O testamento do lobo
Ronaldo Bôscoli (Rio de Janeiro, 28 de outubro de 1928 – Rio de Janeiro, 18 de novembro de 1994), compositor, produtor musical e jornalista esportivo. Criador e personagem da bossa nova.
O Rio de Janeiro, nas lembranças dos que cresceram lá na época certa, dos anos 40 aos 60, é a moldura dourada de um paraíso sem serpentes: sol, mulheres e música, mais uma porção de gelo para suavizar os drinques. Esses são os ingredientes de tantos relatos que Eles e Eu – Memórias de Ronaldo Bôscoli, poderia ser confundido não fosse o cast de milhões, como nas superproduções de antigamente, reunido pelo autor. Quase todo mundo, desde que jogasse futebol, frequentasse praia, boate e cantasse ou tocasse algum instrumento, aparece nestas páginas respingadas de uma nostalgia seca, sem soluços, anti-dramática mesmo nos momentos mais patéticos da sinfonia carioca. “Em tempo de ser gato – dizem – fui um gato, avisa o autor antes mesmo de se entregar aos labirintos da sua memória. “Hoje, dele guardo a asma e a sabedoria.” Sua época, tão viva no livro, inevitavelmente passou e, no dia 18 de novembro, ele também. Aos 66 anos, Ronaldo Bôscoli morreu de câncer, num Hospital do Rio de Janeiro, cinco meses depois de ter ditado essas suas lembranças. Nelas via-se sem lugar num mundo em que não se imaginava “milionário, bermuda de linho, camisa de seda estampada, exibindo a barriga pródiga, simulando pilotar uma orgia de fios dentais afagando meus cabelos acaju”.
Seu reino era de ontem, nas tenebrosas sessões das 4 no Cine São Luiz, onde gente como o futuro ator Jardel Filho participava da soltura de galinhas e pombos na platéia ou se acendiam cabeças-de-negro nos banheiros. Éramos jovens de Copacabana, esse era o espírito da época, suspira Bôscoli. Enfim, tudo muito natural, como a bossa nova. Bôscoli foi o letrista, repórter e principal publicista da bossa nova, movimento que viu nascer dentro da própria casa, um quarto-e-sala em Copacabana, onde se esprimia ao lado do futuro parceiro Luiz Carlos Mièle, o compositor Chico Feitosa e João Gilberto. Muito antes disso nascera em berço de ouro, como diz, pela fortuna do avô materno que um dia enlouqueceu e se suicidou. Sobrinho-neto da lendária compositora Chiquinha Ó Abre Alas Gonzaga, primo de Jardel Filho e Bibi Ferreira, depois cunhado de Vinicius de Moraes e marido de Elis Regina, desde pequeno achou que seria artista. Tornou-se jornalista esportivo, já que era craque em natação e futebol, além de torcedor do Fluminense. “Depois de Theda Bara você é a última vamp da História”, sentenciou sobre ele um colega de redação. Nelson Rodrigues, um dos numerosos personagens com quem cruzaria ao longo da vida.
CENAS DE ARREPIAR – Os olhos e ouvidos de Ronaldo Bôscoli viram coisas de que até o diabo duvida. João Gilberto dormindo vestido com a gravata tapando os olhos e pedindo a Bôscoli para que ligasse a Elza Soares: queria (e conseguiu) que ela o esperasse nua debaixo das cobertas. O elegante craque Didi, “Príncipe etíope de rancho”, na definição de Nelson Rodrigues, confessando que costumava tomar “umas laranjadas” preparadas pelo médico antes dos jogos e aí virava uma fera em campo. Garrincha, depois de entonar dois copos de conhaque como café da manhã, explicando que não podia cobrar muito dos clubes porque se tivesse de pagar para jogar talvez até pagasse, de tanto que gostava. Johnny Mathis deitado no chão da casa dele ao lado de Elis Regina, cantando Tonight em dueto. Sérgio Mendes, o gênio de Niterói, “um jovem com corpo de coroa, barrigudinho e irritantemente usuário”, estreando humildemente no fabuloso Beco das Garrafas e arrasando de cara. Lá também os garçons pediram a carteira de identidade do banqueiro Walther Moreira Salles, porque não acreditavam no cheque dele.
