum outro livro de Beckett. “Quem?”, perguntou o livreiro. Uma secretária disse que a Bordas havia publicado “Murphy”. “Agradecendo a ela, desci correndo de três em três os degraus da escada, acelerando ao virar a esquina, subi na Big Blue e pedalei até a Bordas, a uma curta distância na rue de Tournon.”
Na Bordas, uma livraria pequena, o balconista informou: “Nós não temos muita procura desse título”. Falava de “Murphy”, o romance de Beckett. Com o livro nas mãos, Seaver disse, num frenesi que decerto surpreendera o livreiro: “Obrigado, mil vezes obrigado”. Em 1951, ano em que a história transcorre, “apenas 95 exemplares da edição francesa de ‘Murphy’ tinham sido vendidos”. A tiragem era de 350 exemplares e de cinco anos antes. “Levei meu exemplar para casa e li ‘Murphy’ noite adentro, carinhosamente separando as páginas à medida que seguia.” No dia seguinte, Seaver voltou ao livro. “Li — não, saboreei — o equilíbrio de ‘Murphy’, amando e sofrendo com ele em sua luta de infortúnio a infortúnio.
Incapaz de trabalhar, a extrema degradação. Nem mesmo o amor de Celia pôde levá-lo à ação, muito menos um trabalho, por cujas fauces estúpidas ele se recusava a ser tragado, Murphy ferrenhamente — se tal termo pode ser aplicado a esse Oblómov irlandês — defendendo seus variadíssimos cursos de inação. Eu podia me identificar com isso. ‘Murphy’ não tinha nem o verniz nem a profundidade de ‘Molloy’ e ‘Molone’, que eram transcendentais, mas ainda não parecia com nada que eu já tivesse lido: engraçado, obsceno, irreverente, pungente, autodepreciativo. Linguagem ferina. (…) Um pouco inteligente demais para seu próprio bem, talvez Joyce espreitando não muito longe, não longe o bastante.”
Beckett era, naquela década de 1950, “o escritor” que mais deixara Seaver apaixonado. “Desde Joyce, certamente”, acrescenta. O irlandês tinha 45 anos.
Depois dos romances, novelas, sabe-se lá, Seaver, informado de que “Les Temps Modernes” e “Fontaine” haviam publicado contos de Beckett, saiu à caça, quase desesperado. “Suíte” (“Continua”) saiu em “Temps Modernes”; “L’Expulsé’ (“O expulso”), em “Fontaine”.
No escritório de “Temps Modernes”, a jovem que atendeu Seaver disse sobre Beckett: “Nunca ouvi falar dele”. Quando Seaver revelou que era chamado de Dick, ela comentou: “Ah, Deek. Na França, sabe, este é um nome que geralmente dão a cachorros”.
“Suíte” (no livro está “Suite”, sem acento), segundo Seaver, “era uma maravilha, no mesmo nível” de “Malloy” e “Malone”. “Era realidade sem nada de supérfluo. Uma canção desolada, triste porém belíssima. (…) a história parecia estranhamente incompleta. Deduzi que para Beckett as noções de completo ou incompleto tinham pouco a ver com as que me foram inculcadas. Só mais tarde fiquei sabendo, pelo próprio Beckett, que minha conjetura não estava equivocada: ‘Suíte’ representava apenas a primeira parte de uma noveleta.” Quando Beckett enviou a segunda parte, Simone de Beauvoir não quis editá-la, explicando que “Temps Modernes” não publicava sequências. O escritor ficou possesso.
Em seguida, Seaver saiu à caça de “O expulso”. “Achei-o muito melhor. De chorar, pois era muito pungente; de rir, pois era muito misteriosamente hilário.”
Quando Seaver escreveu um artigo para uma revista, um amigo leu e fez uma série de anotações agudas, sugerindo novos caminhos. “Uma maneira de conhecer os verdadeiros amigos é através de seus comentários críticos: os falsos amigos demolem ou procrastinam; os amigos de verdade são sempre construtivos, mesmo quando são críticos.”
Seaver morreu em 2009 e as memórias não puderam ser editadas por ele. Sua mulher, Jeannette, com auxílio de um editor, organizou e publicou o texto. Contei um pouco sobre Beckett, mas há mais, muito mais, sobre o próprio irlandês (que chegou a fazer cinema) e outros escritores e editores de livros. “A Hora Terna do Crepúsculo” é um livro belo e raro. A palavra “sensível” perdeu energia, tornando-se piegas. Mas talvez possa ser usada a respeito do livro de Seaver.
http://www.jornalopcao.com.br/colunas/imprensa/em-a-hora-terna-do-crepusculo-o-editor-richard-seaver-fala-de-sua-paixao-flamejante-pela-prosa-complexa-de-beckett
Edição 2017 de 2 a 8 de março de 2014
Euler de França Belém