O historiador inglês Roy Porter
Grande conhecedor do Iluminismo inglês, Roy Porter renovou a historiografia ao estudar a medicina a partir da experiência do paciente
Roy Sydney Porter (Londres, 31 de dezembro de 1946 – St Leonards-on-Sea, Reino Unido, 3 de março de 2002), foi um dos mais vivos, mais generosos e mais criativos historiadores ingleses.
Vindo de uma família relativamente pobre, Roy Porter ganhou uma bolsa para o Christ’s College, em Cambridge, no qual ele foi um pupilo de Jack Plumb, um homem difícil e algo excêntrico, mas um professor com um dom de atrair alguns dos mais brilhantes estudantes de história a seu colégio e de inspirá-los (Simon Schama, por exemplo) a trabalhar com o século 18. Roy Porter foi inicialmente puxado pela história intelectual no estilo de Quentin Skinner, mas, em vez de trabalhar em teoria política, ele escolheu estudar geologia. Sua tese de doutoramento foi publicada em livro em 1977, intitulada “The Making of Geology” (A Construção da Geologia, Cambridge University Press).
Ele também se interessava por história social, tornando-se conhecido do público leitor de história no Reino Unido quando publicou “English Society in the Eighteenth Century” (Sociedade Inglesa no Século 18, de 1982, Penguin Books), uma contribuição para a série editada por Plumb, “História Social do Reino Unido”, da editora Pelican. Daquele momento em diante, livros e artigos fluíram com espetacular velocidade da caneta, da máquina de escrever ou do computador de Roy Porter. Ele era abençoado pela facilidade em escrever, uma boa memória e pouca necessidade de sono. O dramaturgo oitocentista Thomas Sheridan disse uma vez que escrita fácil é leitura terrivelmente difícil, mas Roy foi uma exceção à regra, uma vez que sua prosa sempre foi fluente, lúcida e vívida.
Ele era igualmente interessado em empreender pesquisas originais e em comunicá-las a um público o mais amplo possível, fosse por meio impresso ou em palestras ou programas de rádio ou televisão. Parecia incapaz de dizer não a convites para falar, não importando quão frequentemente eles viessem ou quão longe ele poderia ter de viajar antes de fazê-lo. Sua imagem era uma visão familiar nas telas de TV britânicas -vestido casualmente, com um brinco em uma orelha, diversos anéis nos dedos e camisa desabotoada quase até embaixo, mostrando seu peito peludo, com um largo sorriso no rosto que revelava o prazer que ele tinha em falar sobre o passado ou, se fosse o caso, também sobre o presente. Com seus pés firmemente plantados no chão da Inglaterra oitocentista, o trabalho de Roy se moveu de seu centro de interesse em várias direções.
Ele sentia que o Iluminismo inglês havia sido relativamente negligenciado e lhe devotou alguns artigos -até que, finalmente, publicou um livro em 2000 (“Enlightenment”, ed. Penguin), para remediar a situação. Sendo um londrino, publicou uma história social da cidade em 1994 (“London – A Social History”, ed. Penguin), na qual obviamente tinha muito a dizer sobre a Londres de William Hogarth e Samuel Johnson e as magníficas praças do século 18, mas continuou sua história até a Londres de Thatcher e mesmo além. Entretanto o passo mais significativo de Roy foi no campo relativamente novo e crescente da história da medicina.
Em 1979 ele se mudou do Churchill College, no qual lecionava na graduação, para um cargo de palestrante (e mais tarde de professor) no Instituto Wellcome para a História da Medicina, em Londres, um instituto de pesquisa financiado pelos lucros obtidos com produtos farmacêuticos. A escolha foi uma ação audaciosa para ambas as partes. O instituto arriscou-se a escolher um historiador social sem experiência prévia no campo da história da medicina nem de treinamento em medicina, e Roy se arriscou a mudar de campo de pesquisa. A aposta foi cumprida, e Roy se tornou um dos mais inovadores e mais celebrados historiadores da medicina de sua época.