Eles e Eu é isso, saborosas histórias principalmente para quem as viveu, mas mostrando também momentos que são glória ou terror exclusivamente do autor. No primeiro caso, Ronaldo Bôscoli como padrinho de majestades: foi ele quem apresentou o rei Pelé ao rei Roberto Carlos assim como apresentaria Tom Jobim a Vinicius de Moraes. No segundo, a constatação “estranha” de que seus três filhos são muito fechados: “Não têm intimidade comigo”. Ficou sem o primogênito, João Marcelo, quando ele tinha 3 e a mãe, Elis, levou-o para São Paulo. São episódios, como muitos outros do saco sem fundo de seu casamento com Elis, vastamente conhecidos em livros alheios. Agora, fala Ronaldo: “Ela deslocou o processo para São Paulo porque tinha mais dinheiro que eu. Sempre que me via, meu filho fugia de mim. Quando Elis morreu não quis morar comigo dizendo que já era meio pai dos dois irmãos, filhos de César Camargo Mariano”. Tampouco viveu com os outros dois, Mariana e Bernardo, depois que acabou seu casamento de doze ou treze anos com Heloísa de Souza Paiva, embora nos últimos anos morassem todos no mesmo prédio.
MEL E FEL Ao contrário do que se poderia esperar, o relato de Ronaldo Bôscoli de como ele brilhou e sofreu num Rio de Janeiro de contos de fadas não é um tiroteio cheio de balas perdidas. É quase um agradecimento por ter convivido com gente invariavelmente interessante, de A, de Adolpho Bloch, dono da extinta Manchete e ex-patrão (“Uma pessoa encantadora por sua ingenuidade e sagacidade”), a W, de Wilson Simonal, superastro que foi varrido de cena depois que o acusaram de delator durante a ditadura militar (“Tem um grande coração. É vidrado na mãe dele”). As exceções são o falecido cronista Antonio Maria, chamado duas vezes de “babaca” e uma de “canalhão”, sem maiores explicações, e o jornalista e compositor Nelson Motta, que “tinha uma frustração enorme porque queria ser eu e ter, inclusive, minha mulher, Elis”. A grande Elis, seu mel e seu fel, ganha um parágrafo ácido e piedoso: “Desaforada, de salto alto 16 e cabelão imenso, de laquê, sobrancelha de Dircinha Batista e vestido estampado de zebra, tudo para parecer maior do que era, não tinha boa educação, coitadinha, devido a sua origem. Nara Leão, a musa da Avenida Atlândida, rica e talentosa, destronada pelo furacão Maysa e seus olhos verdes, que eram dois oceanos não pacíficos, foram as outras mulheres da sua vida. As três estão mortas. Maysa, depois de o ter traído “com todo mundo”, espatifou seu carro na Ponte Rio-Niterói. No fim da vida de Elis e Nara, Bôscoli intuiu que havia sinais de que poderia voltar com uma ou outra. Jamais se saberá. “No meu currículo amoroso constam não só as mulheres que todo mundo sabe, como também as garotas mais bonitas da praça”, orgulha-se o homem. No seu currículo de poeta, constam versos de enorme sucesso, como os de Lobo Bobo, O Barquinho ou Se é tarde me perdoa/ Mas eu não sabia que você sabia/ Que a vida é tão boa/ Eu cheguei mentindo/ Eu cheguei partindo/ Eu cheguei mentindo/ Eu chaguei partindo/ Eu cheguei à toa. Consta também uma confissão de humildade. Ao dependurar a lira, por falta de pique, escreveu: “Foi por causa de vocês. Chico e Caetano, e em profundo respeito pelos seus trabalhos que decidi realmente parar de compor”. Ronaldo Bôscoli se vai e deixa um balanço de vida.
(Fonte: Veja, 2 de fevereiro, 1977 Edição n° 439 MÚSICA – Pág; 52/53)
(Fonte: Veja, 23 de novembro, 1994 Edição n° 1367- ANO 27 N.° 47 LIVROS/ Por Geraldo Mayrink – Pág; 100/101)