Nova abordagem
Nesse novo campo, um dos centros de interesse de Roy foi a loucura e a tentativa de curá-la. Sua “História Social da Loucura” (Jorge Zahar Editor) apareceu em 1987, seguida pelo “Faber Book of Madness” (Livro Faber da Loucura, de 1991, ed. Faber & Faber), uma antologia de textos em que doentes descreveram a experiência da loucura em suas próprias palavras. Essa antologia naturalmente interessou o público em geral mas também ilustrou uma nova abordagem da história, a história vista de baixo, que Roy defendeu em um importante artigo sobre a necessidade de a história da medicina expandir-se além da história dos médicos para incluir o ponto de vista do paciente.
Quando escrevia sobre os médicos, Roy preferia dar atenção aos praticantes mais ou menos desqualificados e não-oficiais, à margem da profissão (1), em vez de escrever sobre seus mais respeitáveis colegas e inimigos. Ao escrever sobre esses praticantes de medicina não-oficiais, enfatizava a linguagem que eles utilizavam para promover a si mesmos e a seus produtos em anúncios em jornais e outros lugares, assim incorporando a história da medicina à chamada ascensão da sociedade de consumo, no Reino Unido do século 18, como havia sido estudada por seu antigo mestre Plumb e por seu colega John Brewer.
Ele acreditava que os historiadores fossem um grupo logocêntrico que precisava ser persuadido a assumir a evidência das imagens tão seriamente quanto o testemunho dos textos, e um de seus livros mais recentes estuda a relação médico-paciente na Inglaterra do século 18 por meio de figuras, notadamente as caricaturas de Thomas Rowlandson.
Roy também ampliou a história da medicina de outros modos. Ele a via em termos amplos, como a história da doença e da saúde, ela mesma uma parte no campo ainda mais novo da história do corpo. Escreveu sobre a história do corpo em geral e a história do sexo em particular. Não foi uma surpresa o fato de que Roy tenha sido um dos primeiros historiadores britânicos a estudar seriamente as idéias de Michel Foucault, o qual ele não temia criticar em algumas ocasiões ou seguir em outras, em uma época em que muitos colegas simplesmente se sentiam desconfortáveis com as idéias novas e estranhas e tinham esperança de que elas fossem embora.
Após 20 anos no Instituto Wellcome, ele produziu um grande e ambicioso livro sobre a história da medicina.
Para aqueles que não o conheceram, qualquer acadêmico que tenha produzido tantas páginas impressas quanto Roy produziu deve dar a impressão de um trabalhador solitário ou mesmo de um “workaholic”. Nada poderia estar mais distante da verdade. Ele pode ter sido solitário nas primeiras horas da manhã, mas na maior parte do dia ele era extrovertido e sociável. Possuía um gênio para a colaboração, para editar volumes sobre uma variedade de tópicos com uma multiplicidade de co-editores, um jeito para perceber que tópico precisava ser aberto e quem deveria ser convidado a participar das empreitadas coletivas.
Aposentou-se prematuramente em 2001, quando o Instituto Wellcome perdeu sua independência e foi engolido pela University College, de Londres, e se mudou para uma cidade litorânea em Sussex para devotar-se a seus hobbies.
Roy Porter morreu repentinamente no dia 3 de março de 2002, com apenas 55 anos, em St Leonards-on-Sea, Reino Unido.
(Fonte: http://www1.folha.uol.com.br – MAIS AUTORES/ Por Peter Burke – 2 de junho de 2002)
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Nota do tradutor 1.Os chamados “quacks”, que reuniam desde curandeiros até charlatães.
Peter Burke é historiador inglês, autor de “História e Teoria Social” (ed. Unesp) e “O Renascimento Italiano” (Nova Alexandria), entre outros. Ele escreve regularmente na seção “Autores”, do Mais!.
Tradução de Victor Aiello Tsu.